Na floresta
dos 613 preceitos – 365 de proibição (quantos os dias do ano) e 248 de obrigação (quantos os membros do corpo humano
segundo a mentalidade epocal) – que os
rabinos concluíram da minuciosa leitura que fizeram do Pentateuco ou Torah (Génesis,
Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio), onde está
inscrita a Lei cuja parte nevrálgica é o Decálogo (Os 10
mandamentos dados por Deus a Moisés, inscritos em duas tábuas de pedra e que
ele apresentou ao povo), era muito difícil
estabelecer uma hierarquia que respondesse às exigências da Lei e lhe
espelhasse a sublimidade. Por isso, as discussões em torno desta questão eram
recorrentes, pois a Lei há de iluminar toda a vida do quotidiano e colmatar as
necessidades do homem.
É neste
contexto que os fariseus, sabendo que Jesus tinha enchinelado os saduceus, se
reuniram em grupo para O experimentarem (vd o verbo grego “peirázô”: montar um laço; de “peîra”, astúcia, sedução, prova). E Mateus relata o episódio na perícopa evangélica
assumida para este XXX domingo do Tempo Comum no Ano A (Mt 22,34-40).
Estamos perante os últimos dias terrenos de Jesus. Os líderes
judaicos já tinham feito a sua escolha e têm ideias definidas acerca da de
Jesus: segundo eles a proposta de Jesus não vem de Deus, pelo que deve ser
rejeitada e, por conseguinte, Ele deve ser denunciado, julgado e condenado de
forma exemplar. Para tanto, é preciso encontrar móbeis para a acusação. E,
neste ambiente, o autor humano do 1.º Evangelho situa três controvérsias entre
Jesus e os fariseus, que têm em vista armadilhar de forma incontornável a
figura do novo Mestre e surpreendê-Lo em asserções polémicas utilizáveis em
tribunal para conseguir a condenação. Assim, depois das controvérsias sobre o
tributo a César (cf Mt
22,15-22) e sobre a
ressurreição dos mortos (cf
Mt 22,23-33), vem à tona
a controvérsia sobre o maior mandamento da Lei (cf Mt 22,34-40). A ideia era demonstrar que Jesus não sabia interpretar a
Lei, pelo que não era digno de crédito.
Por isso,
quem toma a palavra para dirigir a pergunta a Jesus é um doutor da Lei (ou legista:
nomikós) – é esta a
única menção desta figura humana em Mateus – em nome dos fariseus que se tinham
reunido para armarem a cilada a Jesus, tal como o fizeram em situações
anteriores e o farão em Mateus 22,41, antes da pergunta decisiva de Jesus (Aí é Jesus
quem formula a pergunta) acerca da
filiação do Messias, que os reduzirá ao silêncio (Mt 22,46).
Dom António
Couto, Bispo de Lamego, vê nas sucessivas reuniões dos fariseus para estudarem
a forma de tramar Jesus “uma clara alusão ao Salmo 2, em que se diz que os reis
das nações se amotinam contra Deus e contra o seu Messias (Sl 2,2).
A pergunta que
o legista fariseu coloca a Jesus “Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?” (Mt 22,36: didáskale, poía entolê megálê en tôi nómôi), embora de
aparência inofensiva, destina-se a tentar arrastar Jesus para a interminável
discussão académica cujo conteúdo foi acima indicado, natural fonte de
conflitos, pois cada mestre tinha a sua sentença e tentava fazê-la valer junto
dos outros. Por isso, tornava-se oportuno perceber a posição dum Mestre que
surge da Galileia sem que alguém saiba que escola tenha frequentado.
Jesus
responde sem cair na ratoeira que lhe fora armada, mas excedendo e estilhaçando
a pergunta formulada. Cita, antes de mais, o Livro do Deuteronómio (Dt 6,5): Amarás o
Senhor, teu Deus, com todo o coração, toda a alma, todas as forças” (agapêseis Kýrion tón Theón sou en hólêi têi kardíai sou kaì en
hólêi têi psikhêi sou kaì en
hólêi têi dianoíai sou), ou seja, sem meias tintas. Depois, acrescenta,
citando o Livro do Levítico (Lv 19,18): “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (agapêseis tón plêsíon sou hôs seautón). Isto, depois de dizer que o segundo mandamento é
semelhante ao primeiro (“hómoios”:
da mesma natureza, semelhante, comum, o mesmo, conforme, igual, imutável).
