A asserção é
recorrente no discurso de José Eduardo
Rebelo, da Universidade de Aveiro, fundador da associação APELO, biólogo de
formação, mas que, há vários anos, se dedica à investigação na área do luto e
que, em entrevista à Renascença e a Ecclesia, publicada a 1 de
novembro passado, assegura: “O luto faz-se sempre”.
Dadas as dramáticas circunstâncias excecionais da
pandemia, que coarctaram gravemente as expressões do luto pelos falecidos neste
contexto, a entrevista afigura-se-me de especial pertinência, pelo que me
permito respigar alguns dos seus principais conteúdos.
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Começou por explicar o surgimento da APELO,
referindo que já existia “A nossa âncora”,
associação de apoio a pais em luto, que se dedicava exclusivamente a esta
área, particularmente através dos grupos de entreajuda. Porém, como não havia
uma estrutura que tratasse do luto em termos globais e dos diferentes tipos de
luto (perda de
filhos, viuvez, perda de pais, etc.), o
entrevistado criou a APELO em 2004.
E, verificando que a forte resistência em relação a esta temática por parte da
comunidade em geral e mesmo de certos setores mais esclarecidos, nomeadamente a
nível académico. Com efeito, a morte, o luto, “a expressão das emoções provocadas
por perdas pessoais profundas” constituíam matéria muito delicada. Por isso,
convidou colegas de diferentes academias (Universidade de Lisboa, Universidade
do Minho e Universidade de Coimbra) e organizou
na Universidade de Aveiro uma reunião para debater a questão e tomar medidas,
de que, tendo em conta a necessidade de dar um salto qualitativo, resultou a
criação da Sociedade Portuguesa de Estudo e Intervenção no Luto (SPEIL). E, em função disso, surgiu o “Espaço de Luto”, com “uma vertente mais para a área formativa e de
investigação”, pelo que, em 2010, se deu “um salto qualitativo na abordagem na
temática do luto em Portugal”.
No âmbito da sensibilização
e da formação, uma das
primeiras iniciativas foi a organização dos congressos sobre o luto, com os
maiores especialistas a nível mundial. Assim, fizeram-se cinco edições do
Congresso ‘O luto em Portugal’ e um
congresso mundial, alternadamente entre a Universidade de Aveiro e a Universidade
de Lisboa, concluindo que, apesar das aprendizagens conseguidas, as estratégias
utilizadas pelos outros especialistas “não nos eram estranhas”, designadamente
a abertura e a ação efetiva para a ação comunitária, os grupos de entreajuda,
etc., caraterísticos sobretudo das culturas anglo-saxónicas.
Considera que, durante esta década, se alterou a disponibilidade das
pessoas e de determinados setores, nomeadamente a nível académico, para esta
temática, tendo o luto chegado às academias, tanto que já se fazem teses de
doutoramento e de mestrado e o luto já começa a ser investigado duma forma que o
não era antes deste impulso. Não obstante, continua a existir certa
indisponibilidade das pessoas para procurarem apoio institucional junto dos
Conselheiros do Luto, que também foram criados por não haver especialistas no
apoio ao luto.
Todavia, caminha-se no sentido “de dar passos, de consolidar…”. E, “de
facto, já se dão passos e vão surgindo reflexos da nossa atividade”. E o
académico exemplifica:
“Na sequência dos incêndios de 2017, que
provocaram uma grande tragédia comunitária, com bastantes mortes, foi decidido
pelo Estado promover uma ação comunitária direta na região, e fomos convidados,
e estamos a exercer essa ação como ‘consultores’ para um grande projeto de ação
comunitária de capacitação para apoio ao luto, e de apoio ao luto por ação
comunitária”.
No quadro da formação regular,
destaca-se o Curso de Conselheiros do Luto, que
decorre durante mais de 80 horas. E, depois, surgem as ações de curta duração (8 horas), como “Desatar o nó do luto”, marcada para dias 16 e 17 deste mês
de novembro, e outras como “O desgaste (burnout) do cuidador”, o “Luto
no idoso”, ou “Comunicar a morte”.
