Quando
há tempos vi dois dos bispos de Portugal a subscrever o manifesto em que 85
personalidades supostamente conotadas com a ala conservadora da política
portuguesa, pensei que tal não significaria o compromisso da Conferência
Episcopal Portuguesa (CEP) e, portanto, da hierarquia da Igreja Católica que
vive e age no país. E, assim, apreciei o contraponto que um grupo de católicos
lhes apresentou. Isto, para não falar do muito maior número de cidadãos que
subscreveram um outro manifesto alegadamente mais alinhado com a corrente
política educativa e os programas de educação que tentam concretizá-la.
Em termos sintéticos, os subscritores do manifesto em que que
alinharam dois bispos pretendia a índole facultativa da disciplina de “Cidadania e Desenvolvimento” com base na
objeção de consciência prevista na Constituição e supostamente apadrinhada pela
Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE).
Por outro lado, talvez para não serem encostados à linha educativa da Igreja
Católica, ancoravam o manifesto no “imperativo” de que as políticas públicas de
educação, em Portugal, “respeitem sempre escrupulosamente a prioridade do
direito e do dever das mães e pais de escolherem o género de educação a dar aos
seus filhos”, como se lê na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH).
Entretanto, no início de setembro, o Conselho Permanente da
CEP manifestou a disponibilidade dos bispos católicos para debater o papel da
disciplina de Cidadania nas escolas do país (isto já compromete e a CP), assinalando que “a igualdade de todos, nos vários
papéis sociais, não significa a indistinção de cada um, no respeitante à sua
unidade psicofísica, à complementaridade masculino-feminino ou à herança
cultural que as famílias legitimamente transportam”.
Agora, a
propósito da Semana Nacional da Educação (SNE), que decorre de 18 a 25 de
outubro, Dom Francisco Senra Coelho, Arcebispo de Évora, recordando, que “num
passado recente” era “muito maior” o número das instituições de ensino privado,
incluindo as da Igreja Católica, mas, que, “apesar da sua excelente qualidade e
do apreço das famílias, foram sendo encerradas por crescentes pressões e
dificuldades”, vem também desferir o seu ataque à corrente educação para a
cidadania, considerando-a “fruto de esquemas ideológicos eivados de princípios,
segundo os quais se pretende que a escola deva ser exclusivamente estatal e os
programas de índole materialista conduzidos pela ideologia de género,
nomeadamente na programação da disciplina Cidadania
e desenvolvimento”.
O metropolita eborense observa que, “de modo lento,
progressivo, mas eficaz”, o ensino público, de organização privada, se foi “extinguindo”
até ao contexto atual de “um ensino quase exclusivamente estatal e monolítico”,
com as novas gerações, “os filhos e netos, [que] passaram a ser menos da
família e mais do Estado”. E, alertando para um contexto de “retrocesso das
liberdades fundamentais”, na escolha livre do ensino por parte dos encarregados
de educação e numa “constatação de cariz totalitário crescente”, explicita:
“Percebe-se, claramente, que as conceções
económicas das minorias ao partido dominante que pretende fazer passar os seus
orçamentos de Estado, são pagas na área dos valores, muito especialmente do
ensino, bem como nas questões éticas fraturantes que dividem a opinião pública
e geram fraturas graves na unidade de um povo de cerca de dez milhões de
pessoas, esquecendo-nos nós, que perante as grandes dificuldades que
atravessamos”.
A pari, o prelado eborense manifesta “uma
palavra de apreço e reconhecimento eclesial” a todos os “incansáveis e
corajosos educadores cristãos” e recorda “a obra da catequese, os colégios
católicos, as IPSS dedicadas às crianças, adolescentes e jovens, a pastoral e
os movimentos eclesiais juvenis, a Pastoral Universitária, os professores de
Religião e Moral Católica, todos os colaboradores ao serviço desta missão”,
garantindo a todos “comunhão, apreço e gratidão”.