Assim, ao
legista, a quem apenas interessava saber qual era o primeiro mandamento da Lei no
entender de Jesus, o Mestre dos Mestres respondeu cabalmente, mas fez-lhe saber
qual era também o segundo mandamento da Lei. Porém, ao sublinhar a semelhança
de natureza entre os dois, já não temos um primeiro e um segundo, mas dois que
fazem um só corpo preceitual, pelo que se afiguram como o dado essencial para o
quotidiano, para o corpo e para a alma, para a pessoa e para a comunidade.
Mais: esta doutrina não muda.
Sendo assim,
então o amor a Deus verifica-se no amor ao próximo, no nosso quotidiano e nos
grandes momentos. Por isso, Jesus não tem necessidade de dizer aos discípulos
que amem a Deus, mas “amai-vos uns aos outros como Eu vos amei” (Jo 15,12) e “nisto saberão todos que sois meus discípulos: se tiverdes
amor uns pelos outros” (Jo 13,35). Por seu turno, Paulo é categórico ao dizer: “Toda
a Lei se resume num só mandamento, a saber: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Gl 5,14). E a 1.ª Carta de
João estabelece: “Se alguém declarar: ‘Eu
amo a Deus!’, porém odiar a seu
irmão, é mentiroso, porquanto quem não ama seu irmão, a quem vê, não pode
amar a Deus, a quem não enxerga” (1Jo
4,19).
E Dom
António Couto comenta:
“Jesus rebenta outra vez a pergunta do ‘legista’, na conclusão que tira
e em que refere que ‘Destes dois mandamentos se suspende» (krématai)
(Mt 22,40), verbo só aqui usado no
Novo Testamento, isto é, ‘depende’, ‘dependura’, ‘decorre’ ‘toda a Lei e os
Profetas’ (Mt 22,40). Não se trata,
portanto, de um final, de uma conclusão a que se chega, de um resumo, mas de um
ponto de partida, de um fundamento.”.
Depois,
evocando Santo Agostinho, diz:
“Seria como o fundamento de um edifício espiritual que se encontra no
cume, na pedra cumeeira. A locução ‘a Lei e os Profetas’ é uma forma de dizer toda
a Escritura. A pergunta do ‘legista’ visava apenas a Lei, mas Jesus acrescenta
‘os Profetas’, clarificando, pois, na sua resposta, que é a inteira Escritura
que está atravessada pelo fio de ouro do AMOR a Deus e ao próximo.”.
Ora, se a
medida do amor que devemos aos outros é Jesus, a medida do amor que damos a
Deus é a qualidade do amor em que envolvemos o próximo. O próprio Cristo o
afirma ao dizer que é pelo amor de uns aos outros que reconhecerão que somos
seus discípulos, Paulo o considera ao dizer que toda a Lei se resume no amor ao
próximo e a 1.ª carta de João faz consistir a verdade da amor a Deus no amor ao
próximo.
A resposta de Jesus, como se viu, supera o limitado horizonte
da pergunta, situando-se ao nível das opções profundas que o homem deve fazer.
O importante, na perspetiva de Jesus, não é definir qual o mandamento mais
importante, mas encontrar a raiz de todos os mandamentos. E essa raiz gira à
volta de duas coordenadas: o amor a Deus e o amor ao próximo, sendo que a Lei e
os Profetas são comentários a estes dois mandamentos e os seus ditames servem
de instrumento de concretização prática desse duplo e único mandamento do amor.
Os cristãos de Mateus usavam a expressão “a Lei e os
Profetas” para se referirem aos livros inspirados do Antigo Testamento, que
apresentavam a revelação de Deus (cf Mt 5,17; 7,12). Assim, dizer que “nestes dois mandamentos se resumem a Lei
e os Profetas” (v. 40), significa que eles encerram toda a
revelação de Deus, contendo a totalidade da proposta de Deus.
