O 20 de
outubro de 2020 transformou Roma na Capital da Paz com um encontro
internacional que reuniu, na Praça da Prefeitura de Roma, no Capitólio, líderes
religiosos mundiais e autoridades locais, incluindo o Presidente da República
de Itália. Na verdade, a iniciativa “Ninguém
se salva sozinho – Fraternidade e Paz”, da comunidade cristã de Santo
Egídio – que anualmente celebra, de cidade em cidade, esta iniciativa de oração
e diálogo em prol da paz, entre os fiéis de várias religiões, recordando o
encontro convocado por São João Paulo II, em 1986, em Assis –, recebeu
representantes do islamismo, do judaísmo e do budismo, além do Patriarca
Bartolomeu I, Patriarca Ecuménico de Constantinopla, do Bispo Heinrich,
Presidente do Conselho da Igreja Evangélica na Alemanha, e do Papa Francisco
que, na oportunidade, assinaram um apelo pela paz (o Arcebispo
de Cantuária Justin não pôde comparecer por causa da pandemia):
“Congregados em Roma no ‘Espírito de Assis’,
unidos espiritualmente aos crentes de todo o mundo e às mulheres e homens de
boa vontade, rezamos uns ao lado dos outros para implorar sobre esta nossa
terra o dom da paz. Lembramos as feridas da humanidade, trazemos no coração a
oração silenciosa de tantos atribulados, muitas vezes sem nome nem voz. Por
isso comprometemo-nos a viver e propor solenemente aos responsáveis dos Estados
e aos cidadãos do mundo inteiro este Apelo de Paz.”.
Implorando “o
dom da paz” em nome dos sem nome nem voz, os líderes religiosos fizeram ecoar
naquela praça romana o grito de São Paulo VI junto da ONU, em 1965: ‘Nunca
mais a guerra!’. É o convite renovado pela fraternidade entre os povos
“para nos salvar” de ameaças como a pandemia e a guerra – que representa “um
falimento da política e da humanidade”.
Da Praça da
Prefeitura de Roma, donde partiu o pacto de “uma Europa unida”, entre nações em
conflito, “pouco tempo depois do maior conflito bélico de que há memória na história”,
o apelo traz a inspiração em ideais como o diálogo e o perdão, sobretudo neste
tempo de desorientação mercê das consequências da pandemia da covid-19, “que
ameaça a paz ao aumentar as desigualdades e os medos”.
Tanto os problemas
como as soluções “num mundo cheio de conexões” como o nosso – da fome ao acesso
aos alimentos, do aquecimento global à sustentabilidade do desenvolvimento, por
exemplo –, tocam-nos a todos e não só a cada país individualmente. Por isso, os
líderes religiosos insistiram no “sentido da fraternidade” e disseram,
com força, que “ninguém se pode salvar sozinho, nenhum povo, ninguém!”. E,
porque todos somos irmãos e irmãs, exortaram:
“Peçamos ao Altíssimo que,
depois deste tempo de provação, deixe de haver ‘os outros’ para existir apenas
um grande ‘nós’ rico de diversidade”, pois “é tempo de voltar a sonhar, com
ousadia, que a paz é possível, a paz é necessária, um mundo sem guerras não é
uma utopia”.
Lembrando
que, infelizmente, “a guerra voltou a aparecer como uma via possível para a
solução das disputas internacionais”, garantiram a necessidade de ter sempre
presente que “a guerra sempre deixa o mundo pior do que o encontrou”. E,
convictos de que “a guerra é um falimento
da política e da humanidade”, apelaram aos governantes a que “rejeitem a
linguagem da divisão, frequentemente apoiada por sentimentos de medo e
desconfiança, e não adotem caminhos sem retorno”, pensando conjuntamente nas
vítimas, pois há “demasiados conflitos ainda em aberto”.
Pedindo aos
responsáveis dos países que, unindo as forças, criem uma “nova arquitetura da
paz” em prol da vida, da saúde e da educação, propuseram:
“Quanto aos recursos empregados na produção
de armas cada vez mais destrutivas, fautoras de morte, chegou a hora de os
utilizar para corroborar a vida, cuidar da humanidade e da nossa Casa Comum.
