sábado, 3 de outubro de 2020

Da tríade liberdade, igualdade e fraternidade, falta a fraternidade

 

Quem o diz é o Cardeal José Tolentino de Mendonça, na sua crónica na Revista do “Expresso” deste dia 3 de outubro, a propósito da assinatura que o Papa Francisco fez, neste mesmo dia, da Encíclica “Fratelli tutti” sobre o túmulo de São Francisco de Assis no Sacro Convento – “operação carregada de simbolismo”, no dizer do purpurado. Com efeito, segundo o Pontífice,

O “santo do amor fraterno, da simplicidade e da alegria”, que lhe inspirou a ‘Laudato Si’, motiva-o “a dedicar esta nova encíclica à fraternidade e à amizade social”.

Por consequência, para Tolentino é desejável que “este texto urgente e inovador encontre leitorados amplos, dentro e fora da Igreja, capazes de refletir em profundidade o significado dos seus desafios”, pois “a reflexão acerca da fraternidade tem sido sistematicamente adiada”. Na verdade, embora “da tríade liberdade, igualdade e fraternidade”, as sociedades tenham deixado de fora “a fraternidade como se fosse um assunto estritamente privado, sobre o qual não é possível construir um consenso social”, Francisco assegura que, “sem a fraternidade, a visão da liberdade e da igualdade corre o risco de as tornar inconclusivas e abstratas”, pelo que “o reconhecimento da fraternidade” é, para o Cardeal, “uma das tarefas atuais mais prementes”.

E a proposta de Bergoglio situa-se na continuidade do documento sobre a fraternidade humana para a paz mundial e a convivência comum, assinado com o grande imã Ahmad Al-Tayyeb, em Abu Dhabi, em fevereiro de 2019. Perspetivando a fraternidade a partir da tradição católica, o Papa ultrapassa fronteiras, “abrindo-se em diálogo com outras tradições”, nomeando, entre outros, Martin Luther King, Desmond Tutu e Mahatma Gandhi, e corporizando, no atinente aos destinatários, “um novo sonho de fraternidade e de amizade social que não se fique apenas pelas palavras”, mas “se torne um ponto de diálogo aberto com todas as pessoas de boa vontade”.

Colocando-se na linha das “encíclicas sociais” – da “Rerum Novarum”, de Leão XIII (1891), à “Laudato Si”, de Francisco (2015), passando por mais 17 encíclicas e outros documentos dedicados à questão social – o Papa revisita, em chave de atualidade, com este “novo e incisivo texto”, temas recorrentes da Doutrina Social da Igreja (DSI), como: “os direitos da pessoa humana, a cidadania, o bem comum, o trabalho, os modelos de desenvolvimento, a destinação universal dos bens, a propriedade, a construção da justiça e da paz, as migrações, a regulação económica, a reabilitação da política, a condenação do racismo, a ecologia, o avanço tecnológico, os reptos que se colocam à informação na era digital, etc.”.

O Cardeal assegura que o Papa tem consciência dos riscos inerentes à proposta duma categoria social que não tem estatuto político, pelo que alerta para que o seu discurso “não seja treslido como uma utopia bem intencionada, mas impraticável”. Assim, profeticamente afirma “a certeza de que ou nos constituímos como um ‘nós’ que habita a Casa Comum, que é a Terra, ou veremos apenas crescer a guerra de interesses e egoísmos que nos põe a todos contra todos”, pelo que urge repensar os nossos estilos de vida, relacionamentos sentido de organização.   

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Da relevância valores e conceitos da mesma encíclica, inspirada em Francisco de Assis e a falar de ‘Fraternidade’ e ‘Amizade Social’, falou, em entrevista de 2 de outubro à Renascença e à Ecclesia, o Padre José Manuel Pereira de Almeida, vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa (UCP), secretário da Comissão Episcopal da Pastoral Social e Mobilidade Humana e ligado à Cáritas e à Comissão Nacional Justiça e Paz, que parte do pressuposto de que o Papa dá muita importância às palavras, ao que elas significam e ao modo como devem ser interiorizadas.

