Reza o
n.º 2 do art.º 214.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) que “o mandato do
Presidente do Tribunal de Contas tem a duração de quatro anos, sem prejuízo do
disposto na alínea m) do artigo 133.º”, que, no quadro da competência do
Presidente da República em relação a outros órgãos, lhe confere a prerrogativa
de “nomear e exonerar, sob proposta do
Governo, o Presidente do Tribunal de Contas e o Procurador-Geral da República”.
Dito
isto, não restam dúvidas de que a CRP não impede nem impõe a renovação do
mandato, cabendo ao Governo e ao Chefe de Estado proceder à avaliação do mérito
do titular em exercício, da oportunidade e do perfil do escolhido para a
sucessão de entre as personalidades em vista. É claro que tanto o proponente
como o nomeante devem ser ponderados e proceder às consultas que houverem por
bem, incluindo líderes de partidos da oposição, cuja discordância não será
vinculativa.
Porém, o
que sucedeu no caso vertente é que políticos e comentadores se dividiram na
apreciação da oportunidade. Uns clamaram que ficara acertado entre o Governo e
o Presidente da República o critério político de que, nos casos em que o
Presidente da República nomeia sob proposta do Governo, o mandato é único.
Porém, os contestatários da não recondução encareceram o mérito do titular
então em funções e tentaram fazer o levantamento das supostas divergências do
Tribunal de Contas (TdC) em relação a projetos do Governo e da Câmara
Municipal de Lisboa em que as despesas eram excessivas ou não bem explicadas.
O
Primeiro-Ministro disse ao Parlamento que o então líder do TdC exerceu o cargo
sempre com elevação e sentido de Estado, mas que a independência e aprumo do
TdC não dependem exclusivamente do seu presidente, pelo que a instituição se
manterá na continuidade do profissionalismo e da independência em relação aos
demais poderes, sendo conveniente proceder à renovação institucional. Não
contentes com a explicação, os opositores ao Governo vieram com o levantamento
da proximidade promíscua do sucessor com figuras ligadas ao Governo de José
Sócrates, sobretudo no atinente a projetos megalómanos como o TGV. E
questionavam como é que se conseguirá a renovação através duma personalidade
que foi Diretor-Geral do TdC durante 25 anos, até fevereiro passado, tendo
chegado a acumular estas funções com as de Presidente do Conselho Administrativo
e de chefe de gabinete do Presidente, mas tendo então deixado tais funções, por
despacho do então Presidente do TdC, e passado a exercer as funções de
juiz-conselheiro.
Embora
lhe seja reconhecida a liberdade de iniciativa, não pode deixar de se atribuir
ao discurso do Primeiro-Ministro algo de irónico e anedótico. Lembro-me, a este
respeito, de que um determinado candidato a exame de condução automóvel ouviu
da boca do examinador a avaliação de que “a sua prova foi boa, excelente mesmo,
porém, não lhe posso dar a carta hoje: tem de cá voltar”. E, neste caso, a
avaliação de mérito é muito boa, mas, ao invés do anterior, teve de se ir
embora, sendo que a escolha recaiu em quem é da casa e a conhece bem.
O líder
da oposição também não ficou bem na fotografia. Consultado no processo de
proposta, revelou o que não devia, dado que o processo não é de sua natureza
público. Disse, primeiro, que por si o anterior Presidente do TdC devia ser
reconduzido; segundo que entre dois indigitados, a sua escolha recaiu no
nomeado. Quer dizer, por inconfidência, ficou a saber-se que a nomeação do
titular coube, à revelia da CRP, ao líder da oposição. Anedótico!
Por seu
turno, o Presidente da República esteve de pedra e cal com o Governo
subscrevendo por baixo ou abençoando por cima todo o discurso governamental. E,
no ato de posse no novo Presidente do TdC, mais do que o elogio e agradecimento
protocolares ao cessante, desvelou-se em loas de mérito, aprumo, competência e
independência; sublinhou o critério da unicidade do mandato; e encareceu a
probidade, o profissionalismo e a idoneidade do empossado, que traz um ar de
renovação ao TdC e assegura a continuidade da justeza dos procedimentos.
Porém,
Marcelo Rebelo de Sousa, com a pretensão de se justificar em excesso, cometeu
um erro monumental a justificar a unicidade do mandato do Presidente do TdC.
Disse claramente que, na revisão constitucional de 1997, o PSD, de que era
presidente, e o PS de que António Guterres era secretário-geral, acertaram
entre si que era único tanto o mandato do Procurador-Geral da República (PGR) como o do Presidente do TdC. Ora,
se acertaram nisso, tal não ficou plasmado no texto constitucional, como se
verá. E a intenção tem de deduzir-se o texto, não se presume.
E o
art.º 144.º da mesma Lei Constitucional estabelece:
“1. O artigo 222.º da Constituição passa a artigo 220.º 2. É aditado ao mesmo
artigo um novo n.º 3, com a seguinte redação: '3. O mandato do Procurador-Geral
da República tem a duração de seis anos, sem prejuízo do disposto na alínea m)
do artigo 133.º’.”.
Ora
mantêm-se no texto atual da CRP, o da 5.ª revisão constitucional, operada pela
Lei Constitucional n.º 1/2005, de 12 de agosto, os ditos artigos 214.º e 220.º.
Por isso, a discussão sobre a renovação ou não do mandato do Presidente do TdC,
como do PGR, não se coloca em termos constitucionais, mas em face de opções
políticas, que são legítimas, não devendo ser escamoteadas a coberto de outras considerações.
E Marcelo
Rebelo de Sousa foi mais longe ao pretender contornar as suspeitas que recaem
sobre o novel Presidente do TdC sobre atuações reportáveis ao tempo de Sócrates,
assegurando que o conselheiro José Tavares agiu sempre em obediência às indicações
do seu superior hierárquico. Ora, no caso de os comportamentos de proximidade e
de cumplicidade do então Diretor-Geral deste tribunal superior com membros do
Governo revestirem a natureza de ato inético ou mesmo ilegal, o Chefe de Estado
atira com a responsabilidade para cima de Guilherme d’Oliveira Martins, a quem
não se tem apontado qualquer atitude de cumplicidade com situações de falta de
ética ou de legalidade – a personagem que os opositores da não recondução se
não cansaram de elogiar.
Enfim,
não é somente a lei que a feita à medida, mas também a retórica ocasional. Todavia,
isto não se desculpa a um Primeiro-Ministro, que é jurista, e muito menos a um
Chefe de Estado, que tem puxado pelas suas estrelas do generalato académico de
professor de Direito Público e Ciência Política a ponto de, só agora pela primeira
vez em 5 anos de mandato presidencial, pôr a hipótese de enviar ao Tribunal Constitucional
(TC) um eventual diploma do Parlamento
que torne obrigatória a utilização da aplicação StayAwayCovid. De resto sempre substituiu o
TC.
Quanto ao
mais, que o TdC cumpra sempre o dever de fiscalização dos contratos e das
contas!
2020.10.15 –
Louro de Carvalho
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