Por sua vez, Dom Jorge Ortiga, Arcebispo de Braga e Primaz
das Espanhas, na sua nota dedicada à Educação, sublinha a importância de
respeitar a consciência e a liberdade de escolha dos pais, na relação com o
Estado, porque “os pais têm direito de poder escolher livremente o tipo de
educação – acessível e de qualidade – que querem dar aos seus filhos, de acordo
com as suas convicções”, pois “a escola não substitui os pais; serve-lhes de
complemento”.
Por outro lado, o Arcebispo Primaz vinca a importância duma
“correta educação para a cidadania”, que “cimenta a unidade e coesão sociais”,
sustentando que se deve basear em “valores consensuais”, pois, como adverte, “se
for um instrumento de doutrinação ideológica, tomando partido em questões que
não recolhem esse consenso, não será fator de unidade, mas de divisão e de uma
imposição de pendor totalitário, contrária aos direitos da família”.
E, neste âmbito, questiona, em particular, a matéria da
educação sexual, que se integra atualmente na disciplina de Cidadania e
Desenvolvimento. Esquece que não é só nesta!
A nota fala numa “tentativa de imposição, ofensiva das
convicções éticas e religiosas das famílias dos educandos”, considerando que
estas têm o direito de ser informadas “do conteúdo das lições ou atividades e
de sobre ele darem parecer”. Aponta que “a “primazia” da família sobre o Estado
“poderá justificar até, como último recurso, a recusa de frequência dessas
aulas ou atividades, com invocação do direito de objeção de consciência”. E, num
horizonte de um “combate” em “prol da liberdade de educação e do direito dos
progenitores escolherem o tipo de educação a dar aos seus filhos”, Dom Jorge
Ortiga declara e apela:
“A Arquidiocese bracarense exorta as
autoridades académicas competentes, bem como os pais destes alunos para que,
por via do consenso possível, encontrem uma solução que não penalize os
referidos alunos, nem os obrigue a um retrocesso que em muito prejudicaria a
sua vida pessoal e académica. Assim saibamos aproveitar esta oportunidade.”.
***
Considero
positivo que a sociedade civil e também o episcopado se disponibilize para o
debate em torno da cidadania. Não obstante, devo dizer que temos andado
distraídos porquanto o debate está aberto desde 14 de outubro de 1986, com a
publicação da LBSE (Lei
n.º 46/86, de 14 de outubro, cuja última alteração foi introduzida pela Lei n.º
85/2009, de 27 de agosto).
E, no âmbito da discussão da reforma educativa, em que pontificava o insuspeito
Roberto Carneiro o diploma, o diploma regulamentador que estabeleceu o desenho curricular
criou, para todos os ciclos de ensino, a disciplina de desenvolvimento pessoal
e social alternativa à Educação Moral e Religiosa (EMRC) e a Área Escola. Em 2001, no consulado do católico António
Guterres, foram criadas as áreas de projeto e de formação cívica (além do estudo acompanhado), que ruíram por motivos
economicistas.
Há uns anos a
esta parte, depois de alargado debate promovido pela Direção-Geral da Educação,
estabeleceu-se a “Estratégia Nacional da
Educação para a Cidadania”, com formação cívica transversal na educação
pré-escolar, no 1.º CEB (Ciclo
do Ensino Básico) e no
ensino secundário e em regime de disciplina autónoma no 2.º e 3.º CEB. Lamento ironicamente
que apenas um casal, em todo o país, tenha estado com atenção ao debate e tenha
forçado o abandono da aula em nome da objeção de consciência, invocada a posteriori. Porém, fugir da aula não é
atitude responsável e invocar a objeção de consciência contra uma disciplina
crucial não é sério. E porquê a Cidadania e Desenvolvimento e não a História, a
Geografia, as Ciências da Natureza, a Filosofia, a Psicologia, o Português, a
Literatura Portuguesa, a História da Arte, a Biologia, a Sociologia, a
Biologia, a Antropologia, o Direito, a Economia, o Estudo do Meio, a Expressão
Artística…? Por este andar, se a CEP analisasse os programas de todas as disciplinas,
ficaria horrorizada ou teceria loas à Cidadania e Desenvolvimento!