Tudo isto resulta da experiência e da verificação de que fazia falta em
Portugal a especialidade em apoio ao luto. E o biólogo confessa que, por
consequência de uma tragédia pessoal, teve de se dedicar também a esta área de
investigação. Decidiu criar o Curso de
Conselheiros do Luto, pois, lecionando biologia a alunos do curso de
Psicologia da Universidade de Aveiro, e em colaborações com o curso de
enfermagem, na Escola de Saúde (Aveiro) e pelo país
fora (desde Viana
do Castelo até Beja e ao Algarve), advertiu
que a formação nas áreas de saúde e na área social da psicologia, não eram
capacitantes no âmbito do luto, tema que era abordado a correr, geralmente numa
aula. Por isso, na SPEIL, falou com António Barbosa, da Faculdade de Medicina, no
sentido da mudança deste paradigma no país e da criação de especialistas em
luto, com duas vertentes: a da ação comunitária, do apoio ao luto sadio (90% dos
lutos que as pessoas vivenciam, experienciam, são de natureza sadia); e a dos lutos psicopatológicos, que têm de ser
tratados sob supervisão psiquiátrica. E foram criados dois tipos de
especialistas: os Conselheiros do Luto e
os Terapeutas do Luto.
O Conselheiro do Luto ouve
empaticamente a pessoa, não a julgando nem muito menos censurando. Com efeito,
o luto leva a que as pessoas, em virtude duma perda
pessoal profunda, vivenciem situações anormais em relação ao que elas próprias
conhecem de si. E, como é “um processo extremamente doloroso, que se pode
prolongar mais ou menos no tempo”, se for partilhado, “é menos sofrido e demora
necessariamente menos tempo”. Assim, é preciso que exista “uma rede social
familiar que permita à pessoa falar”, já que o enlutado necessita de falar, ser
ouvido, sem condições, pois não está disponível para ouvir, mas apenas para ser
ouvido.
E, como explica José Rebelo, o conselheiro, ouvindo, “cria um espaço de
segurança para a pessoa partilhar tudo”, sem ser julgada e sem se expor. Não pode
suceder que, “vivendo ela “numa vulnerabilidade emocional”, passe a “vulnerabilidade
social”. Por isso, o Conselheiro do Luto “centra-se na pessoa, ouve aquilo que
a pessoa vai dizendo”. E, depois, há “vivências de sujeição, vivências de
assimilação da perda, sujeição à perda”, pelo que se vai devolvendo à pessoa os
“elementos de assimilação”, no sentido de ela progredir no processo do luto de
forma o mais tranquila possível.
O menu da página “apelo.pt” tem a opção “pedido de apoio para o meu luto”. A pessoa clica e encontra um
formulário, que preenche, e obtém, passadas 48 horas, no máximo, um contacto
telefónico. Se não estiver familiarizada com a internet, liga para o
917 052 052, nos dias úteis, entre as 14 horas e as 17, comunica e é
marcada uma sessão presencial – se a pandemia deixar – em Aveiro, Lisboa,
Estremoz e Coimbra –, ou à distância para todo o país e para todo o mundo.
***
Questionado sobre as
eventuais marcas para o futuro, em resultado das restrições de deslocação
impostas pelo Governo, que levaram ao não cumprimento de alguns rituais em
muitos dos cemitérios do país a 1 e 2 de novembro – dias de romagem,
peregrinação interior e exterior aos cemitérios –, começou por afirmar
categoricamente que “o luto se faz
sempre e não é um trauma psicológico, não é uma doença”, pois, “se fosse uma
doença, estaríamos todos mortos”, já que, “ao longo da vida, passamos por cerca
de 40 perdas”, desde logo “a perda da infância, da adolescência e, depois, as
perdas pessoais profundas”. E sobrevivemos a todas elas, porque “estamos
capacitados biologicamente para enfrentar e superar as perdas”. Por isso, “o
luto faz-se sempre”, ainda que “de forma mais dolorosa, sofrida, de forma mais
demorada ou menos demorada, mas faz-se”. Neste aspeto, os rituais, ajudam
criando rotinas e apoios nestes momentos de maior desequilíbrio. E continuamos
a marcha “criamos um novo equilíbrio”.
