quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Um mundo sem guerras não é utopia

 

O 20 de outubro de 2020 transformou Roma na Capital da Paz com um encontro internacional que reuniu, na Praça da Prefeitura de Roma, no Capitólio, líderes religiosos mundiais e autoridades locais, incluindo o Presidente da República de Itália. Na verdade, a iniciativa “Ninguém se salva sozinho – Fraternidade e Paz”, da comunidade cristã de Santo Egídio – que anualmente celebra, de cidade em cidade, esta iniciativa de oração e diálogo em prol da paz, entre os fiéis de várias religiões, recordando o encontro convocado por São João Paulo II, em 1986, em Assis –, recebeu representantes do islamismo, do judaísmo e do budismo, além do Patriarca Bartolomeu I, Patriarca Ecuménico de Constantinopla, do Bispo Heinrich, Presidente do Conselho da Igreja Evangélica na Alemanha, e do Papa Francisco que, na oportunidade, assinaram um apelo pela paz (o Arcebispo de Cantuária Justin não pôde comparecer por causa da pandemia):

Congregados em Roma no ‘Espírito de Assis’, unidos espiritualmente aos crentes de todo o mundo e às mulheres e homens de boa vontade, rezamos uns ao lado dos outros para implorar sobre esta nossa terra o dom da paz. Lembramos as feridas da humanidade, trazemos no coração a oração silenciosa de tantos atribulados, muitas vezes sem nome nem voz. Por isso comprometemo-nos a viver e propor solenemente aos responsáveis dos Estados e aos cidadãos do mundo inteiro este Apelo de Paz.”.

Implorando “o dom da paz” em nome dos sem nome nem voz, os líderes religiosos fizeram ecoar naquela praça romana o grito de São Paulo VI junto da ONU, em 1965: ‘Nunca mais a guerra!’. É o convite renovado pela fraternidade entre os povos “para nos salvar” de ameaças como a pandemia e a guerra – que representa “um falimento da política e da humanidade”.

Da Praça da Prefeitura de Roma, donde partiu o pacto de “uma Europa unida”, entre nações em conflito, “pouco tempo depois do maior conflito bélico de que há memória na história”, o apelo traz a inspiração em ideais como o diálogo e o perdão, sobretudo neste tempo de desorientação mercê das consequências da pandemia da covid-19, “que ameaça a paz ao aumentar as desigualdades e os medos”.

Tanto os problemas como as soluções “num mundo cheio de conexões” como o nosso – da fome ao acesso aos alimentos, do aquecimento global à sustentabilidade do desenvolvimento, por exemplo –, tocam-nos a todos e não só a cada país individualmente. Por isso, os líderes religiosos insistiram no “sentido da fraternidade” e disseram, com força, que “ninguém se pode salvar sozinho, nenhum povo, ninguém!”. E, porque todos somos irmãos e irmãs, exortaram:

Peçamos ao Altíssimo que, depois deste tempo de provação, deixe de haver ‘os outros’ para existir apenas um grande ‘nós’ rico de diversidade”, pois “é tempo de voltar a sonhar, com ousadia, que a paz é possível, a paz é necessária, um mundo sem guerras não é uma utopia”.

Lembrando que, infelizmente, “a guerra voltou a aparecer como uma via possível para a solução das disputas internacionais”, garantiram a necessidade de ter sempre presente que “a guerra sempre deixa o mundo pior do que o encontrou”. E, convictos de que “a guerra é um falimento da política e da humanidade”, apelaram aos governantes a que “rejeitem a linguagem da divisão, frequentemente apoiada por sentimentos de medo e desconfiança, e não adotem caminhos sem retorno”, pensando conjuntamente nas vítimas, pois há “demasiados conflitos ainda em aberto”.

Pedindo aos responsáveis dos países que, unindo as forças, criem uma “nova arquitetura da paz” em prol da vida, da saúde e da educação, propuseram:

Quanto aos recursos empregados na produção de armas cada vez mais destrutivas, fautoras de morte, chegou a hora de os utilizar para corroborar a vida, cuidar da humanidade e da nossa Casa Comum. Não percamos tempo! Comecemos por objetivos atingíveis: unamos, já hoje, os esforços para conter a propagação do vírus até termos uma vacina que seja apropriada e acessível a todos. Esta pandemia veio lembrar-nos que somos irmãs e irmãos de sangue.”.

E o apelo pela paz convoca todos a tornarem-se artesãos e mensageiros de paz, construindo uma “amizade social”, assumindo “a cultura do diálogo” – um diálogo que, se “leal, perseverante e corajoso”, pode transformar-se em “antídoto contra a desconfiança, as divisões e a violência”, e, assim, dissolver as guerras “pela raiz”. Para tanto, é preciso consciencializarmo-nos de que “ninguém pode deixar de se sentir envolvido”, pois “todos somos corresponsáveis, todos temos necessidade de perdoar e ser perdoados”. Com efeito, as injustiças “curam-se, não com o ódio e a vingança, mas com o diálogo e o perdão”.

***

No seu discurso, o Santo Padre manifestou alegria e gratidão a Deus por este momento de oração. E, recordando o encontro em Assis, frisou que “naquela visão de paz, havia uma semente profética” que foi amadurecendo “com encontros inéditos, iniciativas de pacificação, novos pensamentos de fraternidade”, pois, apesar dos factos dolorosos como conflitos, terrorismo ou radicalismo, às vezes em nome da religião”, são reconhecer “os passos frutuosos no diálogo entre as religiões” – “sinal de esperança que nos incita a trabalhar juntos como irmãos” – a ponto de termos chegado ao Documento sobre a Fraternidade Humana em prol da Paz Mundial e da Convivência Comum, assinado com o Grande Imame de al-Azhar.

Citando um trecho da sua recente Encíclica “Fratelli tutti”, o Pontífice disse que “o mandamento da paz está inscrito nas profundezas das tradições religiosas”. E vincou:

Os fiéis compreenderam que a diversidade de religião não justifica a indiferença nem a inimizade. Antes pelo contrário, a partir da fé religiosa, é possível tornar-se artesãos da paz e não espectadores inertes do mal da guerra e do ódio. (…) As religiões estão a serviço da paz e da fraternidade. Por isso, este encontro impele os líderes religiosos e todos os fiéis a rezarem insistentemente pela paz, não se resignarem jamais com a guerra e agirem mediante a força suave da fé para pôr fim aos conflitos.”.

Considerando a paz como a prioridade de qualquer política e que “o mundo tem uma sede ardente de paz”, Francisco alertou para o risco de a opinião pública se habituar ao mal da guerra, que “sempre causa de sofrimento e pobreza”, convidou “a tocar a carne dos que pagam as consequências, a prestar atenção aos prófugos, aos que sofreram radiações atómicas ou ataques químicos, às mulheres que perderam os filhos, às crianças mutiladas ou privadas de sua infância, e recordou que “hoje, as tribulações da guerra são agravadas também pela pandemia de coronavírus e pela impossibilidade, em muitos países, de se ter acesso aos tratamentos necessários”. Por isso, evocando o “basta” que Jesus disse aos discípulos quando lhe mostraram duas espadas antes da Paixão, disse que aquele “basta” de Jesus “atravessa os séculos e chega, forte, até nós hoje: basta com as espadas, as armas, a violência e a guerra”!

E, depois de avisar que nenhum povo ou grupo social pode alcançar, sozinho, a paz, o bem, a segurança e a felicidade e que a lição da pandemia atual “é a consciência de sermos uma comunidade mundial que viaja no mesmo barco”, sendo só possível “salvar-nos juntos”, vincou:

A fraternidade, que brota da consciência de sermos uma única humanidade, deve penetrar na vida dos povos, nas comunidades, no íntimo dos governantes, nos foros internacionais. Estamos juntos, nesta tarde, como pessoas de diferentes tradições religiosas, para comunicar uma mensagem de paz. Isto mostra claramente que as religiões não querem a guerra; pelo contrário, desmentem quem sacraliza a violência, pedem a todos que rezem pela reconciliação e atuem para que a fraternidade abra novas sendas de esperança.”. 

***

É de anotar que a sessão na Praça da Prefeitura decorreu no quadro dum evento de oração e diálogo em prol da paz. Assim, a sessão foi precedida de um momento intenso de oração na Basílica de Aracoeli, em torno da perícopa evangélica de Marcos que mostra Jesus crucificado e escarnecido (Mc15,23-32).

Aí o Papa pronunciou a sua homilia de que se respigam algumas das linhas pertinentes.

Começando por dizer que “rezar juntos é uma dádiva”, passou a comentar “a tentação que se abate sobre Ele (Jesus), exausto na cruz” e “no ponto mais alto do sofrimento e do amor”, com muitos a lançar-lhe o repto em modo de refrão: “Salva-Te a Ti mesmo!”. E, por se tratar duma tentação crucial que ameaça a todos, por via de “um instinto muito humano, mas mau”, que “constitui o último desafio a Deus crucificado”, especificou os diversos grupos que lançaram o repto ao Crucificado.

Os primeiros “eram pessoas comuns, que ouviram Jesus falar e fazer prodígios” e que agora O desafiam a descer da cruz, não por terem compaixão, mas por desejarem milagres. É o que pode suceder connosco ao queremos um deus à nossa medida, alimentando o culto no nosso “eu” “mediante a indiferença para com o outro”, indiferença que nos mantém longe de Deus.

Os segundos foram os príncipes dos sacerdotes e os escribas, os mesmos que condenaram Jesus, “porque representava um perigo para eles”. Aqueles líderes religiosos “conheciam Jesus” e “lembravam-se das curas e libertações por Ele realizadas”, mas, ao tomarem os outros como motivo para O acusar, “fazem uma dedução maliciosa: insinuam que salvar, socorrer os outros não traz bem algum”. Também nós “somos peritos em colocar os outros na cruz, contanto que nos salvemos a nós mesmos”. Ao invés, “Jesus deixa-Se crucificar para nos ensinar a não descarregar o mal sobre os outros”. “Ele, que salvara os outros, perde-Se a Si mesmo” é, na ótica do Papa, acusação “feita em tom de escárnio”, entendendo o verbo “salvar” não como Evangelho de salvação, que “assume as cruzes dos outros”, mas o apócrifo mais falso, que põe as cruzes aos ombros dos outros.

Os últimos a desafiar o Crucificado são os crucificados com Jesus, que “se associam ao ambiente de desafio contra Ele”. Enfim, descarregam as suas culpas “sobre os mais fracos e marginalizados” e procuram Jesus apenas “para resolver os problemas deles”, ao passo que “Deus vem não tanto para nos livrar dos problemas”, mas “para nos salvar do verdadeiro problema: a falta de amor”, “a causa profunda” dos “males pessoais, sociais, internacionais, ambientais”. Porém, neste ambiente, emerge um dos malfeitores a observar Jesus, admirando, n’Ele, a amorosa mansidão, e que obtém o Paraíso “deslocando a atenção de si mesmo para Jesus, de si mesmo para Quem estava ao seu lado”.

E, concluindo, Francisco sublinhou que, “no Calvário, aconteceu o grande duelo entre Deus, que veio salvar-nos, e o homem, que quer salvar-se a si mesmo, entre a fé em Deus e o culto do eu, entre o homem que acusa e Deus que desculpa”; e a vitória de Deus, que fez descer a sua misericórdia sobre o mundo. Com efeito, “da cruz, brotou o perdão, renasceu a fraternidade”.

Os braços abertos de Jesus assinalam a mudança radical, em que “Deus não aponta o dedo contra ninguém”, mas “abraça a cada um”, num amor que apaga o ódio, vence a injustiça, dá espaço ao outro e “é o caminho para a plena comunhão entre nós”.

E formula o voto de “que o Senhor nos ajude a caminhar juntos pela senda da fraternidade, para sermos testemunhas credíveis do Deus vivo”.

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Por fim, aqui deixo o texto do “APELO DE PAZ”.

