terça-feira, 20 de outubro de 2020

Mal vai o país quando a grande forma de luta é a objeção de consciência

 

Quando há tempos vi dois dos bispos de Portugal a subscrever o manifesto em que 85 personalidades supostamente conotadas com a ala conservadora da política portuguesa, pensei que tal não significaria o compromisso da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) e, portanto, da hierarquia da Igreja Católica que vive e age no país. E, assim, apreciei o contraponto que um grupo de católicos lhes apresentou. Isto, para não falar do muito maior número de cidadãos que subscreveram um outro manifesto alegadamente mais alinhado com a corrente política educativa e os programas de educação que tentam concretizá-la.

Em termos sintéticos, os subscritores do manifesto em que que alinharam dois bispos pretendia a índole facultativa da disciplina de “Cidadania e Desenvolvimento” com base na objeção de consciência prevista na Constituição e supostamente apadrinhada pela Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE). Por outro lado, talvez para não serem encostados à linha educativa da Igreja Católica, ancoravam o manifesto no “imperativo” de que as políticas públicas de educação, em Portugal, “respeitem sempre escrupulosamente a prioridade do direito e do dever das mães e pais de escolherem o género de educação a dar aos seus filhos”, como se lê na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH).

Entretanto, no início de setembro, o Conselho Permanente da CEP manifestou a disponibilidade dos bispos católicos para debater o papel da disciplina de Cidadania nas escolas do país (isto já compromete e a CP), assinalando que “a igualdade de todos, nos vários papéis sociais, não significa a indistinção de cada um, no respeitante à sua unidade psicofísica, à complementaridade masculino-feminino ou à herança cultural que as famílias legitimamente transportam”.

Agora, a propósito da Semana Nacional da Educação (SNE), que decorre de 18 a 25 de outubro, Dom Francisco Senra Coelho, Arcebispo de Évora, recordando, que “num passado recente” era “muito maior” o número das instituições de ensino privado, incluindo as da Igreja Católica, mas, que, “apesar da sua excelente qualidade e do apreço das famílias, foram sendo encerradas por crescentes pressões e dificuldades”, vem também desferir o seu ataque à corrente educação para a cidadania, considerando-a “fruto de esquemas ideológicos eivados de princípios, segundo os quais se pretende que a escola deva ser exclusivamente estatal e os programas de índole materialista conduzidos pela ideologia de género, nomeadamente na programação da disciplina Cidadania e desenvolvimento”.

O metropolita eborense observa que, “de modo lento, progressivo, mas eficaz”, o ensino público, de organização privada, se foi “extinguindo” até ao contexto atual de “um ensino quase exclusivamente estatal e monolítico”, com as novas gerações, “os filhos e netos, [que] passaram a ser menos da família e mais do Estado”. E, alertando para um contexto de “retrocesso das liberdades fundamentais”, na escolha livre do ensino por parte dos encarregados de educação e numa “constatação de cariz totalitário crescente”, explicita:

Percebe-se, claramente, que as conceções económicas das minorias ao partido dominante que pretende fazer passar os seus orçamentos de Estado, são pagas na área dos valores, muito especialmente do ensino, bem como nas questões éticas fraturantes que dividem a opinião pública e geram fraturas graves na unidade de um povo de cerca de dez milhões de pessoas, esquecendo-nos nós, que perante as grandes dificuldades que atravessamos”.

A pari, o prelado eborense manifesta “uma palavra de apreço e reconhecimento eclesial” a todos os “incansáveis e corajosos educadores cristãos” e recorda “a obra da catequese, os colégios católicos, as IPSS dedicadas às crianças, adolescentes e jovens, a pastoral e os movimentos eclesiais juvenis, a Pastoral Universitária, os professores de Religião e Moral Católica, todos os colaboradores ao serviço desta missão”, garantindo a todos “comunhão, apreço e gratidão”.

Por sua vez, Dom Jorge Ortiga, Arcebispo de Braga e Primaz das Espanhas, na sua nota dedicada à Educação, sublinha a importância de respeitar a consciência e a liberdade de escolha dos pais, na relação com o Estado, porque “os pais têm direito de poder escolher livremente o tipo de educação – acessível e de qualidade – que querem dar aos seus filhos, de acordo com as suas convicções”, pois “a escola não substitui os pais; serve-lhes de complemento”.

Por outro lado, o Arcebispo Primaz vinca a importância duma “correta educação para a cidadania”, que “cimenta a unidade e coesão sociais”, sustentando que se deve basear em “valores consensuais”, pois, como adverte, “se for um instrumento de doutrinação ideológica, tomando partido em questões que não recolhem esse consenso, não será fator de unidade, mas de divisão e de uma imposição de pendor totalitário, contrária aos direitos da família”.

E, neste âmbito, questiona, em particular, a matéria da educação sexual, que se integra atualmente na disciplina de Cidadania e Desenvolvimento. Esquece que não é só nesta!