Lembrando a novidade da escolha do nome Francisco por Bergoglio, afirma que Francisco de Assis tem dado as mãos a este Pontífice, e vice-versa, “neste percurso que já vai longo, graças a Deus, de inovação e de criatividade pastoral”.

Considera que, tal como aquando da publicação da ‘Laudato Si’, o mundo se preparava para a conferência sobre as alterações climáticas que deu origem ao ‘Acordo de Paris’, agora, num mundo em transformação imprevista, mercê da pandemia, o Santo Padre se mostra vez atento às necessidades do momento com repercussões no futuro. O mesmo se deve dizer aquando de outros pronunciamentos, como os da pretérita Semana Santa e Páscoa vividos em Roma e no mundo “de maneira completamente diferente”, e das várias intervenções do Papa nesse sentido. Assim, é de esperar que a encíclica desenvolva o pensamento acerca da fraternidade, “que em São Francisco de Assis é tão luminoso, porque de facto ele quer ser irmão de todos, e o Papa Francisco também, e convida-nos a essa atitude”.

Diz o entrevistado que a pandemia é o lugar crítico para se perceber se “o outro é o ‘inferno’ para mim” ou se nos protegemos “para cuidar do outro, para proteger o outro, para dar atenção a esse que é meu irmão e minha irmã”.

Recorda não ter sido por acaso que a primeira deslocação de Francisco foi a Lampedusa, mas para ultrapassar “as fronteiras de um cristianismo que se entende em autorreferencialidade”, uma coisa que “o Papa nos desafia a eliminar”. De resto, tem sido recorrente a atenção ao Mediterrâneo. E o Padre Pereira de Almeida menciona a ida do Pontífice a Bari (Itália) com a questão das migrações no coração, bem como a sua visita à secção São Luís da Faculdade de Teologia de Nápoles, confiada à Companhia de Jesus, em que, do ponto de vista teológico, era pertinente “a atenção aos náufragos como irmãos e irmãs por quem tínhamos que dar a vida”, ou seja, de lhes dar a devida atenção: “tanto quanto de mim depende, fazê-los viver”.

Por outro lado, Bergoglio “tem procurado a atenção ao povo e não ao populismo, e isso tem sido bastante manifesto em vários textos”, ao invés de tantos líderes que se perdem enredados nos populismos e nos discursos racistas e xenófobos. E o Padre Pereira de Almeida evocou o debate para as eleições americanas (entre Donald Trump e Joe Biden) “para percebermos que estamos num momento difícil, um momento de facto, sob o ponto de vista da política internacional, crucial”, e que o discurso do Papa não tem sido convenientemente escutado.

O recente discurso papal às Nações Unidas fez lembrar ao entrevistado que Francisco “é um Papa que está muito atento e tem uma bela equipa”, pois “toda a gente sabe que as encíclicas não são escritas numa tarde ou manhã”, como bem contou na ‘Laudato Si’, “com a contribuição do cardeal Turkson e do então Conselho Pontifício Justiça e Paz, e agora com o grande Dicastério dedicado às questões sociais e às migrações”, tal como “nós temos aqui a comissão episcopal que traduz, em ponto pequenino, essa atenção”.

Assentindo que, na proposta de ‘fraternidade’ do Papa, do respeito pela dignidade de cada pessoa e de cada comunidade, há uma espécie de visão alternativa ao globalismo sem rumo e muito individualista, que se tornou ainda mais visível na pandemia, é importante centrarmos o olhar nesta proposta como ponto de partida para a reconstrução de um paradigma “e de uma globalização que seja verdadeiramente de rosto humano, como no texto ‘Querida Amazónia’, onde se percebe que há que salvar as realidades culturais”. Com efeito, o Papa chamava a atenção aos participantes franceses que trabalhavam na ‘Laudato Si’, e que estiveram em Roma, em setembro, para o facto de, entre nós, ocidentais, se ter perdido a relação entre o pensar, o sentir e o fazer, tendo nós “de voltar a essa interioridade que todos temos, mas que fazemos de conta que não, que ignoramos”. Por isso, o entrevistado espera que esta encíclica seja um apelo muito veemente a continuar o que tem sido a DSI, pois, como recorda, quando se fala em globalização, fala-se logo em São Paulo VI, que dela fala de forma evidente na ‘Populorum Progressio(1967) e na ‘Evangelii Nuntiandi(1975), vindo São João Paulo II a desenvolvê-la na ‘Sollicitudo Rei Socialis(1987) e na ‘Centesimus Annus(1991) … até Francisco, com a ideia da responsabilidade coletiva pelo desenvolvimento de cada povo, pois como refere Dostoiévski, “todos somos responsáveis por todos”.