“Aos pais pertence a prioridade do direito de
escolher o género de educação a dar aos filhos”, reza o n.º 3 do art.º 26.º
da DUDH. E os pais são os primeiros educadores, diz a Igreja Católica. Ora, em
nome destas sapientes asserções, a obrigação da escola pública, como a da
escola privada, é a articulação da escola com a família e a informação
sistemática e a audição aos encarregados de edução, no que se exagera quando se
permite que estes queiram determinar conteúdos e técnicas de educação. Por
outro lado, as associações de pais/encarregados de educação são ouvidas na
definição e implementação das políticas educativas. Onde estavam aquando do
debate sobre a cidadania ou quando ela caiu por motivos economicistas?
Por outro
lado, a questão não é a da liberdade da escolha da escola, que está
estabelecida entre público e privado, mas a da suposta obrigatoriedade de o
Estado pagar o ensino privado. E aí é que o Estado tem dificuldade em responder
a contento. Mas não se tape o sol com a peneira!
Antes do
papel dos pais, a DUDH estabelece, no n.º 1 do mesmo artigo 26.º, o direito de
todos à educação, a gratuitidade do ensino (sobretudo do elementar), e a generalização do ensino técnico e profissional, bem
como o acesso ao ensino superior a todos em condições de igualdade, com base no
mérito (Por cá anda-se à
caça da nota). E diz
algo, no n.º 2, que a CEP também poderia ler:
“A
educação deve visar a plena expansão da personalidade humana e o reforço dos
direitos do homem e das liberdades fundamentais e deve favorecer a compreensão,
a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais ou
religiosos, bem como o desenvolvimento das atividades das Nações Unidas para a
manutenção da paz”.
Ora, para
atingir estas finalidades, não é lícito o recurso à fuga da aula ou à objeção
de consciência, mas estar com atenção ao debate, intervir na altura própria e
pedir aos docentes a cintilação na abordagem das matérias mais discutíveis. De
resto, no atinente à educação sexual, um dos temas ora contestados, forças da
Igreja Católicas, nomeadamente os salesianos, desenvolveram programas que
assumiram notável pioneirismo e têm sido bem acolhidos.
***
Resta enaltecer a recente nota ‘Fortalecer e Apoiar a Família, Igreja
Doméstica’ e a iniciativa (SNE) da Comissão da Comissão Episcopal
da Educação Cristã e Doutrina da Fé (CEECDF).
Diz a nota que é
fundamental dialogar com as famílias para “a possibilidade de alternar a
catequese presencial na paróquia com a formação em família, sem esquecer a
necessidade da sistematização da formação que identifica a catequese”. E a CEECDF dirige a “todos os obreiros da educação
cristã” uma mensagem de “apreço e incentivo pela dedicação e coragem com que
abraçam este desafio em tempos de incerteza e de dificuldades variadas”.
De facto, a “experiência do distanciamento de forma surpreendente
e inusitada” e de “paragem no ritmo acelerado dos afazeres” e no suceder de
(pre)ocupações “reduziu ou empobreceu muitas dimensões da vida humana de grande
significado e riqueza, como o convívio social, as assembleias religiosas, a
alegria das festas, o rebuliço das crianças”. Todavia, evidenciou “a
importância fundamental da família na transmissão da vida e dos valores humanos
e cristãos”, bem como “da sua função insubstituível na construção de laços, na
educação dos afetos, no acolhimento mútuo”. Por consequência, a situação pede
um “novo olhar” e que se prepare “um futuro diferente e redescobrir nesse
horizonte o lugar fundamental da família”, tendo em conta que a Catequese, a EMRC
e a Escola Católica têm “prestado atenção e cuidado à família, na sua missão
evangelizadora, com propostas válidas para apoiar a sua missão educativa”, que as
circunstâncias presentes tornam “imperioso” aprofundar abrindo “caminhos para o
futuro”.