A originalidade deste sumário evangélico da Lei não está nas
ideias de amor a Deus e ao próximo, bem conhecidas do Antigo Testamento: Jesus
limita-Se a citar Dt 6,5 (no
respeitante ao amor a Deus) e Lv 19,18 (no
respeitante ao amor ao próximo). A originalidade está no facto de Jesus os aproximar um do outro, pondo-os
em perfeito paralelo e no facto simplificar e concentrar toda a revelação de
Deus neste duplo e único mandamento. Portanto, o compromisso religioso (que é proposto aos crentes, quer do
Antigo, quer do Novo Testamento) resume-se no amor (agapê), que é doação.
Jesus não se preocupou muito com o cumprimento dos rituais
litúrgicos do judaísmo, nem viveu obcecado com o oferecimento de dons materiais
a Deus. A sua grande preocupação era discernir a vontade do Pai e a cumpri-la
com fidelidade e amor. “Amar a Deus” é, pois, na perspetiva de Jesus, estar
atento ao desígnio do Pai e procurar concretizá-lo na vida quotidiana. E isto passa
por fazer da vida uma entrega de amor aos irmãos, se necessário até ao dom
total de si mesmo, como Ele fez. Assim, na ótica de Jesus, amor a Deus e amor
aos irmãos estão umbilicalmente associados. Não são dois preceitos diversos,
mas como que duas faces da mesma moeda. Amar a Deus é cumprir o seu projeto de
amor, que se concretiza na solidariedade, na partilha, no serviço, no dom da
vida aos irmãos.
Este texto frisa que é preciso “amar o próximo como a si
mesmo”. Ora, a expressão “como a si mesmo” não implica qualquer espécie de
condicionalismo, mas postula o imperativo de amar totalmente, de todo o
coração.
Noutros textos mateanos, Jesus explica aos discípulos que é
preciso amar os inimigos e orar pelos perseguidores (cf Mt 5,43-48). É, portanto, um amor sem limites,
sem medida e que não distingue entre bons e maus, amigos e inimigos. Aliás,
Lucas, ao contar este mesmo episódio, acrescenta-lhe a história do “bom samaritano”, explicando que o “amor
aos irmãos” pedido por Jesus é incondicional e deve atingir todo o irmão que
encontrarmos nos caminhos da vida, mesmo que ele seja um estrangeiro ou inimigo
(cf Lc 10,25-37).
Na verdade,
não podemos ser como aquele legisla ardiloso que não se centrava em Deus e no próximo.
Não era o amor que o movia, mas o enlaçamento ardiloso aos outros. Por isso,
requer-se a cada um a vigilância sobre si próprio a discernir o que realmente o
move.
Como se
disse, a resposta de Jesus não é inteiramente original, a não ser na medida e
na intensidade do amor e na junção dos dois amores que pareciam diversos. Com
efeito, a lição do Livro do Êxodo (Ex 22,20-26) deste domingo serve de lastro à página do Evangelho:
Deus ama com especial predileção os necessitados, em que a Bíblia vê
particularmente o pobres, o órfão, a viúva e o estrangeiro, e manda que façamos
como Ele, pois Deus não tolera qualquer armadilha que lhes seja feita ou
qualquer opressão, exploração ou descarte.
E, a este
respeito, Frei Bento Domingues, OP, na crónica do Público deste dia 25 de outubro sob o título “Ninguém pode salva-se sozinho”, lembra-nos que “o mundo todo foi e é feito de migrantes”,
pois “não fomos os primeiros a ocupar o território em que hoje vivemos”, pelo
que “o desprezo ou ódio pelo estrangeiro, em nome dum nacionalismo cego, tem
tanto de antigo como de errado”. São – penso eu – a ignorância da dignidade do
outro e o receio de que o estranho possa disputar o nosso domínio ou escapar-se
ao nosso poderio e ambição que nos levam, primeiro, à indiferença e, depois, ao
ódio, ao conflito e à guerra, os quais, geram a fome, a doença física e/ou
mental, as migrações forçadas, a escravidão, o descarte e podem criar condições
propícias para o surgimento das epidemias. E no texto bíblico o dominicano faz
assentar a receita do Papa Francisco para o migrante – aplicáveis aos demais
fragilizados pela sorte ou pela malícia humana – sintetizada na tetralogia: acolher, proteger, promover e integrar.
Enfim: “Armemos os nossos filhos com as armas do
diálogo. Ensinemos-lhes a boa batalha do encontro” (Fratelli
tutti, 129-135 e 217).
2020.10.25 – Louro de Carvalho
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