sábado, 7 de novembro de 2020

O luto é um processo dramaticamente solitário

 

A asserção é recorrente no discurso de José Eduardo Rebelo, da Universidade de Aveiro, fundador da associação APELO, biólogo de formação, mas que, há vários anos, se dedica à investigação na área do luto e que, em entrevista à Renascença e a Ecclesia, publicada a 1 de novembro passado, assegura: “O luto faz-se sempre”.

Dadas as dramáticas circunstâncias excecionais da pandemia, que coarctaram gravemente as expressões do luto pelos falecidos neste contexto, a entrevista afigura-se-me de especial pertinência, pelo que me permito respigar alguns dos seus principais conteúdos. 

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Começou por explicar o surgimento da APELO, referindo que já existia “A nossa âncora”, associação de apoio a pais em luto, que se dedicava exclusivamente a esta área, particularmente através dos grupos de entreajuda. Porém, como não havia uma estrutura que tratasse do luto em termos globais e dos diferentes tipos de luto (perda de filhos, viuvez, perda de pais, etc.), o entrevistado criou a APELO em 2004. E, verificando que a forte resistência em relação a esta temática por parte da comunidade em geral e mesmo de certos setores mais esclarecidos, nomeadamente a nível académico. Com efeito, a morte, o luto, “a expressão das emoções provocadas por perdas pessoais profundas” constituíam matéria muito delicada. Por isso, convidou colegas de diferentes academias (Universidade de Lisboa, Universidade do Minho e Universidade de Coimbra) e organizou na Universidade de Aveiro uma reunião para debater a questão e tomar medidas, de que, tendo em conta a necessidade de dar um salto qualitativo, resultou a criação da Sociedade Portuguesa de Estudo e Intervenção no Luto (SPEIL). E, em função disso, surgiu o “Espaço de Luto”, com “uma vertente mais para a área formativa e de investigação”, pelo que, em 2010, se deu “um salto qualitativo na abordagem na temática do luto em Portugal”.

No âmbito da sensibilização e da formação, uma das primeiras iniciativas foi a organização dos congressos sobre o luto, com os maiores especialistas a nível mundial. Assim, fizeram-se cinco edições do Congresso ‘O luto em Portugal’ e um congresso mundial, alternadamente entre a Universidade de Aveiro e a Universidade de Lisboa, concluindo que, apesar das aprendizagens conseguidas, as estratégias utilizadas pelos outros especialistas “não nos eram estranhas”, designadamente a abertura e a ação efetiva para a ação comunitária, os grupos de entreajuda, etc., caraterísticos sobretudo das culturas anglo-saxónicas.

Considera que, durante esta década, se alterou a disponibilidade das pessoas e de determinados setores, nomeadamente a nível académico, para esta temática, tendo o luto chegado às academias, tanto que já se fazem teses de doutoramento e de mestrado e o luto já começa a ser investigado duma forma que o não era antes deste impulso. Não obstante, continua a existir certa indisponibilidade das pessoas para procurarem apoio institucional junto dos Conselheiros do Luto, que também foram criados por não haver especialistas no apoio ao luto.

Todavia, caminha-se no sentido “de dar passos, de consolidar…”. E, “de facto, já se dão passos e vão surgindo reflexos da nossa atividade”. E o académico exemplifica:

Na sequência dos incêndios de 2017, que provocaram uma grande tragédia comunitária, com bastantes mortes, foi decidido pelo Estado promover uma ação comunitária direta na região, e fomos convidados, e estamos a exercer essa ação como ‘consultores’ para um grande projeto de ação comunitária de capacitação para apoio ao luto, e de apoio ao luto por ação comunitária”.

No quadro da formação regular, destaca-se o Curso de Conselheiros do Luto, que decorre durante mais de 80 horas. E, depois, surgem as ações de curta duração (8 horas), como “Desatar o nó do luto”, marcada para dias 16 e 17 deste mês de novembro, e outras como “O desgaste (burnout) do cuidador”, o “Luto no idoso”, ou “Comunicar a morte”.