Confrontado com o facto de Francisco criticar fortemente o atual modelo económico e ter convocado o encontro ‘A Economia de Francisco’ – em cuja preparação a UCP tem estado muito envolvida – para pensar um novo modelo, Pereira de Almeida, explana:

O Papa disse recentemente que esta economia que temos – a ‘economia que mata’ foi abordada logo num documento inicial (exortação ‘Evangelii Gaudium’, em 2013) – é responsável pelas desigualdades existentes, e que não se pode esperar que seja esta economia que vai salvar o mundo no pós-pandemia, em que ou ficamos piores ou melhores, não ficamos iguais. E, para ficarmos melhor – ou seja, mais irmãos e mais atentos, com uma Casa Comum mais habitável por nós e pelas gerações futuras –, a economia tem de ter no centro nunca o lucro, mas as pessoas, as comunidades e a vida, tornar o planeta mais habitável.”.

Sobre a DSI, o entrevistado esclarece:

A palavra ‘doutrina’ pode lembrar uma coisa cristalizada e estática. Ora, é tudo menos isso. Até se tem proposto mais a ideia de Pensamento Social ou, como dizem os ingleses, Ensinamento Social, que tem uma historicidade. Entre aquilo que Leão XIII (Papa de 20 de fevereiro de 1878 a 20 de julho de 1903) diz, e muito bem, e hoje, há muitas coisas que vão mudando. O grande salto, muito interessante, dá-se com o Concílio Vaticano II (1962-1965); depois, até nem se chamou muito Doutrina Social da Igreja, só o Papa João Paulo II é que volta a introduzir o tema e propõe o Compêndio.”.

Passados mais de 100 anos sobre a publicação da ‘Rerum Novarum’, que fazem um corpo de doutrina, diz Pereira de Almeida, há um ressalvar que a ‘Caritas in veritate(2009), de Bento XVI, acerca da caridade, que é a vida de Deus e a nossa vida, se inscreve na DSI, bem como a

Laudato Si(2005), como o próprio texto o diz. Por seu turno, esta nova encíclica virá na continuidade da ‘Laudato Si’, com um passo à frente, que antevemos nos diálogos no encontro de Abu Dhabi, com o imã de Al-Azhar (2019), em que Francisco deixou uma frase que parece profética, quando lida no momento atual:

Hoje também nós, em nome de Deus, para salvaguardar a paz, precisamos de entrar juntos, como uma única família, numa arca que possa sulcar os mares tempestuosos do mundo: a Arca de Fraternidade”.

Sendo curiosa essa evocação de Noé nas paragens onde se deu o encontro, Pereira de Almeida diz que São Francisco de Assis estará presente, mas que a última referência de pessoa é Carlos de Foucauld (1858-1916), enquanto irmão universal. Mais diz que a encíclica, que não deve ser pequena, deve dar muito trabalho a estudar, a aprofundar e a divulgar, sobretudo num contexto em que a DSI é muito pouco conhecida, como se referia, há dias, em diálogo com a Comissão Justiça e Paz da Diocese de Bragança-Miranda, sendo que “nós temos de a dar a conhecer”, pois “estamos num momento em que seremos infiéis ao Evangelho se não o fizermos”.

Interpelado sobre o uso da expressão “estamos todos no mesmo barco” pelo Papa no início da pandemia, na cerimónia a que presidiu na Praça de São Pedro, sozinho, Pereira de Almeida considera que globalmente a fraternidade é aceite em teoria, mas na prática tem muitas dificuldades. Por exemplo, na pandemia, o grande desafio da vacina esbarra com a dificuldade de ela chegar a todos e a tempo. Ora, o Papa “tem sublinhado que só pode ser para todos, não pode ser para os que podem ou para os que têm”, mas esta dimensão não está interiorizada.

