domingo, 25 de outubro de 2020

Atentar no essencial e ter em conta a instrumentalidade das outras coisas

 

Na floresta dos 613 preceitos – 365 de proibição (quantos os dias do ano) e 248 de obrigação (quantos os membros do corpo humano segundo a mentalidade epocal) – que os rabinos concluíram da minuciosa leitura que fizeram do Pentateuco ou Torah (Génesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio), onde está inscrita a Lei cuja parte nevrálgica é o Decálogo (Os 10 mandamentos dados por Deus a Moisés, inscritos em duas tábuas de pedra e que ele apresentou ao povo), era muito difícil estabelecer uma hierarquia que respondesse às exigências da Lei e lhe espelhasse a sublimidade. Por isso, as discussões em torno desta questão eram recorrentes, pois a Lei há de iluminar toda a vida do quotidiano e colmatar as necessidades do homem.

É neste contexto que os fariseus, sabendo que Jesus tinha enchinelado os saduceus, se reuniram em grupo para O experimentarem (vd o verbo grego “peirázô”: montar um laço; de “peîra”, astúcia, sedução, prova). E Mateus relata o episódio na perícopa evangélica assumida para este XXX domingo do Tempo Comum no Ano A (Mt 22,34-40).

Estamos perante os últimos dias terrenos de Jesus. Os líderes judaicos já tinham feito a sua escolha e têm ideias definidas acerca da de Jesus: segundo eles a proposta de Jesus não vem de Deus, pelo que deve ser rejeitada e, por conseguinte, Ele deve ser denunciado, julgado e condenado de forma exemplar. Para tanto, é preciso encontrar móbeis para a acusação. E, neste ambiente, o autor humano do 1.º Evangelho situa três controvérsias entre Jesus e os fariseus, que têm em vista armadilhar de forma incontornável a figura do novo Mestre e surpreendê-Lo em asserções polémicas utilizáveis em tribunal para conseguir a condenação. Assim, depois das controvérsias sobre o tributo a César (cf Mt 22,15-22) e sobre a ressurreição dos mortos (cf Mt 22,23-33), vem à tona a controvérsia sobre o maior mandamento da Lei (cf Mt 22,34-40). A ideia era demonstrar que Jesus não sabia interpretar a Lei, pelo que não era digno de crédito.

Por isso, quem toma a palavra para dirigir a pergunta a Jesus é um doutor da Lei (ou legista: nomikós) – é esta a única menção desta figura humana em Mateus – em nome dos fariseus que se tinham reunido para armarem a cilada a Jesus, tal como o fizeram em situações anteriores e o farão em Mateus 22,41, antes da pergunta decisiva de Jesus (Aí é Jesus quem formula a pergunta) acerca da filiação do Messias, que os reduzirá ao silêncio (Mt 22,46).

Dom António Couto, Bispo de Lamego, vê nas sucessivas reuniões dos fariseus para estudarem a forma de tramar Jesus “uma clara alusão ao Salmo 2, em que se diz que os reis das nações se amotinam contra Deus e contra o seu Messias (Sl 2,2).

A pergunta que o legista fariseu coloca a Jesus “Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?” (Mt 22,36: didáskale, poía entolê megálê en tôi nómôi), embora de aparência inofensiva, destina-se a tentar arrastar Jesus para a interminável discussão académica cujo conteúdo foi acima indicado, natural fonte de conflitos, pois cada mestre tinha a sua sentença e tentava fazê-la valer junto dos outros. Por isso, tornava-se oportuno perceber a posição dum Mestre que surge da Galileia sem que alguém saiba que escola tenha frequentado.

Jesus responde sem cair na ratoeira que lhe fora armada, mas excedendo e estilhaçando a pergunta formulada. Cita, antes de mais, o Livro do Deuteronómio (Dt 6,5): Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o coração, toda a alma, todas as forças(agapêseis Kýrion tón Theón sou en hólêii kardíai sou kaì en hólêii psikhêi sou kaì en hólêii dianoíai sou), ou seja, sem meias tintas. Depois, acrescenta, citando o Livro do Levítico (Lv 19,18): “Amarás o teu próximo como a ti mesmo(agapêseis tón plêsíon sou hôs seautón). Isto, depois de dizer que o segundo mandamento é semelhante ao primeiro (“hómoios”: da mesma natureza, semelhante, comum, o mesmo, conforme, igual, imutável).

