terça-feira, 6 de outubro de 2020

Pela cibersegurança e pela prevenção do bullying e combate ao mesmo

 

Mais de um milhão e 200 mil alunos, do 1.º ao 12.º ano, estão na escola a praticar um novo ano letivo, tendo regressado num misto de alegria pelo encontro com os colegas e ansiedade por causa do risco de infeção do vírus SARS CoV2, que impõe novas regras. Entre estas, contam-se o uso da máscara, intervalos mais curtos, circuitos marcados, distanciamento físico, horários desfasados, espaços fechados, desinfeção de mãos e carteiras.

Obviamente, após o confinamento, que ditou meses de ensino à distância, sem contacto físico com professores, colegas e amigos, urge saber o que pensam e sentem agora os alunos. Com efeito, apesar da distância, o bullying fez-se sentir durante a pandemia, desta feita sob a forma de cyberbullying infligido a mais de 60% dos alunos, o que faz que a saúde mental seja uma preocupação maior no mês de outubro, dedicado pela Europa à cibersegurança e à prevenção e combate ao bullying, vindo a OPP (Ordem dos Psicólogos Portugueses) a propor o repensamento das práticas de saúde da escola e a avisar que “é preciso ver, ouvir, perceber e atuar”.

A percentagem acima referida de alunos que sofreram cyberbullying é conclusão dum inquérito nacional online – o estudo “Cyberbullying em Portugal durante a pandemia da COVID-19”, realizado por uma equipa de investigadores do Centro de Investigação e Intervenção Social do ISCTE/IUL –, segundo o qual a maioria dos alunos diz ter sido vítima de cyberbullying durante a pandemia, contando-se, entre os mais afetados, jovens de famílias com menores rendimentos, rapazes, gays e lésbicas. Entre março e maio, quando as escolas estavam encerradas, 61,4% dos estudantes dos ensinos Básico, Secundário e Superior admitem ter sido vítimas das agressões feitas com as novas tecnologias. E 59% dos inquiridos aponta um aumento de mensagens com conteúdos prejudiciais e violentos. Quase 9 em cada 10 alunos dizem ter observado situações de bullying online e apenas metade agiu para impedir a sua continuidade. Mais de um quarto dos estudantes assumiu ter feito bullying por diversão, vingança ou necessidade de afirmação. E apenas 16% sentiu culpa pelo que fez.

As consequências para as vítimas, segundo Raquel António, a investigadora que liderou a equipa do ISCTE/IUL, traduziram-se em sentimentos de tristeza, maior irritação e nervosismo. De facto, o confinamento tornou os alunos mais vulneráveis e expostos a serem vítimas de cyberbullying. Assim e por todas as razões, são necessárias medidas mais eficazes de combate a este fenómeno, o que, na ótica da investigadora, postula “uma cultura de promoção de empatia e de denúncia de conteúdo abusivo para prevenir situações de bullying online”.

Colocando a saúde mental em primeiro plano, a OPP assinala a iminência do agravamento dos problemas educativos e recomenda a existência e reforço de equipas sempre disponíveis para ajudar e apoiar. Assim, em documento elaborado em articulação com a UNICEF, vinca:

As escolas devem reforçar as estruturas e recursos que dão resposta aos problemas educativos, de saúde psicológica e de inclusão mais frequentes”.

Mas a OPP elenca muitos mais problemas preocupantes como: absentismo; abandono escolar; dificuldades de aprendizagem; dificuldades emocionais, relacionais, motivacionais e de ajustamento; dificuldades de atenção e concentração; problemas de comportamento e indisciplina; discriminação; exclusão social; e estigma – tudo problemas já existentes, mas com tendência para agravamento mercê da pandemia e da subsequente crise económica e social. Por isso, recomenda: que os SPO (serviços de psicologia e orientação) das escolas tenham um local onde todos os alunos possam aparecer espontaneamente, sozinhos ou acompanhados, para falar com um adulto; que a escola esteja atenta a casos de famílias afetadas financeiramente pela pandemia e a situações de alunos que estiveram expostos a abuso e negligência; que se criem grupos de trabalho para planear e avaliar as políticas e práticas de saúde escolar e se reforcem os programas ou projetos que apostem na proteção e inclusão; e que as escolas recolham informação regular e sistemática para monitorizar a saúde psicológica da população escolar.

Por outro lado, a OPP entende que “as expectativas de cumprimento das novas regras e rotinas devem ser ensinadas e reensinadas, evitando abordagens punitivas, sobretudo quando se trata de gerir a necessidade de distanciamento físico”. É certo que são importantes os objetivos académicos e curriculares, mas os alunos não se sentirão preparados para se envolverem em atividades de aprendizagem formal se não se sentirem física e psicologicamente seguros. E o sentimento de segurança e bem-estar pode levar semanas e meses, dependendo da evolução do contexto comunitário da escola e dos contextos individuais. Ora, sendo preciso tempo e podendo os alunos ajudar a definir as regras e boas práticas de convivência e a planear o ano letivo, a OPP deixa um conselho aos professores:

Reconheçam que a produtividade e o envolvimento dos alunos possam não ser, inicialmente, os mesmos que tinham anteriormente. É possível que sintam que têm de conhecer novamente os seus alunos, para poder adaptar a forma como ensinam ao seu ritmo de aprendizagem, capacidade de concentração e motivação atual para a aprendizagem”.

