Mais de um milhão e 200 mil alunos, do 1.º ao 12.º ano, estão
na escola a praticar um novo ano letivo, tendo regressado num misto de alegria
pelo encontro com os colegas e ansiedade por causa do risco de infeção do vírus
SARS CoV2, que impõe novas regras. Entre estas, contam-se o uso da máscara,
intervalos mais curtos, circuitos marcados, distanciamento físico, horários
desfasados, espaços fechados, desinfeção de mãos e carteiras.
Obviamente, após o confinamento, que ditou meses de ensino à
distância, sem contacto físico com professores, colegas e amigos, urge saber o
que pensam e sentem agora os alunos. Com efeito, apesar da distância, o bullying fez-se sentir durante a pandemia, desta feita sob a forma de cyberbullying infligido a mais de 60% dos alunos, o que faz que a saúde mental seja uma preocupação maior no mês
de outubro, dedicado pela Europa à cibersegurança e à prevenção e combate ao bullying, vindo a OPP (Ordem dos Psicólogos Portugueses) a propor o repensamento das práticas de saúde da
escola e a avisar que “é preciso ver, ouvir, perceber e atuar”.
A percentagem acima referida de alunos que sofreram cyberbullying é conclusão dum
inquérito nacional online – o estudo “Cyberbullying
em Portugal durante a pandemia da COVID-19”, realizado por uma equipa de
investigadores do Centro de Investigação e Intervenção Social do ISCTE/IUL –, segundo
o qual a maioria dos alunos diz ter sido vítima de cyberbullying durante a pandemia, contando-se, entre os mais afetados,
jovens de famílias com menores rendimentos, rapazes, gays e lésbicas. Entre
março e maio, quando as escolas estavam encerradas, 61,4% dos estudantes dos
ensinos Básico, Secundário e Superior admitem ter sido vítimas das agressões feitas
com as novas tecnologias. E 59% dos inquiridos aponta um aumento de mensagens
com conteúdos prejudiciais e violentos. Quase 9 em cada 10 alunos dizem ter
observado situações de bullying online
e apenas metade agiu para impedir a sua continuidade. Mais de um quarto dos
estudantes assumiu ter feito bullying por
diversão, vingança ou necessidade de afirmação. E apenas 16% sentiu culpa pelo
que fez.
As consequências para as vítimas, segundo Raquel António, a
investigadora que liderou a equipa do ISCTE/IUL, traduziram-se em sentimentos
de tristeza, maior irritação e nervosismo. De facto, o confinamento tornou os
alunos mais vulneráveis e expostos a serem vítimas de cyberbullying. Assim e por todas as razões, são necessárias medidas
mais eficazes de combate a este fenómeno, o que, na ótica da investigadora, postula
“uma cultura de promoção de empatia e
de denúncia de conteúdo abusivo para prevenir situações de bullying online”.
Colocando a saúde mental em primeiro plano, a OPP assinala a
iminência do agravamento dos problemas educativos e recomenda a existência e
reforço de equipas sempre disponíveis para ajudar e apoiar. Assim, em documento
elaborado em articulação com a UNICEF, vinca:
“As escolas devem reforçar as estruturas e
recursos que dão resposta aos problemas educativos, de saúde psicológica e de
inclusão mais frequentes”.
Mas a OPP elenca muitos mais problemas preocupantes como: absentismo;
abandono escolar; dificuldades de aprendizagem; dificuldades emocionais,
relacionais, motivacionais e de ajustamento; dificuldades de atenção e
concentração; problemas de comportamento e indisciplina; discriminação;
exclusão social; e estigma – tudo problemas já existentes, mas com tendência
para agravamento mercê da pandemia e da subsequente crise económica e social.