Por isso, é de frisar que este valor da fraternidade é “muitíssimo importante” na encíclica. E a amizade Social é “a nossa utopia no sentido bom, no sentido fecundo”, que é mobilizador e é “o que queremos construir, com finalidades partilhadas, como o bem comum” – sublinha o Padre Pereira de Almeida, que acredita que, “numa encíclica destas, o tema do bem comum – um tema clássico da Doutrina Social da Igreja – vai ser revisitado”, mas quer “ver como”.

Na audiência pública do passado dia 30 de setembro, ao falar de Economia, Francisco teve uma palavra muito forte: “Nós estamos todos à espera de voltar à normalidade, mas convém não voltar à normalidade, porque ela já estava doente antes da pandemia”. E o entrevistado confirma dizendo que “já era anormal”. Por isso, é o momento de nos comprometermos com a construção duma nova realidade. O Papa considera as Nações Unidas como uma plataforma muito importante, a diplomacia”, onde têm de estar presentes “os valores não económicos”, que obstem à transformação dos mais vulneráveis em sujeitos dispensáveis, descartáveis – “uma das preocupações mais constantes nas intervenções do Papa”. Neste aspeto, o sacerdote entrevistado espera que o Papa explique melhor um tema teológico em que pega na ‘Laudato Si’ e já desenvolvido na Europa por Edward Schillebeeckx: “o amor político”. E explica:

Nas intervenções que, entretanto, tem apresentado, volta a esse conceito. Desde João XXIII, a política tem sido apresentada como um alto empenho da ação da caridade. Não é, às vezes, a política que nós vemos, mas é a política como é chamada a ser.”.

Não se trata de sociologia da política, mas de “uma reflexão teológica sobre a política”, encarando a política como “serviço do bem comum, de todos e de cada um, para que o desenvolvimento seja harmónico, global, não esmagando nem descartando ninguém”.

Em certa medida, a nova encíclica, divulgada no atual contexto, será uma síntese das várias preocupações – que têm sido imensas, desde o primeiro momento do pontificado – neste campo. Juntamente com a ‘Laudato Si’ será um bom complemento, explicitando algumas coisas que, entretanto, aconteceram nestes 5 anos, riquíssimos de reflexão. Não repetirá o mesmo, mas dará passos em frente, inovará em correspondência ao ritmo, à dinâmica da DSI.

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Por fim, aqui deixo as palavras que o Papa proferiu antes da assinatura da encíclica:

Agora, assinarei a Encíclica que Monsenhor Paolo Braida, encarregado das traduções e também dos discursos do Papa, na 1.ª Secção, traz ao altar. Ele supervisiona tudo. E, por isso, eu quis que ele estivesse presente aqui hoje e me trouxesse a Encíclica. Vieram com ele dois tradutores: Padre António, tradutor da língua portuguesa, que traduziu do espanhol para o português; e o Padre Cruz que, é espanhol e supervisionou um pouco as outras traduções do original em espanhol. Faço isso como um sinal de gratidão a toda a 1.ª Secção da Secretaria de Estado que trabalhou nesta redação e tradução.”.

O Padre Luigi Territo, estudioso de Teologia Fundamental e Teologia Islâmica na Faculdade de Teologia “Italia Meridionale”, vê na encíclica o valor de uma Igreja que é ativamente “em saída”, como o Papa gosta de repetir: “Ele parece dizer ao mundo que há uma prioridade mística e espiritual da experiência de fé sobre todas as formas institucionais de nossas crenças”. E Assis representa tudo isso, e não apenas para os cristãos, onde existe a memória histórica de um Santo que viveu como os pequenos do Evangelho, totalmente confiada ao Pai e por isso reconhecido como um irmão de todos”.

A partir do dia 4 de outubro já leremos a “Fratelli tutti”, para que a “fraternidade”, que a Revolução Francesa deixou para o fim (em prol da liberdade e da igualdade) e que as sociedades desvalorizam, se radique nas pessoas e comunidades, se aprofunde, alastre e se generalize para transformação do mundo, num dinamismo coerente de dádiva sem esperar contrapartidas.

2020.10.03 – Louro de Carvalho

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