Por seu turno, o Governo promete investimento nesta área e a criação de equipas de saúde mental comunitárias, apostando em serviços de proximidade. O Ministério da Educação (ME) garante resposta célere para que não haja ausência de docentes e não docentes e lembra que chegaram às escolas cerca de 900 técnicos de intervenção, como psicólogos e terapeutas da fala, e que o apoio tutorial específico foi alargado até ao 12.º ano. E o Ministro sublinhou:

Importante é assegurar que a resposta seja célere, oleada e o sistema possa dar resposta por forma a não haver ausência de docentes neste ano que é atípico, mas, acima de tudo, muito exigente”.

A assinalar outubro como o “Mês Europeu da Cibersegurança e o Mês da Prevenção e Combate ao Bullying”, Sónia Seixas, Luís Fernandes e Tito de Morais, os autores do livro “Cyberbullying – Um Guia Para Pais e Educadores”, organizam e promovem a “II Global Stop Cyberbullying Telesummit”, evento online composto por uma série de videoconferências diárias dedicadas a temas relacionados com o cyberbullying, que serão transmitidas em direto para o Facebook, Periscope e YouTube. E os promotores referem:

Já havia ideia de realizar esta segunda edição, mas a pandemia que vivemos mais do que justifica a sua realização, já que o bullying presencial regista uma tendência não para desaparecer, mas para se transformar em cyberbullying, sendo esta uma tendência igualmente global”.

O evento tem a colaboração de convidados nacionais e internacionais que intervirão a partir de países como a Austrália, Brasil, Canadá, Chile, Espanha, Estados Unidos, França, Índia, Japão, Luxemburgo, Nova Zelândia, Países Baixos, Portugal e Zimbabwe, numa série quase diária de transmissões vídeo em direto. De Portugal, além dos promotores, participam: Vânia Beliz e Rita Felizardo, da Escola das Emoções; Margarida Gaspar de Matos, da Aventura Social; Maria João Leote de Carvalho, do CICS.NOVA (Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais); Teresa Paula Marques, Tânia Paias, Cristina Quadros, da MindSerena, projeto de aprendizagem socioemocional para professores e alunos do 2.º e 3.º ciclos; Pedro Ventura, Ana Paiva e Júlia Vinhas, do CADin (Centro de Apoio ao Desenvolvimento Infantil); entre outros em vias de confirmação.

As sessões decorrem de 1 a 31 de outubro e serão conduzidas em Português ou em Inglês, dependendo dos convidados. A participação é gratuita e, dado o carácter global da iniciativa, as transmissões terão lugar, em Portugal, das 8 às 9 horas, das 13 às 14 horas, das 18 às 19 horas e das 21,30 às 22,30 horas.

***

Posto isto, é de lamentar que a educação para a cidadania, mormente no quadro da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, esteja, neste momento, sob fogo ruidoso e com a hipótese da objeção de consciência, ao sabor de manifestos pró cidadania (maioritário) e contra (minoritário) e posições partidárias opostas, a ponto de um grupo de católicos ter mostrado, com fundamento, o seu espanto por dois bispos estarem, neste ponto, aliados à extrema-direita (Nem tanto!).  

O assunto entrou na agenda pública com um caso duma família, pelo que é de questionar onde está a prevalência do interesse geral sobre o interesse particular.

Ora, segundo o presidente da ANDAEP, os conteúdos desta área não são de mera opinião pessoal ou crença para se poder alegar objeção de consciência, pois “as famílias, muitas vezes, demitem-se ou não sabem ou não têm tempo para passar valores de cidadania, regras de conduta, de relacionamento e de convivência em sociedade, exigindo à escola que cuide, que eduque os seus educandos ao longo de anos a fio”. E não é válido o argumento da doutrinação tipo mocidade portuguesa, que não está na mente dos docentes, pelo menos dos das escolas públicas – críticos, autónomos, a refletir e sustentar as suas próprias posições e a concitar o espírito crítico dos alunos. Por isso, Filinto Lima repudia, as “afirmações de ‘doutrinação’ que pretendem infligir nova machadada à classe docente, merecedora do respeito e consideração de todos os quadrantes da sociedade”, até porque “a inexistência de programas ou manuais” remete para orientações criteriosas constantes do site da DGE (Direção-Geral da Educação), sendo atribuída autonomia à escola para a “seleção dos domínios”, bem como “o formato da abordagem e exploração dos mesmos, no maior respeito e adequação à faixa etária dos discentes”. E, sendo as escolas lugares seguros, também se assumem como “lugares plurais, que respeitam as opiniões díspares, independentemente das ideologias que lhes estão subjacentes, onde a liberdade de expressão é ponto assente e incrementado”.

