quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Algo anedótico na substituição do Presidente do Tribunal de Contas

 

Reza o n.º 2 do art.º 214.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) que o mandato do Presidente do Tribunal de Contas tem a duração de quatro anos, sem prejuízo do disposto na alínea m) do artigo 133.º”, que, no quadro da competência do Presidente da República em relação a outros órgãos, lhe confere a prerrogativa de “nomear e exonerar, sob proposta do Governo, o Presidente do Tribunal de Contas e o Procurador-Geral da República”.

Dito isto, não restam dúvidas de que a CRP não impede nem impõe a renovação do mandato, cabendo ao Governo e ao Chefe de Estado proceder à avaliação do mérito do titular em exercício, da oportunidade e do perfil do escolhido para a sucessão de entre as personalidades em vista. É claro que tanto o proponente como o nomeante devem ser ponderados e proceder às consultas que houverem por bem, incluindo líderes de partidos da oposição, cuja discordância não será vinculativa.

Porém, o que sucedeu no caso vertente é que políticos e comentadores se dividiram na apreciação da oportunidade. Uns clamaram que ficara acertado entre o Governo e o Presidente da República o critério político de que, nos casos em que o Presidente da República nomeia sob proposta do Governo, o mandato é único. Porém, os contestatários da não recondução encareceram o mérito do titular então em funções e tentaram fazer o levantamento das supostas divergências do Tribunal de Contas (TdC) em relação a projetos do Governo e da Câmara Municipal de Lisboa em que as despesas eram excessivas ou não bem explicadas.

O Primeiro-Ministro disse ao Parlamento que o então líder do TdC exerceu o cargo sempre com elevação e sentido de Estado, mas que a independência e aprumo do TdC não dependem exclusivamente do seu presidente, pelo que a instituição se manterá na continuidade do profissionalismo e da independência em relação aos demais poderes, sendo conveniente proceder à renovação institucional. Não contentes com a explicação, os opositores ao Governo vieram com o levantamento da proximidade promíscua do sucessor com figuras ligadas ao Governo de José Sócrates, sobretudo no atinente a projetos megalómanos como o TGV. E questionavam como é que se conseguirá a renovação através duma personalidade que foi Diretor-Geral do TdC durante 25 anos, até fevereiro passado, tendo chegado a acumular estas funções com as de Presidente do Conselho Administrativo e de chefe de gabinete do Presidente, mas tendo então deixado tais funções, por despacho do então Presidente do TdC, e passado a exercer as funções de juiz-conselheiro.

Embora lhe seja reconhecida a liberdade de iniciativa, não pode deixar de se atribuir ao discurso do Primeiro-Ministro algo de irónico e anedótico. Lembro-me, a este respeito, de que um determinado candidato a exame de condução automóvel ouviu da boca do examinador a avaliação de que “a sua prova foi boa, excelente mesmo, porém, não lhe posso dar a carta hoje: tem de cá voltar”. E, neste caso, a avaliação de mérito é muito boa, mas, ao invés do anterior, teve de se ir embora, sendo que a escolha recaiu em quem é da casa e a conhece bem.

O líder da oposição também não ficou bem na fotografia. Consultado no processo de proposta, revelou o que não devia, dado que o processo não é de sua natureza público. Disse, primeiro, que por si o anterior Presidente do TdC devia ser reconduzido; segundo que entre dois indigitados, a sua escolha recaiu no nomeado. Quer dizer, por inconfidência, ficou a saber-se que a nomeação do titular coube, à revelia da CRP, ao líder da oposição. Anedótico!

Por seu turno, o Presidente da República esteve de pedra e cal com o Governo subscrevendo por baixo ou abençoando por cima todo o discurso governamental. E, no ato de posse no novo Presidente do TdC, mais do que o elogio e agradecimento protocolares ao cessante, desvelou-se em loas de mérito, aprumo, competência e independência; sublinhou o critério da unicidade do mandato; e encareceu a probidade, o profissionalismo e a idoneidade do empossado, que traz um ar de renovação ao TdC e assegura a continuidade da justeza dos procedimentos.

Porém, Marcelo Rebelo de Sousa, com a pretensão de se justificar em excesso, cometeu um erro monumental a justificar a unicidade do mandato do Presidente do TdC. Disse claramente que, na revisão constitucional de 1997, o PSD, de que era presidente, e o PS de que António Guterres era secretário-geral, acertaram entre si que era único tanto o mandato do Procurador-Geral da República (PGR) como o do Presidente do TdC. Ora, se acertaram nisso, tal não ficou plasmado no texto constitucional, como se verá. E a intenção tem de deduzir-se o texto, não se presume.

Na verdade, a Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de setembro, que procede à quarta revisão constitucional, estabelece no seu art.º 138.º que “o art.º 216.º da Constituição passa a artigo 214.º(n.º 1) e que “é aditado ao mesmo artigo um novo n.º 2, com a seguinte redação:
‘2. O mandato do Presidente do Tribunal de Contas tem a duração de quatro anos, sem prejuízo do disposto na alínea m) do artigo 133.º’ (n.º5), numeração que se mantém.

E o art.º 144.º da mesma Lei Constitucional estabelece:

1. O artigo 222.º da Constituição passa a artigo 220.º 2. É aditado ao mesmo artigo um novo n.º 3, com a seguinte redação: '3. O mandato do Procurador-Geral da República tem a duração de seis anos, sem prejuízo do disposto na alínea m) do artigo 133.º’.”.

 

Ora mantêm-se no texto atual da CRP, o da 5.ª revisão constitucional, operada pela Lei Constitucional n.º 1/2005, de 12 de agosto, os ditos artigos 214.º e 220.º. Por isso, a discussão sobre a renovação ou não do mandato do Presidente do TdC, como do PGR, não se coloca em termos constitucionais, mas em face de opções políticas, que são legítimas, não devendo ser escamoteadas a coberto de outras considerações.

E Marcelo Rebelo de Sousa foi mais longe ao pretender contornar as suspeitas que recaem sobre o novel Presidente do TdC sobre atuações reportáveis ao tempo de Sócrates, assegurando que o conselheiro José Tavares agiu sempre em obediência às indicações do seu superior hierárquico. Ora, no caso de os comportamentos de proximidade e de cumplicidade do então Diretor-Geral deste tribunal superior com membros do Governo revestirem a natureza de ato inético ou mesmo ilegal, o Chefe de Estado atira com a responsabilidade para cima de Guilherme d’Oliveira Martins, a quem não se tem apontado qualquer atitude de cumplicidade com situações de falta de ética ou de legalidade – a personagem que os opositores da não recondução se não cansaram de elogiar.

Enfim, não é somente a lei que a feita à medida, mas também a retórica ocasional. Todavia, isto não se desculpa a um Primeiro-Ministro, que é jurista, e muito menos a um Chefe de Estado, que tem puxado pelas suas estrelas do generalato académico de professor de Direito Público e Ciência Política a ponto de, só agora pela primeira vez em 5 anos de mandato presidencial, pôr a hipótese de enviar ao Tribunal Constitucional (TC) um eventual diploma do Parlamento que torne obrigatória a utilização da aplicação StayAwayCovid. De resto sempre substituiu o TC.

Quanto ao mais, que o TdC cumpra sempre o dever de fiscalização dos contratos e das contas!

2020.10.15 – Louro de Carvalho    

Sem comentários:

Enviar um comentário