Tudo isto resulta da experiência e da verificação de que fazia falta em Portugal a especialidade em apoio ao luto. E o biólogo confessa que, por consequência de uma tragédia pessoal, teve de se dedicar também a esta área de investigação. Decidiu criar o Curso de Conselheiros do Luto, pois, lecionando biologia a alunos do curso de Psicologia da Universidade de Aveiro, e em colaborações com o curso de enfermagem, na Escola de Saúde (Aveiro) e pelo país fora (desde Viana do Castelo até Beja e ao Algarve), advertiu que a formação nas áreas de saúde e na área social da psicologia, não eram capacitantes no âmbito do luto, tema que era abordado a correr, geralmente numa aula. Por isso, na SPEIL, falou com António Barbosa, da Faculdade de Medicina, no sentido da mudança deste paradigma no país e da criação de especialistas em luto, com duas vertentes: a da ação comunitária, do apoio ao luto sadio (90% dos lutos que as pessoas vivenciam, experienciam, são de natureza sadia); e a dos lutos psicopatológicos, que têm de ser tratados sob supervisão psiquiátrica. E foram criados dois tipos de especialistas: os Conselheiros do Luto e os Terapeutas do Luto.

O Conselheiro do Luto ouve empaticamente a pessoa, não a julgando nem muito menos censurando. Com efeito, o luto leva a que as pessoas, em virtude duma perda pessoal profunda, vivenciem situações anormais em relação ao que elas próprias conhecem de si. E, como é “um processo extremamente doloroso, que se pode prolongar mais ou menos no tempo”, se for partilhado, “é menos sofrido e demora necessariamente menos tempo”. Assim, é preciso que exista “uma rede social familiar que permita à pessoa falar”, já que o enlutado necessita de falar, ser ouvido, sem condições, pois não está disponível para ouvir, mas apenas para ser ouvido.

E, como explica José Rebelo, o conselheiro, ouvindo, “cria um espaço de segurança para a pessoa partilhar tudo”, sem ser julgada e sem se expor. Não pode suceder que, “vivendo ela “numa vulnerabilidade emocional”, passe a “vulnerabilidade social”. Por isso, o Conselheiro do Luto “centra-se na pessoa, ouve aquilo que a pessoa vai dizendo”. E, depois, há “vivências de sujeição, vivências de assimilação da perda, sujeição à perda”, pelo que se vai devolvendo à pessoa os “elementos de assimilação”, no sentido de ela progredir no processo do luto de forma o mais tranquila possível.

O menu da página “apelo.pt” tem a opção “pedido de apoio para o meu luto”. A pessoa clica e encontra um formulário, que preenche, e obtém, passadas 48 horas, no máximo, um contacto telefónico. Se não estiver familiarizada com a internet, liga para o 917 052 052, nos dias úteis, entre as 14 horas e as 17, comunica e é marcada uma sessão presencial – se a pandemia deixar – em Aveiro, Lisboa, Estremoz e Coimbra –, ou à distância para todo o país e para todo o mundo.

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Questionado sobre as eventuais marcas para o futuro, em resultado das restrições de deslocação impostas pelo Governo, que levaram ao não cumprimento de alguns rituais em muitos dos cemitérios do país a 1 e 2 de novembro – dias de romagem, peregrinação interior e exterior aos cemitérios –, começou por afirmar categoricamente que “o luto se faz sempre e não é um trauma psicológico, não é uma doença”, pois, “se fosse uma doença, estaríamos todos mortos”, já que, “ao longo da vida, passamos por cerca de 40 perdas”, desde logo “a perda da infância, da adolescência e, depois, as perdas pessoais profundas”. E sobrevivemos a todas elas, porque “estamos capacitados biologicamente para enfrentar e superar as perdas”. Por isso, “o luto faz-se sempre”, ainda que “de forma mais dolorosa, sofrida, de forma mais demorada ou menos demorada, mas faz-se”. Neste aspeto, os rituais, ajudam criando rotinas e apoios nestes momentos de maior desequilíbrio. E continuamos a marcha “criamos um novo equilíbrio”.