O Ministro da Educação falou do tema em entrevista à revista Notícias Magazine, lembrando que a área já existia nos governos de Passos Coelho, que a discussão não se resume a dois alunos, que “há uma agenda bem clara para instrumentalizar” a Educação para a Cidadania, e que a cidadania parte da escola e da família, sendo que esta instrumentalização “mostra que o que está por trás disso é uma campanha de criação de movimentos extremistas que acabam por mostrar outro tipo de agenda para uma sociedade que não é a sociedade que nós queremos. Continuando a existir o livre arbítrio das famílias, não podemos enquanto sociedade, pois “nunca como hoje foi tão premente e necessário haver uma verdadeira Educação para a Cidadania”. Cidadania e Desenvolvimento integra o currículo nacional e é desenvolvida segundo três abordagens complementares: natureza transdisciplinar no 1.º CEB; disciplina autónoma no 2.º e 3. º CEB; e componente do currículo desenvolvida transversalmente com o contributo de todas as disciplinas e componentes de formação no Ensino Secundário.

O presidente da ANDE defende a obrigatoriedade da disciplina, pois a cidadania não é uma opção, mas “obrigação social imposta por uma sociedade que se quer mais justa, mais igual e mais democrática”. Considerando a discussão natural em democracia, sustenta que tem de existir “um espaço curricular na escola que permita o desenvolvimento do pensamento crítico”, já que, hoje, o papel da escola não se reduz à formação para ler, escrever, contar; deve, antes, responder aos desafios que a sociedade coloca. Por isso, é essencial que a escola tenha um espaço seguro para que os jovens, com liberdade e responsabilidade, “investiguem, debatam, interroguem e estudem temas pertinentes para compreender o mundo”, sendo-lhes disponibilizados “todos os pressupostos que lhes permitam construir um pensamento sólido e ter a possibilidade de fazer opções responsáveis”.

Porém, a discussão é pertinente para avaliar o papel da escola na formação, sobretudo nesta área transdisciplinar que induz o desenvolvimento dum pensamento autónomo sobre as vertentes duma cidadania mais responsável, empenhada e participada. E Manuel Pereira vinca:

Ao estimular a construção sólida da formação humanística dos alunos, para que assumam a sua cidadania, garantindo o respeito pelos valores democráticos básicos e pelos direitos humanos, tanto a nível individual como social no sentido de promover a tolerância e a não discriminação, bem como de suprimir os radicalismos violentos, estamos a contribuir decisivamente para a construção de uma sociedade mais justa e mais equilibrada”.

Para o presidente da ANDE, educar para os valores da cidadania, liberdade, igualdade, direitos humanos, tolerância, é ajudar os alunos a tornarem-se cidadãos mais ativos, mais conscientes, mais intervenientes, pois valores e comportamentos não são conteúdo programático, até porque as opiniões não se avaliam, não as há certas e erradas, como, de resto, a própria disciplina reconhece. E o que importa é promover uma sociedade mais justa e inclusiva pela educação.

A FENPROF também é a favor da obrigatoriedade e classifica a desconfiança, relativamente à forma como a disciplina está a ser lecionada, como “um inaceitável ataque” aos docentes. A organização representativa dos professores admite que a escola pode não ter meios ou condições para responder a todas as solicitações, mas “não pode deixar de responder, entre muitos outros, ao desafio da cidadania e do desenvolvimento, e essa não pode ser uma mera opção”. Para a FENPROF, os temas e questões ali debatidos contribuem “para a formação de cidadãos responsáveis, autónomos, críticos e solidários numa sociedade que se deseja democrática”.

O assunto mereceu um artigo de opinião de João Costa, Secretário de Estado Adjunto e da Educação, no “Público”, em que defende que a cidadania não é uma opção e que o manifesto contra a obrigatoriedade da aula de cidadania, apelando a que os pais possam escolher, tem considerandos que partem de informação falsa, sendo o documento, em seu entender, um “manifesto político” que “fala por si e é claro nas intenções: que a cidadania seja uma opção e não um dever de todos”.

Os grandes partidos têm estado pelos ajustes. Porém, o PAN defende a obrigatoriedade da disciplina. E André Silva acusou:

Há quem não queira cidadãos mais livres, pois sob a capa escondida dos argumentos contra esta disciplina, pretendem reduzir a consciência individual e coletiva e implementar um regime totalitário”.

E ironizou com um cenário hipotético:

Professora, o que é o aquecimento global? Não posso dizer porque o teu pai é um negacionista climático. Professora, o que é são os direitos LGBTi? Não posso dizer porque o teu pai é homofóbico”.

O CDS-PP quer que a disciplina seja facultativa “segundo opção dos pais”. E o Chega, defendendo a mesma ideia para assegurar a “liberdade educativa das famílias”, nesse sentido, já entregou um projeto de resolução na Assembleia da República.

E, para rematar, pergunto-me se os pais têm o direito de aceitar que os filhos pratiquem o bullying e o cyberbullying ou se lhes podem ensinar a resolver os problemas à pancada.

Tolerância, boas maneiras e intervenção sadia na sociedade nunca fizeram mal a ninguém. A isto e a outros valores nevrálgicos acorre a educação para a cidadania.

2020.10.06 – Louro de Carvalho

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