A nota fala numa “tentativa de imposição, ofensiva das convicções éticas e religiosas das famílias dos educandos”, considerando que estas têm o direito de ser informadas “do conteúdo das lições ou atividades e de sobre ele darem parecer”. Aponta que “a “primazia” da família sobre o Estado “poderá justificar até, como último recurso, a recusa de frequência dessas aulas ou atividades, com invocação do direito de objeção de consciência”. E, num horizonte de um “combate” em “prol da liberdade de educação e do direito dos progenitores escolherem o tipo de educação a dar aos seus filhos”, Dom Jorge Ortiga declara e apela:

A Arquidiocese bracarense exorta as autoridades académicas competentes, bem como os pais destes alunos para que, por via do consenso possível, encontrem uma solução que não penalize os referidos alunos, nem os obrigue a um retrocesso que em muito prejudicaria a sua vida pessoal e académica. Assim saibamos aproveitar esta oportunidade.”.

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Considero positivo que a sociedade civil e também o episcopado se disponibilize para o debate em torno da cidadania. Não obstante, devo dizer que temos andado distraídos porquanto o debate está aberto desde 14 de outubro de 1986, com a publicação da LBSE (Lei n.º 46/86, de 14 de outubro, cuja última alteração foi introduzida pela Lei n.º 85/2009, de 27 de agosto). E, no âmbito da discussão da reforma educativa, em que pontificava o insuspeito Roberto Carneiro o diploma, o diploma regulamentador que estabeleceu o desenho curricular criou, para todos os ciclos de ensino, a disciplina de desenvolvimento pessoal e social alternativa à Educação Moral e Religiosa (EMRC) e a Área Escola. Em 2001, no consulado do católico António Guterres, foram criadas as áreas de projeto e de formação cívica (além do estudo acompanhado), que ruíram por motivos economicistas.

Há uns anos a esta parte, depois de alargado debate promovido pela Direção-Geral da Educação, estabeleceu-se a “Estratégia Nacional da Educação para a Cidadania”, com formação cívica transversal na educação pré-escolar, no 1.º CEB (Ciclo do Ensino Básico) e no ensino secundário e em regime de disciplina autónoma no 2.º e 3.º CEB. Lamento ironicamente que apenas um casal, em todo o país, tenha estado com atenção ao debate e tenha forçado o abandono da aula em nome da objeção de consciência, invocada a posteriori. Porém, fugir da aula não é atitude responsável e invocar a objeção de consciência contra uma disciplina crucial não é sério. E porquê a Cidadania e Desenvolvimento e não a História, a Geografia, as Ciências da Natureza, a Filosofia, a Psicologia, o Português, a Literatura Portuguesa, a História da Arte, a Biologia, a Sociologia, a Biologia, a Antropologia, o Direito, a Economia, o Estudo do Meio, a Expressão Artística…? Por este andar, se a CEP analisasse os programas de todas as disciplinas, ficaria horrorizada ou teceria loas à Cidadania e Desenvolvimento!

Aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o género de educação a dar aos filhos”, reza o n.º 3 do art.º 26.º da DUDH. E os pais são os primeiros educadores, diz a Igreja Católica. Ora, em nome destas sapientes asserções, a obrigação da escola pública, como a da escola privada, é a articulação da escola com a família e a informação sistemática e a audição aos encarregados de edução, no que se exagera quando se permite que estes queiram determinar conteúdos e técnicas de educação. Por outro lado, as associações de pais/encarregados de educação são ouvidas na definição e implementação das políticas educativas. Onde estavam aquando do debate sobre a cidadania ou quando ela caiu por motivos economicistas?

Por outro lado, a questão não é a da liberdade da escolha da escola, que está estabelecida entre público e privado, mas a da suposta obrigatoriedade de o Estado pagar o ensino privado. E aí é que o Estado tem dificuldade em responder a contento. Mas não se tape o sol com a peneira!

Antes do papel dos pais, a DUDH estabelece, no n.º 1 do mesmo artigo 26.º, o direito de todos à educação, a gratuitidade do ensino (sobretudo do elementar), e a generalização do ensino técnico e profissional, bem como o acesso ao ensino superior a todos em condições de igualdade, com base no mérito (Por cá anda-se à caça da nota). E diz algo, no n.º 2, que a CEP também poderia ler:

A educação deve visar a plena expansão da personalidade humana e o reforço dos direitos do homem e das liberdades fundamentais e deve favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais ou religiosos, bem como o desenvolvimento das atividades das Nações Unidas para a manutenção da paz”.

Ora, para atingir estas finalidades, não é lícito o recurso à fuga da aula ou à objeção de consciência, mas estar com atenção ao debate, intervir na altura própria e pedir aos docentes a cintilação na abordagem das matérias mais discutíveis. De resto, no atinente à educação sexual, um dos temas ora contestados, forças da Igreja Católicas, nomeadamente os salesianos, desenvolveram programas que assumiram notável pioneirismo e têm sido bem acolhidos.

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Resta enaltecer a recente nota Fortalecer e Apoiar a Família, Igreja Doméstica e a iniciativa (SNE) da Comissão da Comissão Episcopal da Educação Cristã e Doutrina da Fé (CEECDF).