Não percamos tempo! Comecemos por objetivos atingíveis: unamos, já hoje, os
esforços para conter a propagação do vírus até termos uma vacina que seja
apropriada e acessível a todos. Esta pandemia veio lembrar-nos que somos irmãs
e irmãos de sangue.”.
E o apelo
pela paz convoca todos a tornarem-se artesãos e mensageiros de paz, construindo
uma “amizade social”, assumindo “a cultura do diálogo” – um diálogo que, se
“leal, perseverante e corajoso”, pode transformar-se em “antídoto contra a
desconfiança, as divisões e a violência”, e, assim, dissolver as guerras “pela
raiz”. Para tanto, é preciso consciencializarmo-nos de que “ninguém pode deixar de se sentir
envolvido”, pois “todos somos corresponsáveis, todos temos necessidade de
perdoar e ser perdoados”. Com efeito, as injustiças “curam-se, não com o ódio e
a vingança, mas com o diálogo e o perdão”.
***
No seu
discurso, o Santo Padre manifestou alegria e gratidão a Deus por este momento
de oração. E,
recordando o encontro em Assis, frisou que “naquela visão de paz, havia
uma semente profética” que foi amadurecendo “com encontros inéditos,
iniciativas de pacificação, novos pensamentos de fraternidade”, pois, apesar
dos factos dolorosos como conflitos, terrorismo ou radicalismo, às vezes em nome
da religião”, são reconhecer “os passos frutuosos no diálogo entre as religiões”
– “sinal de esperança que nos incita a trabalhar juntos como irmãos” – a ponto de
termos chegado ao Documento sobre a Fraternidade Humana em prol da Paz Mundial
e da Convivência Comum, assinado com o Grande Imame de al-Azhar.
Citando um
trecho da sua recente Encíclica “Fratelli
tutti”, o Pontífice disse que “o mandamento da paz está inscrito nas profundezas
das tradições religiosas”. E vincou:
“Os fiéis compreenderam que a diversidade de
religião não justifica a indiferença nem a inimizade. Antes pelo contrário, a
partir da fé religiosa, é possível tornar-se artesãos da paz e não
espectadores inertes do mal da guerra e do ódio. (…) As religiões estão a serviço da paz e da
fraternidade. Por isso,
este encontro impele os líderes religiosos e todos os fiéis a rezarem
insistentemente pela paz, não se resignarem jamais com a guerra e agirem
mediante a força suave da fé para pôr fim aos conflitos.”.
Considerando
a paz como a prioridade de qualquer política e que “o mundo tem uma sede ardente de paz”, Francisco alertou para o
risco de a opinião pública se habituar ao mal da guerra, que “sempre causa de sofrimento e pobreza”,
convidou “a tocar a carne dos que pagam as consequências, a prestar atenção aos
prófugos, aos que sofreram radiações atómicas ou ataques químicos, às mulheres
que perderam os filhos, às crianças mutiladas ou privadas de sua infância, e
recordou que “hoje, as tribulações da guerra são agravadas também pela pandemia
de coronavírus e pela impossibilidade, em muitos países, de se ter acesso aos
tratamentos necessários”. Por isso, evocando o “basta” que Jesus disse aos
discípulos quando lhe mostraram duas espadas antes da Paixão, disse que aquele
“basta” de Jesus “atravessa os séculos e chega, forte, até nós hoje: basta com
as espadas, as armas, a violência e a guerra”!
E, depois de
avisar que nenhum povo ou grupo social
pode alcançar, sozinho, a paz, o bem, a segurança e a felicidade e que a lição
da pandemia atual “é a consciência de sermos uma comunidade mundial que viaja
no mesmo barco”, sendo só possível “salvar-nos juntos”, vincou:
“A
fraternidade, que brota da consciência de sermos uma única humanidade, deve
penetrar na vida dos povos, nas comunidades, no íntimo dos governantes, nos
foros internacionais. Estamos
juntos, nesta tarde, como pessoas de diferentes tradições religiosas, para
comunicar uma mensagem de paz. Isto mostra claramente que as religiões não
querem a guerra; pelo contrário, desmentem quem sacraliza a violência, pedem a
todos que rezem pela reconciliação e atuem para que a fraternidade abra novas
sendas de esperança.”.
