Em entrevista para um novo filme-documentário, Francisco
vincou a necessidade de os Estados oferecerem proteção legal para uniões entre
pessoas do mesmo sexo, bem como a necessidade de as pessoas homossexuais serem
devidamente acolhidas e acompanhadas na sua família.
Assim, numa das passagens do filme ‘Francesco’, de
Evgeny Afineevsky, estreado, a 21 de outubro, no Festival de Cinema de Roma,
surge a asserção papal de que “o que temos de fazer é uma lei de convivência
civil”, pois [as pessoas] “têm direito a estar protegidas legalmente”.
Isto não é novo no pensamento e atitude deste Papa. Com
efeito, em várias intervenções, desde a sua eleição pontifícia em 2013, tem
distinguido estas uniões homossexuais – aliás como as de heterossexuais –, no
plano civil, do sacramento do Matrimónio, reservado na Igreja Católica à união
entre um homem e uma mulher, porém, com a reiteração do respeito e inclusão, frisando:
“As pessoas homossexuais têm direito a estar
em família, são filhos de Deus, têm direito a uma família. Não se pode expulsar
uma pessoa da sua família ou tornar a vida impossível para ela.”.
A mesma posição tinha sido assumida em entrevista a Valentina
Alazraki, do canal
mexicano “Televisa”, em 2019, referindo:
“As pessoas homossexuais têm o direito de
estar na família; as pessoas com uma orientação homossexual têm o direito de
estar na família e os pais têm o direito de reconhecer aquele filho como
homossexual, aquela filha como homossexual. Ninguém pode ser expulso da família
ou que a sua a vida se torne impossível por isso”.
Nessa mesma entrevista, o Papa, interpelado sobre a
sua oposição ao reconhecimento dos casamentos entre pessoas do mesmo sexo na
Argentina, em 2010, que considerou uma “incongruência”, respondeu que ampliou os
seus critérios e, vendo os problemas mundiais, teve mais consciência de certas
coisas que antes não tinha.
No livro-entrevista ‘Política e sociedade’ (2017), do sociólogo francês Dominique Wolton, Francisco defendeu que o casamento
se limita às relações “entre um homem e uma mulher”, pela “natureza das coisas”
e pela história da humanidade, pelo que as uniões entre pessoas do mesmo sexo
deveriam ser chamadas “uniões civis”. E, após o Encontro Mundial das Famílias a
que presidiu na Irlanda, em agosto de 2018, sustentou que “ignorar o filho ou a
filha com uma tendência homossexual é uma falta de paternidade e maternidade”.
Durante a apresentação do relatório intermédio do
Sínodo extraordinário sobre a Família (2014), que o Papa convocou, no Vaticano, o secretário-especial dessa assembleia,
Dom Bruno Forte, disse que, do ponto de vista de “civilização”, não se pode
excluir “a busca de uma codificação de direitos que possam ser garantidos às
pessoas que vivem numa união homossexual. E o Papa, em entrevista ao
jornal italiano ‘Corriere della Sera’,
questionado sobre as uniões civis, salientou que “o matrimónio é entre um homem
e uma mulher”, mas observou:
“Os Estados laicos querem justificar as uniões
civis para regular diversas situações de convivência, movidos pela exigência de
regular aspetos económicos entre as pessoas, como, por exemplo, assegurar a
assistência sanitária. Trata-se de pactos de convivência de natureza variada,
não saberia elencar as diversas formas, mas é preciso ver os casos e avaliá-los
na sua variedade.”.
Já, em 2013, poucos meses depois do início do seu
pontificado, o Sumo Pontífice abordara o tema em entrevista à revista
jesuíta ‘La Civiltà Cattolica’,
recordando que recebeu, em Buenos Aires, várias cartas de pessoas homossexuais,
“feridos socais” nas quais estas lhe diziam sentir “que a Igreja sempre os condenou”.
Os jornalistas que acompanhavam Francisco na viagem de
regresso a Roma, desde o México, a 17 de fevereiro de 2016, questionaram-no
sobre a nota “Considerações sobre os
projetos de reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais” (2003), da Congregação para a Doutrina da Fé (Santa Sé), na qual se sustentava que “as legislações que
favorecem as uniões homossexuais são contrárias à reta razão, porque dão à
união entre duas pessoas do mesmo sexo garantias jurídicas análogas às da
instituição matrimonial”. E a resposta de Bergoglio foi que aos políticos
compete enfrentar estes temas com uma consciência “bem formada”, antes de
reafirmar, sobre as pessoas do mesmo sexo, o que disse na viagem de regresso do
Rio de Janeiro, em 2013: “Se uma pessoa é
gay e procura o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para a julgar?”. E,
fazendo referência ao Catecismo da Igreja Católica, indicou que “não se devem
marginalizar estas pessoas; por isso, devem ser integradas na sociedade”.
Em outubro de 2016, no voo de regresso a Roma, desde o
Azerbaijão, Francisco realçou, em conferência de imprensa, que as suas críticas
à ideologia do género não implicam uma rejeição de homossexuais ou transsexuais
por parte da Igreja Católica. E declarou:
“Acompanhei na minha vida de sacerdote, de
bispo e até de Papa, pessoas com tendência e também com prática homossexual (…).
Nunca abandonei ninguém.”.
E, na conferência de imprensa no final da viagem à
Arménia, reforçou a indicação de que os homossexuais não devem ser
discriminados, mas respeitados, acompanhados pastoralmente.
Também a 5 de abril de 2019, o Cardeal Pietro Parolin,
Secretário de Estado do Vaticano – um dos mais diretos colaboradores do Papa –
recebeu em audiência um grupo de cerca de 50 pessoas empenhadas na luta contra
a criminalização da homossexualidade.