Por isso, recomenda: que os SPO (serviços de
psicologia e orientação) das escolas tenham um local onde todos os alunos possam
aparecer espontaneamente, sozinhos ou acompanhados, para falar com um adulto;
que a escola esteja atenta a casos de famílias afetadas financeiramente pela
pandemia e a situações de alunos que estiveram expostos a abuso e negligência;
que se criem grupos de trabalho para planear e avaliar as políticas e práticas
de saúde escolar e se reforcem os programas ou projetos que apostem na proteção
e inclusão; e que as escolas recolham informação regular e sistemática para
monitorizar a saúde psicológica da população escolar.
Por outro lado, a OPP entende que “as expectativas de
cumprimento das novas regras e rotinas devem ser ensinadas e reensinadas,
evitando abordagens punitivas, sobretudo quando se trata de gerir a necessidade
de distanciamento físico”. É certo que são importantes os objetivos académicos
e curriculares, mas os alunos não se sentirão preparados para se envolverem em
atividades de aprendizagem formal se não se sentirem física e psicologicamente
seguros. E o sentimento de segurança e bem-estar pode levar semanas e meses,
dependendo da evolução do contexto comunitário da escola e dos contextos
individuais. Ora, sendo preciso tempo e podendo os alunos ajudar a
definir as regras e boas práticas de convivência e a planear o ano letivo, a
OPP deixa um conselho aos professores:
“Reconheçam que a produtividade e o
envolvimento dos alunos possam não ser, inicialmente, os mesmos que tinham
anteriormente. É possível que sintam que têm de conhecer novamente os seus
alunos, para poder adaptar a forma como ensinam ao seu ritmo de aprendizagem,
capacidade de concentração e motivação atual para a aprendizagem”.
Por seu turno, o Governo promete investimento nesta área e a
criação de equipas de saúde mental comunitárias, apostando em serviços de
proximidade. O Ministério da Educação (ME) garante resposta
célere para que não haja ausência de docentes e não docentes e lembra que
chegaram às escolas cerca de 900 técnicos de intervenção, como psicólogos e
terapeutas da fala, e que o apoio tutorial específico foi alargado até ao 12.º
ano. E o Ministro sublinhou:
“Importante é assegurar que a resposta seja
célere, oleada e o sistema possa dar resposta por forma a não haver ausência de
docentes neste ano que é atípico, mas, acima de tudo, muito exigente”.
A assinalar outubro como o “Mês Europeu da Cibersegurança e o Mês da Prevenção e Combate ao
Bullying”, Sónia Seixas, Luís Fernandes e Tito de Morais, os autores do
livro “Cyberbullying – Um Guia Para Pais
e Educadores”, organizam e promovem a “II
Global Stop Cyberbullying Telesummit”, evento online composto por uma série
de videoconferências diárias dedicadas a temas relacionados com o cyberbullying, que serão transmitidas em
direto para o Facebook, Periscope e YouTube. E os promotores referem:
“Já havia ideia de realizar esta segunda
edição, mas a pandemia que vivemos mais do que justifica a sua realização, já
que o bullying presencial regista uma
tendência não para desaparecer, mas para se transformar em cyberbullying, sendo esta uma tendência igualmente global”.
O evento tem a colaboração de convidados nacionais e internacionais
que intervirão a partir de países como a Austrália, Brasil, Canadá, Chile,
Espanha, Estados Unidos, França, Índia, Japão, Luxemburgo, Nova Zelândia,
Países Baixos, Portugal e Zimbabwe, numa série quase diária de transmissões
vídeo em direto. De Portugal, além dos promotores, participam: Vânia Beliz e
Rita Felizardo, da Escola das Emoções; Margarida Gaspar de Matos, da Aventura
Social; Maria João Leote de Carvalho, do CICS.NOVA (Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais); Teresa Paula
Marques, Tânia Paias, Cristina Quadros, da MindSerena, projeto de aprendizagem
socioemocional para professores e alunos do 2.º e 3.º ciclos; Pedro Ventura,
Ana Paiva e Júlia Vinhas, do CADin (Centro
de Apoio ao Desenvolvimento Infantil); entre outros em vias de confirmação.