Assim, ao legista, a quem apenas interessava saber qual era o primeiro mandamento da Lei no entender de Jesus, o Mestre dos Mestres respondeu cabalmente, mas fez-lhe saber qual era também o segundo mandamento da Lei. Porém, ao sublinhar a semelhança de natureza entre os dois, já não temos um primeiro e um segundo, mas dois que fazem um só corpo preceitual, pelo que se afiguram como o dado essencial para o quotidiano, para o corpo e para a alma, para a pessoa e para a comunidade. Mais: esta doutrina não muda.  

Sendo assim, então o amor a Deus verifica-se no amor ao próximo, no nosso quotidiano e nos grandes momentos. Por isso, Jesus não tem necessidade de dizer aos discípulos que amem a Deus, mas “amai-vos uns aos outros como Eu vos amei” (Jo 15,12) e “nisto saberão todos que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns pelos outros” (Jo 13,35). Por seu turno, Paulo é categórico ao dizer: “Toda a Lei se resume num só mandamento, a saber: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo(Gl 5,14). E a 1.ª Carta de João estabelece: “Se alguém declarar: ‘Eu amo a Deus!, porém odiar a seu irmão, é mentiroso, porquanto quem não ama seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não enxerga” (1Jo 4,19).

E Dom António Couto comenta:

Jesus rebenta outra vez a pergunta do ‘legista’, na conclusão que tira e em que refere que ‘Destes dois mandamentos se suspende» (krématai) (Mt 22,40), verbo só aqui usado no Novo Testamento, isto é, ‘depende’, ‘dependura’, ‘decorre’ ‘toda a Lei e os Profetas’ (Mt 22,40). Não se trata, portanto, de um final, de uma conclusão a que se chega, de um resumo, mas de um ponto de partida, de um fundamento.”.

Depois, evocando Santo Agostinho, diz:

Seria como o fundamento de um edifício espiritual que se encontra no cume, na pedra cumeeira. A locução ‘a Lei e os Profetas’ é uma forma de dizer toda a Escritura. A pergunta do ‘legista’ visava apenas a Lei, mas Jesus acrescenta ‘os Profetas’, clarificando, pois, na sua resposta, que é a inteira Escritura que está atravessada pelo fio de ouro do AMOR a Deus e ao próximo.”.

Ora, se a medida do amor que devemos aos outros é Jesus, a medida do amor que damos a Deus é a qualidade do amor em que envolvemos o próximo. O próprio Cristo o afirma ao dizer que é pelo amor de uns aos outros que reconhecerão que somos seus discípulos, Paulo o considera ao dizer que toda a Lei se resume no amor ao próximo e a 1.ª carta de João faz consistir a verdade da amor a Deus no amor ao próximo.  

A resposta de Jesus, como se viu, supera o limitado horizonte da pergunta, situando-se ao nível das opções profundas que o homem deve fazer. O importante, na perspetiva de Jesus, não é definir qual o mandamento mais importante, mas encontrar a raiz de todos os mandamentos. E essa raiz gira à volta de duas coordenadas: o amor a Deus e o amor ao próximo, sendo que a Lei e os Profetas são comentários a estes dois mandamentos e os seus ditames servem de instrumento de concretização prática desse duplo e único mandamento do amor.

Os cristãos de Mateus usavam a expressão “a Lei e os Profetas” para se referirem aos livros inspirados do Antigo Testamento, que apresentavam a revelação de Deus (cf Mt 5,17; 7,12). Assim, dizer que “nestes dois mandamentos se resumem a Lei e os Profetas” (v. 40), significa que eles encerram toda a revelação de Deus, contendo a totalidade da proposta de Deus.