***
A este respeito, o Secretariado Geral da CEP
(Conferência Episcopal Portuguesa) publicou, neste dia 22 de outubro,
uma “Breve nota da CEP ao documentário ‘Francisco’” salientando que as afirmações
do Papa “são extratos de entrevistas já
divulgadas e recolhidas pelo realizador Evgeny Afineevsky, que revelam a
atenção constante do Papa às necessidades reais da vida concreta das pessoas”,
tratando-se de “um direito de proteção legal dessas uniões, que não afetam a
doutrina da Igreja sobre o matrimónio, reservado na Igreja Católica à união
entre um homem e uma mulher”, e havendo, no mesmo documentário, outro
testemunho em que se diz explicitamente que o Papa “não tem intenção de mudar a
doutrina da Igreja”.
E a nota reapresenta algumas afirmações de Dom José Ornelas, Presidente da CEP,
sobre o tema, em entrevista à Rádio Renascença de 21 de outubro.
Diz o entrevistado que “o Papa tem defendido que as pessoas, qualquer que
seja a sua orientação sexual, têm o direito a serem respeitadas naquilo que são”
e que “os Estados têm o dever de defender e concretizar essa defesa,
legalmente, dentro do respeito pela diversidade que existe na sociedade”. Não
crê que “a Igreja Católica vá considerar que uma união entre pessoas do mesmo
sexo seja um matrimónio”, pois “igualdade de direitos e de oportunidades não
significa fazer tudo igual”, mas que, na sua individualidade, “cada um, é
respeitado em todos os momentos por aquilo que é”, devendo a sociedade e, particularmente,
o Estado “criar os mecanismos necessários para que isso seja possível, com um
quadro legislativo capaz de reconhecer a cada um a dignidade que tem tal como é
e não como eu gostava que fosse”.
***
Considerando
equilibrada a posição, quer da nota da CEP, quer da entrevista do seu
Presidente, é de estranhar o teor dos artigos aligeirados e os títulos de imprensa
que se apressam a pôr na boca de comentadores eclesiásticos, entre os quais o
Cardeal Marto, o pressuposto de que o Papa não referiu alguma vez o matrimónio
católico. Obviamente, o Papa não muda a doutrina, pelo que é redundante e,
neste momento, desnecessário, insistir no que o Papa não disse.
De momento,
importa frisar o que ele disse o sentido que lhe imprimiu pela vertente
positiva, a da igualdade de direitos, da necessidade da convivência familiar e social,
da obrigação da família para com todos os seus membros e a dos Estados para com
todos os cidadãos.
É óbvio
que incumbe à Igreja fazer e propor com clareza a doutrina, mas adotar, na sua ação
pastoral, a linha de respeito e acolhimento de todos, o mesmo que se exige aos
grupos sociais, aos empregadores, aos agentes culturais e, sobretudo às
famílias; contra a exclusão, a inclusão.
Porém,
ao Estado cumpre fazer leis que deem as mesmas oportunidades a todos e proteger
a constituição das famílias, tenham elas ou não a estrutura e a composição que
tiverem, independentemente dos gostos e perspetivas dos decisores políticos. E nisto
deve insistir a hierarquia da Igreja contrariando a tentação exclusivista e
excomungatória incrustada em tantos setores da sociedade, mesmo em ambiente
escolar e académico.
Comparo esta
posição do Papa Francisco com a de Salgado Zenha, quando Ministro da Justiça a
seguir à revolução abrilina. O artigo 24.º da Concordata entre a Santa Sé a
República Portuguesa, de 1940, estabelecia:
“Em harmonia com as propriedades essenciais do casamento católico,
entende-se que, pelo próprio facto da celebração do casamento canónico, os
cônjuges renunciarão à faculdade civil de requererem o divórcio, que por isso
não poderá ser aplicado pelos tribunais civis aos casamentos católicos”.
Nestes termos,
era vedado o divórcio aos casados catolicamente depois de 1940 (pois
as leis não retroagem “nisi aliud
expresse caveatur”),
o que beliscava a obrigação do Estado em matéria de igualdade. Com efeito, era
permitido o divórcio de casados apenas civilmente e aos casados catolicamente
antes de 1940. Tão díspar que, um cidadão altamente conservador, quando, numa
reunião em que me colocaram o problema da alteração ao predito artigo, eu explicava
isto (que
não se sabia), exclamou:
“De facto isso não prestava”.
O novo
texto referia que a Igreja Católica exortava os casados catolicamente que
renunciassem voluntariamente à faculdade de requererem o divórcio, mas o Estado
garanti-lo-ia a todos os casados que o solicitassem por motivos razoáveis. Por esse
motivo, o art.º 4.º do Decreto-Lei n.º 261/75, de 27 de maio estabelece:
“Os cônjuges casados catolicamente à data
da entrada em vigor deste diploma poderão pedir o divórcio ou a separação de
pessoas e bens, com fundamento em factos verificados anteriormente, dentro dos
dois anos subsequentes àquela data”.
Em suma,
cabe ao Estado garantir por lei e por atos administrativos e judiciais a igualdade
de todos; às famílias, o acolhimento, o apoio e o acompanhamento; aos grupos empresariais,
sociais e culturais a inclusão; e às Igrejas a formação doutrinal e a ação
pastoral adequada sem deixar ninguém para trás. Tratar, por Deus, as pessoas na
sua dignidade e respeitá-las, procurando Deus onde elas estão como são e não
como queremos que sejam, mas fazendo que cresçam e andem por si e seguindo a sua
consciência livre e plenamente responsável. são nossas irmãs e filhas de Deus.
Isto também
é Evangelho.
2020.10.22 –
Louro de Carvalho
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