Quanto à pandemia, diz que se trata de um dos muitos acidentes de percurso”. E, sendo muito significativo para as pessoas, tem uma curiosidade: a sua natureza comunitária, ou seja, afeta a todos. Ora, se uma pessoa é afetada no seu processo de luto por uma circunstância (distância, viagem…), tem um problema específico, não fácil de ultrapassar. Porém, “quando se trata de um evento de natureza comunitária, claro que individualmente as pessoas se sentem revoltadas – que faz parte do processo de luto, a revolta –, isso provoca tristeza, culpa, mas são episódios, passageiros, em relação ao luto” – explica.

Acha que é excessiva a denominação de “trauma”, pois, embora haja desequilíbrios, as pessoas superam, quando trauma “é algo que fica para o resto da vida e é extremamente complexo” e “o luto é um processo sadio”.

Sobre o putativo exagero da parte das autoridades no condicionamento das celebrações fúnebres, observa que, desde há 100 anos, nunca tínhamos enfrentado tão grave situação, em que a espécie humana pode estar em risco – “uma ameaça global”, com que a própria natureza nos confronta, levando-nos a tomar medidas. Em tempos de incerteza, “qualquer decisão que seja tomada acaba sempre por ser criticada”: por pecar por defeito ou por ser excessiva.

Considera que o luto é um problema de saúde pública e diz que, se houvesse disponibilidade para o apoio ao luto, os conselheiros do luto fossem reconhecidos e estivessem nos Centros de Saúde, as respostas teriam sido mais fáceis, nomeadamente ajudando as pessoas que se veem confrontadas com limitações, sobretudo relativamente aos seus rituais.

Interpelado pelo facto de muitas pessoas ficarem a pensar no que não puderam fazer e questionado se a família, os grupos mais próximos, poderiam procurar alternativas, recorrendo a novas tecnologias, é categórico a afirmar que “o luto é individual”, pois, quando uma pessoa ama outra pessoa, “ninguém consegue imaginar a dimensão, os laços intrincados” que se criam, “laços de sobrevivência”. Por isso, o luto “é um processo dramaticamente solitário”, embora as pessoas encontrem “estratégias comunitárias de resposta, para se sentirem mais confortáveis”. E uma delas “é a cerimónia com toda a gente no cemitério”, a normalizar “o que é individual”. Assim, as pessoas, devendo pensar que está em jogo “a sua própria vida”, encontrarão “formas individuais de estabelecer memórias aprazíveis relativamente à pessoa perdida”. É possível (com as redes sociais, a internet) criar formas de as pessoas se encontrarem, mas “não é mesma coisa, porque estão habituadas a um ritual, e isto exige muita imaginação”. E o académico pensa que, “do ponto de vista individual, do luto, cada um deve encontrar o seu memorial”. E exemplifica:

Há um evento que se chama “acenda uma vela” e que é em memória de filhos. Pode criar-se uma coisa desse género, em que a pessoa põe uma vela elétrica na janela ou põe uma tarja de determinada cor. Ou põe à janela a coroa de flores que ia colocar no cemitério. Não está no local, mas está, a nível global, a demonstrar a memória que tem da pessoa perdida.”.

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Sendo assim, não creio que os portugueses não tenham encontrado forma de homenagear os seus mortos. E, se não o fizeram, ainda estão a tempo. Eles merecem ficar na nossa memória.

Resta dizer que a SPEIL organiza o Curso de Terapeutas do Luto (3 anos, 150 horas) para criar competências de intervenção (individual, familiar, grupal, escolar e comunitária) no processo de luto, conhecer os modelos teóricos do luto e potenciar o desenvolvimento pessoal.

2020.11.07 – Louro de Carvalho 

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