A originalidade deste sumário evangélico da Lei não está nas ideias de amor a Deus e ao próximo, bem conhecidas do Antigo Testamento: Jesus limita-Se a citar Dt 6,5 (no respeitante ao amor a Deus) e Lv 19,18 (no respeitante ao amor ao próximo). A originalidade está no facto de Jesus os aproximar um do outro, pondo-os em perfeito paralelo e no facto simplificar e concentrar toda a revelação de Deus neste duplo e único mandamento. Portanto, o compromisso religioso (que é proposto aos crentes, quer do Antigo, quer do Novo Testamento) resume-se no amor (agapê), que é doação.

Jesus não se preocupou muito com o cumprimento dos rituais litúrgicos do judaísmo, nem viveu obcecado com o oferecimento de dons materiais a Deus. A sua grande preocupação era discernir a vontade do Pai e a cumpri-la com fidelidade e amor. “Amar a Deus” é, pois, na perspetiva de Jesus, estar atento ao desígnio do Pai e procurar concretizá-lo na vida quotidiana. E isto passa por fazer da vida uma entrega de amor aos irmãos, se necessário até ao dom total de si mesmo, como Ele fez. Assim, na ótica de Jesus, amor a Deus e amor aos irmãos estão umbilicalmente associados. Não são dois preceitos diversos, mas como que duas faces da mesma moeda. Amar a Deus é cumprir o seu projeto de amor, que se concretiza na solidariedade, na partilha, no serviço, no dom da vida aos irmãos.

Este texto frisa que é preciso “amar o próximo como a si mesmo”. Ora, a expressão “como a si mesmo” não implica qualquer espécie de condicionalismo, mas postula o imperativo de amar totalmente, de todo o coração.

Noutros textos mateanos, Jesus explica aos discípulos que é preciso amar os inimigos e orar pelos perseguidores (cf Mt 5,43-48). É, portanto, um amor sem limites, sem medida e que não distingue entre bons e maus, amigos e inimigos. Aliás, Lucas, ao contar este mesmo episódio, acrescenta-lhe a história do “bom samaritano”, explicando que o “amor aos irmãos” pedido por Jesus é incondicional e deve atingir todo o irmão que encontrarmos nos caminhos da vida, mesmo que ele seja um estrangeiro ou inimigo (cf Lc 10,25-37).

Na verdade, não podemos ser como aquele legisla ardiloso que não se centrava em Deus e no próximo. Não era o amor que o movia, mas o enlaçamento ardiloso aos outros. Por isso, requer-se a cada um a vigilância sobre si próprio a discernir o que realmente o move.

Como se disse, a resposta de Jesus não é inteiramente original, a não ser na medida e na intensidade do amor e na junção dos dois amores que pareciam diversos. Com efeito, a lição do Livro do Êxodo (Ex 22,20-26) deste domingo serve de lastro à página do Evangelho: Deus ama com especial predileção os necessitados, em que a Bíblia vê particularmente o pobres, o órfão, a viúva e o estrangeiro, e manda que façamos como Ele, pois Deus não tolera qualquer armadilha que lhes seja feita ou qualquer opressão, exploração ou descarte.

E, a este respeito, Frei Bento Domingues, OP, na crónica do Público deste dia 25 de outubro sob o título “Ninguém pode salva-se sozinho”, lembra-nos que “o mundo todo foi e é feito de migrantes”, pois “não fomos os primeiros a ocupar o território em que hoje vivemos”, pelo que “o desprezo ou ódio pelo estrangeiro, em nome dum nacionalismo cego, tem tanto de antigo como de errado”. São – penso eu – a ignorância da dignidade do outro e o receio de que o estranho possa disputar o nosso domínio ou escapar-se ao nosso poderio e ambição que nos levam, primeiro, à indiferença e, depois, ao ódio, ao conflito e à guerra, os quais, geram a fome, a doença física e/ou mental, as migrações forçadas, a escravidão, o descarte e podem criar condições propícias para o surgimento das epidemias. E no texto bíblico o dominicano faz assentar a receita do Papa Francisco para o migrante – aplicáveis aos demais fragilizados pela sorte ou pela malícia humana – sintetizada na tetralogia: acolher, proteger, promover e integrar.

Enfim: “Armemos os nossos filhos com as armas do diálogo. Ensinemos-lhes a boa batalha do encontro(Fratelli tutti, 129-135 e 217).

2020.10.25 – Louro de Carvalho

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