As sessões decorrem de 1 a 31 de outubro e serão conduzidas
em Português ou em Inglês, dependendo dos convidados. A participação é gratuita
e, dado o carácter global da iniciativa, as transmissões terão lugar, em
Portugal, das 8 às 9 horas, das 13 às 14 horas, das 18 às 19 horas e das 21,30
às 22,30 horas.
***
Posto isto, é de lamentar que a educação para a cidadania,
mormente no quadro da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, esteja, neste
momento, sob fogo ruidoso e com a hipótese da objeção de consciência, ao sabor
de manifestos pró cidadania (maioritário) e contra (minoritário) e posições partidárias opostas, a ponto de um grupo de
católicos ter mostrado, com fundamento, o seu espanto por dois bispos estarem,
neste ponto, aliados à extrema-direita (Nem
tanto!).
O assunto entrou na agenda pública com um caso duma família,
pelo que é de questionar onde está a prevalência do interesse geral sobre o interesse
particular.
Ora, segundo o presidente da ANDAEP, os conteúdos desta área não
são de mera opinião pessoal ou crença para se poder alegar objeção de
consciência, pois “as famílias, muitas vezes, demitem-se ou não sabem ou não
têm tempo para passar valores de cidadania, regras de conduta, de
relacionamento e de convivência em sociedade, exigindo à escola que cuide, que
eduque os seus educandos ao longo de anos a fio”. E não é válido o
argumento da doutrinação tipo mocidade portuguesa, que não está na mente dos
docentes, pelo menos dos das escolas públicas – críticos, autónomos, a refletir
e sustentar as suas próprias posições e a concitar o espírito crítico dos alunos.
Por isso, Filinto Lima repudia, as “afirmações de ‘doutrinação’ que pretendem
infligir nova machadada à classe docente, merecedora do respeito e consideração
de todos os quadrantes da sociedade”, até porque “a inexistência de programas
ou manuais” remete para orientações criteriosas constantes do site da DGE (Direção-Geral da Educação), sendo atribuída autonomia à
escola para a “seleção dos domínios”, bem como “o formato da abordagem e
exploração dos mesmos, no maior respeito e adequação à faixa etária dos
discentes”. E, sendo as escolas lugares seguros, também se assumem como “lugares
plurais, que respeitam as opiniões díspares, independentemente das ideologias
que lhes estão subjacentes, onde a liberdade de expressão é ponto assente e
incrementado”.
O Ministro da Educação falou do tema em entrevista à revista Notícias Magazine, lembrando que a área
já existia nos governos de Passos Coelho, que a discussão não se resume a dois
alunos, que “há uma agenda bem clara para instrumentalizar” a Educação para a
Cidadania, e que a cidadania parte da escola e da família, sendo que esta instrumentalização
“mostra que o que está por trás disso é uma campanha de criação de movimentos
extremistas que acabam por mostrar outro tipo de agenda para uma sociedade que
não é a sociedade que nós queremos. Continuando a existir o livre arbítrio
das famílias, não podemos enquanto sociedade, pois “nunca como hoje foi tão
premente e necessário haver uma verdadeira Educação para a Cidadania”. Cidadania
e Desenvolvimento integra o currículo nacional e é desenvolvida segundo três
abordagens complementares: natureza transdisciplinar no 1.º CEB; disciplina
autónoma no 2.º e 3. º CEB; e componente do currículo desenvolvida
transversalmente com o contributo de todas as disciplinas e componentes de
formação no Ensino Secundário.