E a CEECDF adverte:
“Não é com um regresso ao passado, como
alguns sonham, mas com um discernimento lúcido dos sinais dos tempos e com a
colaboração esclarecida de todos que podemos promover a formação humana e
cristã nas diferentes realidades educativas”.
Quanto à recente iniciativa ora
em curso, em que se destaca a Jornada Nacional da Educação Cristã, é de relevar
que, em menos de 24
horas mais de 500 catequistas, de todas as dioceses do país e alguns do
estrangeiro, esgotaram os lugares previstos na plataforma digital Zoom onde a
iniciativa decorre pela 1.ª vez em virtude da pandemia – o que, no dizer da
coordenadora do departamento de Catequese no SNEC (Secretariado Nacional da Educação
Cristã), parece “um
sinal de como a catequese está viva na nossa Igreja, “significa que os
catequistas, na sua generosidade, estão atentos ao trabalho diocesano e
nacional e mostra como se adaptaram às novas exigências da vida em comum”,
Numa edição
online, a particularidade surge da “atenção” que a iniciativa mereceu
“além-fronteiras” com inscrições de catequistas da Bélgica, Angola e Brasil,
sendo, para o SNEC, “um sinal “de enorme alegria” e uma possibilidade de
“acolher os irmãos de outras latitudes”, bem como “o sinal de unidade na diversidade
da Igreja e das possibilidades que a tecnologia nos dá de estarmos em comunhão,
de partilharmos experiências, de rezarmos em conjunto”.
A edição (nas páginas do Facebook e
do Youtube da Educação Cristã) que aprofunda o tema “Catequese e Família” é uma
oportunidade de elencar e aprofundar alguns “princípios essenciais” na reflexão
da Igreja acerca da família dando, definitivamente, um lugar “aos pais” na
transmissão da fé”. Com efeito, como diz Cristina Carvalho, a coordenadora do
predito Departamento, “embora todos tenhamos uma família, tenhamos nascido
numa, temos de pensar porque nos é difícil partilhar o esforço educativo da
catequese com os pais, porque nos custa acolher os pais, porque não lidamos com
eles com fluência e convicção”.
Para Cristina
Sá Carvalho, trata-se dum processo de interiorização da “mensagem que o Papa
Francisco nos deixou: ninguém se salva sozinho, precisamos todos, e muito, uns
dos outros” – e, por outro lado, “uma das coisas que estamos a descobrir, com
uma clareza e com uma evidência novas, durante este período de pandemia, é que
a catequese precisa dos pais e beneficia imenso da presença deles, da sua
participação, da sua opinião”.
***
Por fim, há
que ter em conta o necessário realismo. É óbvio que é imperioso reconhecer o
direito e o dever dos pais em matéria educativa. Mas, quantas famílias não
sabem, não querem, não podem assumir este encargo de forma preponderante! É a
falta de conhecimento, de tempo, de paciência (resultante do cansaço motivado pelo excesso de
trabalho), de recursos…
e não podem a estas crianças, adolescentes e jovens negar-se a escola pública
ou privada, sendo que são os poderes públicos que têm este dever eminente de
olhar para os mais deserdados. E, quando têm de ser as Igrejas a substituir
Estado, por muito e bem que façam, algo vai mal no reino dos homens. E, se nos dermos
ao recurso da objeção de consciência em matéria educativa, pior! Se nos lembrássemos
dos milhões de crianças e adolescentes que não têm acesso à alimentação, educação,
saúde e proteção social…, diríamos que estamos num país de luxo.
Em contrapartida,
as Igrejas e as instituições cívicas são instadas pelas circunstâncias a
investir reforçadamente na formação dos seus elementos e destinatários com
propostas de humanidade, justiça e fraternidade!
2020.10.20 – Louro de
Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário