sábado, 24 de outubro de 2020

A questão da emergência da China como grande potência mundial

 

O texto de Catarina Brites Soares sob o título A ameaça da China é real” publicado no Expresso, deste dia 24 de outubro, que incorpora declarações de Joseph Wu, Ministro dos Negócios Estrangeiros de Taiwan, fez-me lembrar a pressão veiculada, não há muito tempo, pelo embaixador dos EUA em Lisboa, segundo a qual o Governo de Portugal teria de optar pelo velho aliado em detrimento dum alinhamento com a República Popular da China, vindo Augusto Santos Silva, Ministro dos Negócios Estrangeiros português, vincar que estas decisões conexas com a soberania se tomam cá dentro.

Parecia o chefe da nossa diplomacia esquecer que a China é um país enorme em extensão territorial e população, sendo que está esta disseminada por todo o mundo servindo mais ou menos discretamente os desígnios hegemónicos daquele país asiático, e que a crise que eclodiu na 1.ª década deste século com efeitos que perduram e que se exponenciaram com a pandemia do novo coronavírus levou à transação de muitos grupos empresariais públicos e privados para empresas chinesas de gestão liberal, mas tão bem controladas pelos poderes estatais como os cidadãos chineses. E Portugal, não sendo um regime totalitário, cedeu à China setores estratégicos cuja reversão é impossível ou muito difícil. Tal é o caso da EDP e, sobretudo, o da REN. Que fará este nosso país soberano se China bloquear a distribuição de energia ou a produção de energia elétrica em Portugal? Pode optar pela nacionalização, mas criará o pretexto para uma guerra com o gigante amarelo aqui nas barbas dos EUA, da Grã-Bretanha e da UE.           

Diz o chefe da diplomacia de Taiwan, receando o pior, que Xi Jinping quer que a China se prepare para a guerra, pois um ataque a Taipé “seria o bode expiatório de que a China precisa para desviar as atenções da crise que atravessa”, sendo que Pequim, agora a subir de tom, não olhará a meios para alcançar a reunificação. E sublinha o risco de a comunidade internacional ceder à pressão chinesa, pressão patente no silêncio da OMS (Organização Mundial de Saúde) sobre o vírus da covid-19, já que o poder de Taiwan foi prestes a perceber e a avisar a aproximação de uma epidemia grave, mas ninguém ouviu, porque a palavra de Pequim se sobrepôs.

Não é só a pressão militar chinesa que se tem intensificado, por exemplo, com a violação do Estreito de Taiwan, que separa ideo­lógica e geograficamente Taiwan da China, garantindo a estabilidade e a segurança na região há décadas, mas é também evidente o incómodo bloqueio por parte do Governo da República Popular da China à  República da China (Taiwan).

É certo que Pequim prometeu – e tem insistido nisso – o modelo ‘Um país, dois sistemas’ para para Taiwan, sob o princípio ‘Uma só China’, o que significa agregar aquela República, como fez para Macau e Hong Kong, não devendo qualquer solução passar pela força ou pela ameaça. Porém, o Governo chinês escusa-se a negociar “com base na paz, paridade, democracia e diálogo”, princípios de que Taiwan diz não prescindir. E Joseph Wu vê que o problema se verifica no mar Oriental da China e no mar do Sul da China, onde os japoneses sentem crescente pressão; no conflito com a Índia; e mesmo no que se passa na China, em Xinjiang, Mongólia, Tibete e Hong Kong. E sabemos que algo de similar se passa em Macau, como recentemente ocorreu com o encerramento precoce duma exposição por supostamente exibir imagens de cenas de reivindicação de direitos políticos em Hong Kong.

Refere o Ministro dos Negócios Estrangeiros de Taiwan que uma invasão da ilha se afigura como uma preocupação, pois “os exercícios militares chineses são cada vez mais sérios”, o que mostra que “um regime autoritário tende a procurar uma crise externa” ao querer “desviar as atenções da crise doméstica, como a que a China atravessa face ao desaceleramento económico e à guerra comercial com os Estados Unidos da América”. Por outro lado, sublinha, “desde janeiro do ano passado que o regime chinês avisa que quer tomar Taiwan pacificamente, mas que usará a força se necessário”, o que revela que a sobrevivência dum regime autoritário “é sempre a sua maior preocupação”, não se preocupando com o facto de uma guerra constituir um cenário em que todos perdem. Aliás, como Wu observa, “se olharmos para a História, a resposta dos regimes autoritários às crises internas é procurar culpados”.

Apesar de tudo, o chefe da diplomacia de Taiwan acredita numa solução pacífica, desde que o apoio da comunidade internacional seja forte e consolidado com vista à coexistência pacífica, sendo que, se ambos os lados pretendem conviver, o atual status quo do Governo taiwanês sobre Taiwan tem de ser respeitado. Efetivamente a Taiwan não convém o princípio ‘Um país, dois sistemas’, que garante alguma autonomia a Macau e Hong Kong. É certo que a China prometeu governar Hong Kong sob esse princípio. Porém, a imposição da Lei de Segurança Nacional, este ano, tornou clarividente que “só há um país, um sistema”. E Hong Kong, que “era um símbolo de liberdade e prosperidade”, viu a liberdade ser progressivamente condicionada. Ora, Taiwan, que “goza de uma democracia plena, com total liberdade de expressão e de imprensa”, perderá o que tem, se tal princípio lhe for imposto, “como aconteceu a Hong Kong”. E, segundo o último inquérito sobre o assunto, a população rejeita massivamente o modelo ‘Um país, dois sistemas’ e “nenhum Governo democraticamente eleito em Taiwan o aceitará”.

No atinte às solidariedades político-diplomáticas dos diversos países, Joseph Wu reconhece que,apesar de a China estar a conseguir angariar os alia­dos de Taiwan através de estratégias financeiras e diplomáticas”, o certo é que “o apoio da comunidade internacional a Taipé tem aumentado, e tremendamente”. Assim, vários países instam à participação de Taipé na OMS; foi criado na UE, o “Formosa Club” por eurodeputados de diversos países, assim como na América Latina, neste caso por iniciativa de deputados de 10 países que não têm relações diplomáticas com Taiwan; muitos sustentam que as relações entre Taiwan e os EUA atravessam o melhor período; e o mesmo se pode dizer do Japão. E também a relação com a Europa é cada vez melhor, a ponto de as relações comerciais e o investimento crescerem e sempre Taiwan contar com o apoio europeu para integrar a OMS. Na verdade, a UE é a primeira no que concernente ao investimento direto estrangeiro em Taiwan. E Taiwan, com a covid-19, enviou recursos de proteção individual e dispõe-se a continuar a trabalhar “para que a UE veja que Taiwan não é só uma democracia bem-sucedida, mas também um parceiro de confiança”.

Entretanto, Taipé condena a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”, a que aderiram 21 sócios fundadores da associação dos ANRS (Amigos da Nova Rota da Seda) a 21 de dezembro de 2016, aquando da outorga da escritura de constituição da associação, convictos, segundo Fernanda Ilhéu, de que “a visão chinesa de lançar a iniciativa ‘Uma Faixa, Uma Rota’, com o objetivo de revitalizar as antigas Rotas da Seda Terrestres e Marítimas e torná-las novos vetores do comércio mundial, iria dar um novo impulso à globalização e um enorme contributo para um mundo mais sustentável, desenvolvido e pacífico”, estando o Governo chinês “determinado a trabalhar para que Portugal cooperasse com a China nesta iniciativa e tivesse um papel importante na Rota da Seda Marítima do Século XXI”. Com efeito, Portugal foi o primeiro país da Europa Ocidental a assinar com a China um memorando de entendimento para enquadrar a sua cooperação na construção da Nova Rota da Seda.

A assinatura de tal memorando decorreu em dezembro de 2018 durante a visita do Presidente da República Popular da China, Xi Jinping, a Portugal, tendo, desde então, as autoridades chinesas, a começar pela Embaixada da China em Lisboa, reforçado o seu empenho em “aproximar a cooperação dos dois povos nesta iniciativa, trazendo para Portugal delegações governamentais, missões empresariais, académicas e culturais”.

Todavia, o Ministro dos Negócios Estrangeiros de Taiwan sustenta que se trata de uma forma de assegurar o investimento chinês, especialmente em infraes­truturas, para depois estender o seu domínio”, exercendo a sua influência e exportando o seu autoritarismo. E diz que “são vários os exemplos em que o investimento ficou aquém das expectativas: projetos de construção com problemas de qualidade e a armadilha da dívida – muitos países não estão a conseguir pagar os colossais empréstimos da China para financiar os projetos”. Por isso, entende que se olhe para as motivações e se impeça o domínio da comunidade internacional com esta iniciativa.

No quadro da aproximação de Washington a Taiwan, não se pronuncia sobre qual dos candidatos presidência – Trump ou Biden – será mais benéfico, antecipando que não prevê qualquer problema, pois o regime de Taipé tem ótimas relações com republicanos e democratas, e rejeita a ideia de que os EUA estejam a usar Taiwan contra a China

Considera que Taiwan provou que a transparência e a democracia são as melhores formas de lidar com a pandemia, que a relação com Pequim se agudizou e que Taiwan quer regressar à assembleia-geral da OMS, mas tem sido rejeitada. Na verdade, a China domina a OMS e tem dificultado a participação de Taiwan, que tem “o direito de receber informação em primeira mão, como os outros”. E, sustentando que a sua participação beneficiará toda a comunidade internacional, garante que, desde a SARS (síndrome respiratória aguda grave), que tem estado muito atenta ao que se passa na China, tendo detetado que “algo muito similar se estava a passar em Wuhan”. Começou a testar quem chegava da cidade e a alertava a população para tomar medidas. Assim, logo em dezembro de 2019, se deparou com “relatórios da China que referiam similitudes com a SARS e que os pacientes precisavam de ser curados em isolamento, sinal de que era contagioso”. Enviou e-mail à OMS e às autoridades de saúde chinesas a alertar para a gravidade da situação, tendo a OMS respondido que iria passar o e-mail às entidades relevantes e as autoridades de saúde chinesas emitido um comunicado que “basicamente não dizia nada”.

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Enfim, a China no seu melhor: a tentação da hegemonia estratégica pela via da dinâmica económica liberal, mas com absoluto controlo estatal, querendo aceder a todos os cantos do orbe dominando (Quem domina exclui: não da vez nem voz) e subentendendo que utilizará a força, se necessário e possível. A guerra dependerá da contagem de recursos da parte da Rússia, dos EUA e da China, sendo que esta tem desenvolvido a inteligência e a capacidade de produção com qualidade como nunca. Tem aprendido com o Ocidente, que deslocalizou para lá muitas das suas empresas; e tem sabido desenvolver o conhecimento e a exerce o império do controlo.

Que papel terá nisto a UE, que não tem sido uma voz solidária e consolidada nem a nível interno nem a nível externo? Continuará a assobiar para o lado? E Portugal, tornado dependente da China do ponto de vista estratégico, contenta-se com que as decisões se tomem cá dentro!

2020.10.24 – Louro de Carvalho

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