***
É de anotar que a sessão na Praça da
Prefeitura decorreu no quadro dum evento de oração e diálogo em prol da paz. Assim,
a sessão foi precedida de um momento intenso de oração na Basílica de Aracoeli,
em torno da perícopa evangélica de Marcos que mostra Jesus crucificado e
escarnecido (Mc15,23-32).
Aí o Papa pronunciou a sua homilia de que se respigam algumas das
linhas pertinentes.
Começando por
dizer que “rezar juntos é uma dádiva”, passou a comentar “a tentação que se
abate sobre Ele (Jesus), exausto na
cruz” e “no ponto mais alto do sofrimento e do amor”, com muitos a lançar-lhe o
repto em modo de refrão: “Salva-Te a Ti
mesmo!”. E, por se tratar duma tentação crucial que ameaça a todos, por via
de “um instinto muito humano, mas mau”, que “constitui o último desafio a Deus
crucificado”, especificou os diversos grupos que lançaram o repto ao
Crucificado.
Os primeiros
“eram pessoas comuns, que ouviram Jesus falar e fazer prodígios” e que agora O
desafiam a descer da cruz, não por terem compaixão, mas por desejarem milagres.
É o que pode suceder connosco ao queremos um deus à nossa medida, alimentando o
culto no nosso “eu” “mediante a indiferença para com o outro”, indiferença que nos
mantém longe de Deus.
Os segundos foram
os príncipes dos sacerdotes e os escribas, os mesmos que condenaram Jesus, “porque
representava um perigo para eles”. Aqueles líderes religiosos “conheciam Jesus”
e “lembravam-se das curas e libertações por Ele realizadas”, mas, ao tomarem os
outros como motivo para O acusar, “fazem uma dedução maliciosa: insinuam que
salvar, socorrer os outros não traz bem algum”. Também nós “somos peritos em
colocar os outros na cruz, contanto que nos salvemos a nós mesmos”. Ao invés, “Jesus
deixa-Se crucificar para nos ensinar a não descarregar o mal sobre os outros”. “Ele, que salvara os outros, perde-Se a Si
mesmo” é, na ótica do Papa, acusação “feita em tom de escárnio”, entendendo
o verbo “salvar” não como Evangelho de salvação, que “assume as cruzes dos
outros”, mas o apócrifo mais falso, que põe as cruzes aos ombros dos outros.
Os últimos a desafiar o Crucificado são os crucificados com Jesus, que “se associam ao ambiente de desafio contra
Ele”. Enfim, descarregam as suas culpas “sobre os mais fracos e marginalizados”
e procuram Jesus apenas “para resolver os problemas deles”, ao passo que “Deus
vem não tanto para nos livrar dos problemas”, mas “para nos salvar do
verdadeiro problema: a falta de amor”, “a causa profunda” dos “males pessoais,
sociais, internacionais, ambientais”. Porém, neste ambiente, emerge um dos malfeitores
a observar Jesus, admirando, n’Ele, a amorosa mansidão, e que obtém o Paraíso “deslocando
a atenção de si mesmo para Jesus, de si mesmo para Quem estava ao seu lado”.
E,
concluindo, Francisco sublinhou que, “no Calvário, aconteceu o grande duelo
entre Deus, que veio salvar-nos, e o homem, que quer salvar-se a si mesmo,
entre a fé em Deus e o culto do eu, entre o homem que acusa e Deus que desculpa”;
e a vitória de Deus, que fez descer a sua misericórdia sobre o mundo. Com efeito,
“da cruz, brotou o perdão, renasceu a fraternidade”.
Os braços abertos
de Jesus assinalam a mudança radical, em que “Deus não aponta o dedo contra
ninguém”, mas “abraça a cada um”, num amor que apaga o ódio, vence a injustiça,
dá espaço ao outro e “é o caminho para a plena comunhão entre nós”.
E formula o
voto de “que o Senhor nos ajude a caminhar juntos pela senda da fraternidade,
para sermos testemunhas credíveis do Deus vivo”.
Por
fim, aqui deixo o texto do “APELO DE PAZ”.