Diz a nota que é fundamental dialogar com as famílias para “a possibilidade de alternar a catequese presencial na paróquia com a formação em família, sem esquecer a necessidade da sistematização da formação que identifica a catequese”. E a CEECDF dirige a “todos os obreiros da educação cristã” uma mensagem de “apreço e incentivo pela dedicação e coragem com que abraçam este desafio em tempos de incerteza e de dificuldades variadas”.

De facto, a “experiência do distanciamento de forma surpreendente e inusitada” e de “paragem no ritmo acelerado dos afazeres” e no suceder de (pre)ocupações “reduziu ou empobreceu muitas dimensões da vida humana de grande significado e riqueza, como o convívio social, as assembleias religiosas, a alegria das festas, o rebuliço das crianças”. Todavia, evidenciou “a importância fundamental da família na transmissão da vida e dos valores humanos e cristãos”, bem como “da sua função insubstituível na construção de laços, na educação dos afetos, no acolhimento mútuo”. Por consequência, a situação pede um “novo olhar” e que se prepare “um futuro diferente e redescobrir nesse horizonte o lugar fundamental da família”, tendo em conta que a Catequese, a EMRC e a Escola Católica têm “prestado atenção e cuidado à família, na sua missão evangelizadora, com propostas válidas para apoiar a sua missão educativa”, que as circunstâncias presentes tornam “imperioso” aprofundar abrindo “caminhos para o futuro”.

E a CEECDF adverte:

Não é com um regresso ao passado, como alguns sonham, mas com um discernimento lúcido dos sinais dos tempos e com a colaboração esclarecida de todos que podemos promover a formação humana e cristã nas diferentes realidades educativas”.

Quanto à recente iniciativa ora em curso, em que se destaca a Jornada Nacional da Educação Cristã, é de relevar que, em menos de 24 horas mais de 500 catequistas, de todas as dioceses do país e alguns do estrangeiro, esgotaram os lugares previstos na plataforma digital Zoom onde a iniciativa decorre pela 1.ª vez em virtude da pandemia – o que, no dizer da coordenadora do departamento de Catequese no SNEC (Secretariado Nacional da Educação Cristã), parece “um sinal de como a catequese está viva na nossa Igreja, “significa que os catequistas, na sua generosidade, estão atentos ao trabalho diocesano e nacional e mostra como se adaptaram às novas exigências da vida em comum”,

Numa edição online, a particularidade surge da “atenção” que a iniciativa mereceu “além-fronteiras” com inscrições de catequistas da Bélgica, Angola e Brasil, sendo, para o SNEC, “um sinal “de enorme alegria” e uma possibilidade de “acolher os irmãos de outras latitudes”, bem como “o sinal de unidade na diversidade da Igreja e das possibilidades que a tecnologia nos dá de estarmos em comunhão, de partilharmos experiências, de rezarmos em conjunto”.

A edição (nas páginas do Facebook e do Youtube da Educação Cristã) que aprofunda o tema “Catequese e Família” é uma oportunidade de elencar e aprofundar alguns “princípios essenciais” na reflexão da Igreja acerca da família dando, definitivamente, um lugar “aos pais” na transmissão da fé”. Com efeito, como diz Cristina Carvalho, a coordenadora do predito Departamento, “embora todos tenhamos uma família, tenhamos nascido numa, temos de pensar porque nos é difícil partilhar o esforço educativo da catequese com os pais, porque nos custa acolher os pais, porque não lidamos com eles com fluência e convicção”.

Para Cristina Sá Carvalho, trata-se dum processo de interiorização da “mensagem que o Papa Francisco nos deixou: ninguém se salva sozinho, precisamos todos, e muito, uns dos outros” – e, por outro lado, “uma das coisas que estamos a descobrir, com uma clareza e com uma evidência novas, durante este período de pandemia, é que a catequese precisa dos pais e beneficia imenso da presença deles, da sua participação, da sua opinião”.

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Por fim, há que ter em conta o necessário realismo. É óbvio que é imperioso reconhecer o direito e o dever dos pais em matéria educativa. Mas, quantas famílias não sabem, não querem, não podem assumir este encargo de forma preponderante! É a falta de conhecimento, de tempo, de paciência (resultante do cansaço motivado pelo excesso de trabalho), de recursos… e não podem a estas crianças, adolescentes e jovens negar-se a escola pública ou privada, sendo que são os poderes públicos que têm este dever eminente de olhar para os mais deserdados. E, quando têm de ser as Igrejas a substituir Estado, por muito e bem que façam, algo vai mal no reino dos homens. E, se nos dermos ao recurso da objeção de consciência em matéria educativa, pior! Se nos lembrássemos dos milhões de crianças e adolescentes que não têm acesso à alimentação, educação, saúde e proteção social…, diríamos que estamos num país de luxo.  

Em contrapartida, as Igrejas e as instituições cívicas são instadas pelas circunstâncias a investir reforçadamente na formação dos seus elementos e destinatários com propostas de humanidade, justiça e fraternidade!

2020.10.20 – Louro de Carvalho     

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