“Congregados em Roma no «espírito de Assis», unidos espiritualmente aos crentes de todo o mundo e às mulheres e homens de boa vontade, rezamos uns ao lado dos outros para implorar sobre esta nossa terra o dom da paz. Lembramos as feridas da humanidade, trazemos no coração a oração silenciosa de tantos atribulados, muitas vezes sem nome nem voz. Por isso, comprometemo-nos a viver e propor solenemente aos responsáveis dos Estados e aos cidadãos do mundo inteiro este Apelo de Paz.

“Nesta Praça do Capitólio, pouco tempo depois do maior conflito bélico de que há memória na história, as nações que se guerrearam estabeleceram um Pacto, fundado sobre um sonho de unidade que, em seguida, se realizou: uma Europa unida. Hoje, neste tempo de desorientação, açoitados pelas consequências da pandemia covid-19, que ameaça a paz ao aumentar as desigualdades e os medos, digamos com força: Ninguém pode salvar-se sozinho, nenhum povo, ninguém!

“A guerra e a paz, as pandemias e os cuidados da saúde, a fome e o acesso aos alimentos, o aquecimento global e a sustentabilidade do desenvolvimento, os deslocamentos de populações, a eliminação do risco nuclear e a redução das desigualdades não dizem respeito apenas a cada nação individualmente. Compreendemo-lo melhor hoje, num mundo cheio de conexões, mas onde muitas vezes se perde o sentido da fraternidade. Somos irmãs e irmãos, todos! Peçamos ao Altíssimo que, depois deste tempo de provação, deixe de haver «os outros» para existir apenas um grande «nós» rico de diversidade. É tempo de voltar a sonhar, com ousadia, que a paz é possível, a paz é necessária, um mundo sem guerras não é uma utopia. Por isso queremos dizer mais uma vez: «Nunca mais guerra!»

“Infelizmente, aos olhos de muitos, a guerra voltou a aparecer como uma via possível para a solução das disputas internacionais. Não é assim. Antes que seja demasiado tarde, queremos lembrar a todos que a guerra sempre deixa o mundo pior do que o encontrou. A guerra é um falimento da política e da humanidade.

“Apelamos aos governantes para que rejeitem a linguagem da divisão, frequentemente apoiada por sentimentos de medo e desconfiança, e não adotem caminhos sem retorno. Pensemos conjuntamente nas vítimas. Existem tantos, demasiados conflitos ainda em aberto.

“Aos responsáveis dos Estados, dizemos: Trabalhemos juntos numa nova arquitetura da paz. Unamos as forças em prol da vida, da saúde, da educação, da paz. Quanto aos recursos empregues na produção de armas cada vez mais destrutivas, fautoras de morte, chegou a hora de os utilizar para corroborar a vida, cuidar da humanidade e da nossa casa comum. Não percamos tempo! Comecemos por objetivos atingíveis: unamos, já hoje, os esforços para conter a propagação do vírus até termos uma vacina que seja apropriada e acessível a todos. Esta pandemia veio lembrar-nos que somos irmãs e irmãos de sangue.

“A todos os crentes, às mulheres e aos homens de boa vontade, dizemos: Com criatividade façamo-nos artesãos da paz, construamos amizade social, assumamos a cultura do diálogo. O diálogo leal, perseverante e corajoso é o antídoto contra a desconfiança, as divisões e a violência. O diálogo dissolve, pela raiz, as razões das guerras, que destroem o projeto de fraternidade inscrito na vocação da família humana.

“Ninguém pode deixar de se sentir envolvido. Todos somos corresponsáveis. Todos temos necessidade de perdoar e ser perdoados. As injustiças do mundo e da história curam-se, não com o ódio e a vingança, mas com o diálogo e o perdão.

“Que Deus inspire estes ideais a todos nós e este caminho que percorremos juntos, plasmando o coração de cada um e fazendo-nos mensageiros de paz!”.

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Na verdade, qualquer tentativa de comentário só empobrece o texto, que importa meditar, reler, decorar e assumir na educação, no trabalho, na convivência, na vida.

2020.10.21 – Louro de Carvalho

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