“Congregados em Roma no «espírito de Assis», unidos
espiritualmente aos crentes de todo o mundo e às mulheres e homens de boa
vontade, rezamos uns ao lado dos outros para implorar sobre esta nossa terra o
dom da paz. Lembramos as feridas da humanidade, trazemos no coração a oração
silenciosa de tantos atribulados, muitas vezes sem nome nem voz. Por isso,
comprometemo-nos a viver e propor solenemente aos responsáveis dos Estados e
aos cidadãos do mundo inteiro este Apelo de Paz.
“Nesta Praça do Capitólio, pouco tempo depois do maior
conflito bélico de que há memória na história, as nações que se guerrearam
estabeleceram um Pacto, fundado sobre um sonho de unidade que, em seguida, se
realizou: uma Europa unida. Hoje, neste tempo de desorientação, açoitados pelas
consequências da pandemia covid-19, que ameaça a paz ao aumentar as
desigualdades e os medos, digamos com força: Ninguém pode salvar-se sozinho,
nenhum povo, ninguém!
“A guerra e a paz, as pandemias e os cuidados da
saúde, a fome e o acesso aos alimentos, o aquecimento global e a
sustentabilidade do desenvolvimento, os deslocamentos de populações, a
eliminação do risco nuclear e a redução das desigualdades não dizem respeito
apenas a cada nação individualmente. Compreendemo-lo melhor hoje, num mundo
cheio de conexões, mas onde muitas vezes se perde o sentido da fraternidade.
Somos irmãs e irmãos, todos! Peçamos ao Altíssimo que, depois deste tempo de
provação, deixe de haver «os outros» para existir apenas um grande «nós» rico
de diversidade. É tempo de voltar a sonhar, com ousadia, que a paz é possível,
a paz é necessária, um mundo sem guerras não é uma utopia. Por isso queremos
dizer mais uma vez: «Nunca mais guerra!»
“Infelizmente, aos olhos de muitos, a guerra voltou a
aparecer como uma via possível para a solução das disputas internacionais. Não
é assim. Antes que seja demasiado tarde, queremos lembrar a todos que a guerra
sempre deixa o mundo pior do que o encontrou. A guerra é um falimento da
política e da humanidade.
“Apelamos aos governantes para que rejeitem a
linguagem da divisão, frequentemente apoiada por sentimentos de medo e
desconfiança, e não adotem caminhos sem retorno. Pensemos conjuntamente nas
vítimas. Existem tantos, demasiados conflitos ainda em aberto.
“Aos responsáveis dos Estados, dizemos: Trabalhemos
juntos numa nova arquitetura da paz. Unamos as forças em prol da vida, da
saúde, da educação, da paz. Quanto aos recursos empregues na produção de armas
cada vez mais destrutivas, fautoras de morte, chegou a hora de os utilizar para
corroborar a vida, cuidar da humanidade e da nossa casa comum. Não percamos
tempo! Comecemos por objetivos atingíveis: unamos, já hoje, os esforços para
conter a propagação do vírus até termos uma vacina que seja apropriada e
acessível a todos. Esta pandemia veio lembrar-nos que somos irmãs e irmãos de
sangue.
“A todos os crentes, às mulheres e aos homens de boa
vontade, dizemos: Com criatividade façamo-nos artesãos da paz, construamos
amizade social, assumamos a cultura do diálogo. O diálogo leal, perseverante e
corajoso é o antídoto contra a desconfiança, as divisões e a violência. O
diálogo dissolve, pela raiz, as razões das guerras, que destroem o projeto de
fraternidade inscrito na vocação da família humana.
“Ninguém pode deixar de se sentir envolvido. Todos
somos corresponsáveis. Todos temos necessidade de perdoar e ser perdoados. As
injustiças do mundo e da história curam-se, não com o ódio e a vingança, mas
com o diálogo e o perdão.
“Que Deus inspire estes ideais a todos nós e este
caminho que percorremos juntos, plasmando o coração de cada um e fazendo-nos mensageiros
de paz!”.
***
Na verdade, qualquer tentativa de comentário só
empobrece o texto, que importa meditar, reler, decorar e assumir na educação,
no trabalho, na convivência, na vida.
2020.10.21 – Louro de Carvalho
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