Quanto à pandemia, diz que se trata de um dos “muitos
acidentes de percurso”. E, sendo muito significativo para as pessoas, tem uma
curiosidade: a sua natureza comunitária, ou seja, afeta a todos. Ora, se uma
pessoa é afetada no seu processo de luto por uma circunstância (distância,
viagem…), tem um problema específico, não
fácil de ultrapassar. Porém, “quando
se trata de um evento de natureza comunitária, claro que individualmente as
pessoas se sentem revoltadas – que faz parte do processo de luto, a revolta –,
isso provoca tristeza, culpa, mas são episódios, passageiros, em relação ao
luto” – explica.
Acha que é excessiva a denominação de “trauma”, pois, embora haja
desequilíbrios, as pessoas superam, quando trauma “é algo que fica para o resto
da vida e é extremamente complexo” e “o luto é um processo sadio”.
Sobre o putativo exagero da parte das autoridades no condicionamento das
celebrações fúnebres, observa que, desde há 100 anos, nunca tínhamos enfrentado
tão grave situação, em que a espécie humana pode estar em risco – “uma ameaça
global”, com que a própria natureza nos confronta, levando-nos a tomar medidas.
Em tempos de incerteza, “qualquer decisão que seja tomada acaba sempre por ser
criticada”: por pecar por defeito ou por ser excessiva.
Considera que o luto é um problema de saúde pública e diz que, se houvesse disponibilidade
para o apoio ao luto, os conselheiros do luto fossem reconhecidos e estivessem
nos Centros de Saúde, as respostas teriam sido mais fáceis, nomeadamente
ajudando as pessoas que se veem confrontadas com limitações, sobretudo
relativamente aos seus rituais.
Interpelado pelo facto de muitas
pessoas ficarem a pensar no que não puderam fazer e questionado se a família,
os grupos mais próximos, poderiam procurar alternativas, recorrendo a novas
tecnologias, é categórico a afirmar que “o luto é individual”, pois, quando uma
pessoa ama outra pessoa, “ninguém
consegue imaginar a dimensão, os laços intrincados” que se criam, “laços de
sobrevivência”. Por isso, o luto “é um processo dramaticamente solitário”,
embora as pessoas encontrem “estratégias comunitárias de resposta, para se
sentirem mais confortáveis”. E uma delas “é a cerimónia com toda a gente no
cemitério”, a normalizar “o que é individual”. Assim, as pessoas, devendo
pensar que está em jogo “a sua própria vida”, encontrarão “formas individuais
de estabelecer memórias aprazíveis relativamente à pessoa perdida”. É possível (com as
redes sociais, a internet) criar formas
de as pessoas se encontrarem, mas “não é mesma coisa, porque estão habituadas a
um ritual, e isto exige muita imaginação”. E o académico pensa que, “do ponto
de vista individual, do luto, cada um deve encontrar o seu memorial”. E
exemplifica:
“Há um evento que se chama “acenda uma vela”
e que é em memória de filhos. Pode criar-se uma coisa desse género, em que a
pessoa põe uma vela elétrica na janela ou põe uma tarja de determinada cor. Ou
põe à janela a coroa de flores que ia colocar no cemitério. Não está no local,
mas está, a nível global, a demonstrar a memória que tem da pessoa perdida.”.
***
Sendo
assim, não creio que os portugueses não tenham encontrado forma de homenagear
os seus mortos. E, se não o fizeram, ainda estão a tempo. Eles merecem ficar na
nossa memória.
Resta dizer
que a SPEIL organiza o Curso de Terapeutas do Luto (3
anos, 150 horas) para
criar competências de intervenção (individual, familiar,
grupal, escolar e comunitária)
no processo de luto, conhecer os modelos teóricos do luto e potenciar o
desenvolvimento pessoal.
2020.11.07 –
Louro de Carvalho
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