O presidente da ANDE defende a obrigatoriedade da disciplina,
pois a cidadania não é uma opção, mas “obrigação social imposta por uma
sociedade que se quer mais justa, mais igual e mais democrática”. Considerando a
discussão natural em democracia, sustenta que tem de existir “um espaço
curricular na escola que permita o desenvolvimento do pensamento crítico”, já
que, hoje, o papel da escola não se reduz à formação para ler, escrever, contar;
deve, antes, responder aos desafios que a sociedade coloca. Por isso, é
essencial que a escola tenha um espaço seguro para que os jovens, com liberdade
e responsabilidade, “investiguem, debatam, interroguem e estudem temas pertinentes
para compreender o mundo”, sendo-lhes disponibilizados “todos os pressupostos
que lhes permitam construir um pensamento sólido e ter a possibilidade de fazer
opções responsáveis”.
Porém, a discussão é pertinente para avaliar o papel da
escola na formação, sobretudo nesta área transdisciplinar que induz o
desenvolvimento dum pensamento autónomo sobre as vertentes duma cidadania mais
responsável, empenhada e participada. E Manuel Pereira vinca:
“Ao estimular a construção sólida da
formação humanística dos alunos, para que assumam a sua cidadania, garantindo o
respeito pelos valores democráticos básicos e pelos direitos humanos, tanto a
nível individual como social no sentido de promover a tolerância e a não
discriminação, bem como de suprimir os radicalismos violentos, estamos a
contribuir decisivamente para a construção de uma sociedade mais justa e mais
equilibrada”.
Para o presidente da ANDE, educar para os valores da
cidadania, liberdade, igualdade, direitos humanos, tolerância, é ajudar os
alunos a tornarem-se cidadãos mais ativos, mais conscientes, mais intervenientes,
pois valores e comportamentos não são conteúdo programático, até porque as
opiniões não se avaliam, não as há certas e erradas, como, de resto, a própria
disciplina reconhece. E o que importa é promover uma sociedade mais justa e
inclusiva pela educação.
A FENPROF também é a favor da obrigatoriedade e classifica a
desconfiança, relativamente à forma como a disciplina está a ser lecionada,
como “um inaceitável ataque” aos docentes. A organização representativa dos
professores admite que a escola pode não ter meios ou condições para responder
a todas as solicitações, mas “não pode deixar de responder, entre muitos
outros, ao desafio da cidadania e do desenvolvimento, e essa não pode ser uma
mera opção”. Para a FENPROF, os temas e questões ali debatidos contribuem “para
a formação de cidadãos responsáveis, autónomos, críticos e solidários numa
sociedade que se deseja democrática”.
O assunto mereceu um artigo de opinião de João Costa, Secretário
de Estado Adjunto e da Educação, no “Público”,
em que defende que a cidadania não é uma opção e que o manifesto contra a obrigatoriedade
da aula de cidadania, apelando a que os pais possam escolher, tem considerandos
que partem de informação falsa, sendo o documento, em seu entender, um
“manifesto político” que “fala por si e é claro nas intenções: que a cidadania
seja uma opção e não um dever de todos”.
Os grandes partidos têm estado pelos ajustes. Porém, o PAN
defende a obrigatoriedade da disciplina. E André Silva acusou:
“Há quem não queira cidadãos mais livres,
pois sob a capa escondida dos argumentos contra esta disciplina, pretendem
reduzir a consciência individual e coletiva e implementar um regime totalitário”.
E ironizou com um cenário hipotético:
“Professora, o que é o aquecimento global?
Não posso dizer porque o teu pai é um negacionista climático. Professora, o que
é são os direitos LGBTi? Não posso dizer porque o teu pai é homofóbico”.
O CDS-PP quer que a disciplina seja facultativa “segundo
opção dos pais”. E o Chega, defendendo a mesma ideia para assegurar a “liberdade
educativa das famílias”, nesse sentido, já entregou um projeto de resolução na
Assembleia da República.
E, para rematar, pergunto-me se os pais têm o direito de
aceitar que os filhos pratiquem o bullying e o cyberbullying ou se lhes podem ensinar a
resolver os problemas à pancada.
Tolerância,
boas maneiras e intervenção sadia na sociedade nunca fizeram mal a ninguém. A isto
e a outros valores nevrálgicos acorre a educação para a cidadania.
2020.10.06 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário