Compreendo o Primeiro-Ministro quando sente que tem
de reforçar o painel, a extensão e o alcance das medidas restritivas face à evolução
gravosa do surto pandémico. Também admito que uns considerem que são excessivas
e que outros as consideram insuficientes e que ou são prematuras ou que vêm com
atraso. E entendo quão difícil é equilibrar a defesa da saúde pública e a sanidade
da economia, como penso que não é fácil satisfazer cabalmente as justas reivindicações
por avultadas perdas de rendimento das famílias, de lucro das empresas e de
solidez das finanças públicas, nem segurar o emprego ou abater a precariedade.
Sei que ninguém estava preparado para uma situação
como esta. Porém, não aprendemos a lição com os países por onde a pandemia passou
antes de chegar à Europa, embora os países da UE (União Europeia) não atenham subestimado como o fizeram Trump, Bolsonaro
ou Boris Johnson.
Também não aprendemos com os ensinamentos que a
1.ª vaga desgraçadamente nos ofereceu. Como é óbvio, as incertezas científicas
mantiveram-se ou pouco se transformaram em certezas. E não percebo como
rapidamente se prescindiu de estruturas de retaguarda que poderiam ser úteis
nesta 2.ª vaga que chegou mais cedo do que alguns pensavam, pois não souberam
jogar com as vicissitudes do clima e com o deslaçamento provocado pela generalização
do regresso ao trabalho, às atividades ditas normais de educação e ensino, à estabilização
dos serviços de saúde, públicos e privados, e à quase generalidade do funcionamento
da administração comércio e serviços. E, como era de esperar, assistiu-se a um
mais que indesejável relaxamento em convívios, festas e espetáculos enquanto se
exigia contenção desmesurada noutros casos.
A generalidade dos cidadãos aceitou, embora com
pesar, as medidas do confinamento geral porque tal o impunha a situação, pois
não havia instrumentos de proteção pessoal e comunitária, nem os espaços
estavam equipados para responder à pandemia com o mínimo de eficácia.
Entretanto, o surto epidémico nos lares de idosos
subiu até ao clamor, quando apenas se limitou a deixar a nu a vulnerabilidade a
que estavam já expostas as instituições que os gerem e os seus utentes e
funcionários. Aliás, algo parecido o fizera o ensino à distância em relação ao
sistema educativo e à escola.
Depois, o outono chegou com a marca da
instabilidade climática e multiplicou-se a capacidade de testagem, pelo que os números
necessariamente subiram a nível de infetados, nomeadamente assintomáticos, de recuperados
e de mortos. E temo que haja demasiada atribuição de mortes à covid-19, em vez
de o ser a outras doenças.
Neste contexto, surge a síndrome coletiva do
cansaço da pandemia, os casos de doença mental e as demais doenças somáticas
que não covid-19. E o que nos oferecem para estas? Apoio psicológico, consultas
para controlo de diabetes e tensão arterial por telefone e reclusão no
domicílio. É melhor que nada, mas é pouco. O SNS tem dificuldade em dar resposta
à covid-19 e às ouras doenças cujo tratamento deveria ser considerado como inadiável.
E a requisição dos serviços de saúde do setor social e do setor privado avança
a passo de caracol.
E o Governo não encontra uma saída plausível a
não ser a declaração do estado de calamidade pública, agora reforçada pela declaração
do estado de emergência dito de caráter preventivo e de âmbito limitado, mas que,
tendo começado por 121 concelhos, se estendeu já a 191, embora tenha deixado
cair 7 concelhos. Na verdade, a limitrofação de concelhos em que o surto não é tão
gravoso com os mais afetados cria potencial situação de alastramento do vírus,
de pouco servindo a proibição de circulação entre municípios, já que as exceções
têm de ser mais que muitas, se não se quer parar a economia e a sociedade.
Nesta situação, dá-se a ideia de que a culpa é
dos cidadãos. Obviamente que nem os cidadãos tiveram o comportamento exemplar
de que se falava há tempos, nem são tão desleixados como parece fazer-se crer. Diz-se
que a maior parte dos casos de infeção surge em ambientes familiares, em festas
e convívios – que não estão generalizados. E esquece-se que as escolas cuidaram
das regras no espaço escolar, mas não o puderam fazer de forma totalmente
eficaz e não se cuidou dos ajuntamentos à porta da escola. O mesmo se diga dos
ambientes de trabalho ou de trabalhos impossíveis de realizar de máscara ou com
o devido distanciamento físico, como não são evitáveis contactos os com doentes,
crianças e idosos. E esqueceu-se a índole caprichosa do vírus. É óbvio que a
culpa da pandemia é das pessoas, mas é grave atribuí-la a esta ou àquela
pessoa, a este ou àquele grupo, a menos que seja identificado de forma
inequívoca o descuidado ou o prevaricador. Toda a generalização é grosseira e
injusta e pode levar a contradições. Por exemplo, diz-se que os surtos surgem
na sua maioria em ambientes familiares, mas o recolher obrigatório manda-nos
para casa, para o sítio propício ao vírus!
A grande razão é que o Estado não tem grandes meios
de atacar o problema de outro modo. Mas então que o diga claramente e não nos
atire com as nossas próprias culpas, mas responsabilize seriamente os comprovadamente
descuidados e prevaricadores.
Coisa parecida se pode dizer dos cataclismos. É óbvio
que muitos deles acontecem por culpa dos homens, que exploram caprichosa e
desmedidamente até ao esgotamento, movidos pelo espírito negocial e pela sede
do lucro a todo o custo, os recursos naturais, que são benéficos para o
equilíbrio ecológico e que devem estar ao serviço de todos. Porém, em vez de se
travarem os degradadores do ambiente e da natureza, penalizam-se em demasia os comportamentos
de cada pessoa singular. É certo que todos temos a obrigação de zelar pela saúde
ecológica, mas não nos podem ser imputadas a nós, os pequenos, as principais monstruosidades
que se cometem contra a natureza e contra o clima. Assim, é de promover a
cultura da ecologia integral e a ecoeconomia a ver se os pobres – pessoas, grupos
e países – passam a ser cada vez menos pobres, mas temos de exigir aos
decisores políticos e económicos que travem o impulso destruidor do planeta e
que criem as condições para que todos possamos zelar pela saúde da Casa Comum,
como temos de exigir aos investigadores e cientistas que estudem as leis da natureza
física e humana, de modo que se prevejam os cataclismos, os problemas bioquímicos,
as questões genéticas, psíquicas e sociais, para que nos possamos subtrair a
eles com maior facilidade. Com efeito, se é justo rejeitar que um cataclismo e
uma pandemia tenham como origem o castigo de Deus pelos pecados dos seres humanos,
também é de rejeitar que seja a natureza a castigar-nos pelo modo como a
tratamos. Duvido da probidade do aforismo como tal: “Deus perdoa sempre (é verdade), os homens às vezes, a natureza nunca”. Não se
pode substituir o látego divino por um pretenso látego da natureza. Seria mera transferência
de punidor.
Porém, não podemos deixar de pensar que um
cataclismo, malformação e epidemia possam criar o ensejo de pensarmos nos
nossos erros e mudarmos as nossas atitudes e comportamentos.
E nunca podemos andar à cata de um ou mais bodes expiatórios.
A este respeito, é de recordar a exortação do secretário-geral da ONU, a 8
de maio, aos líderes políticos a expressarem solidariedade com todas as pessoas
e às instituições de educação e ensino a concentrarem-se na “alfabetização
digital”, num momento em que “os extremistas procuram garantir audiências
prisioneiras e potencialmente desesperadas”.
Na verdade, segundo António Guterres, “o sentimento contra estrangeiros aumentou online e nas
ruas, as teorias de conspiração antissemitas espalharam-se e ocorreram ataques
contra muçulmanos relacionados com a covid-19”, assim como muitos migrantes e
refugiados “foram difamados como fonte do vírus e, depois, negaram-lhes acesso
a tratamento médico”.
Efetivamente
a onda de sentimentos “antiestrangeiros” exprimia-se em teorias antissemitas e
perseguições anti-islâmicas quando as autoridades chinesas já admitiam “estar
abertas a colaborar com a Organização Mundial de Saúde” (OMS) na investigação sobre a origem do coronavírus, a par
da insistência da administração Trump de atribuir o vírus a uma fabricação de
laboratório de Wuhan, a cidade chinesa que foi o epicentro da epidemia. E indesejável
consequência foi o facto de os migrantes e refugiados estarem a ser
responsabilizados pela transmissão do vírus vendo muitas vezes ser-lhes negado
o direito a receber tratamento.
Também o secretário-geral
observou que, “com os idosos entre os mais vulneráveis, surgiram memes
desprezíveis, sugerindo que eles também são os mais descartáveis”, e que “jornalistas,
denunciantes, profissionais de saúde, trabalhadores humanitários e defensores
dos direitos humanos estão a ser alvejados simplesmente por fazerem o seu
trabalho”.
Por isso, o
português que lidera a ONU apelou a “um esforço total para acabar globalmente
com o discurso de ódio” e desafiou os media, sobretudo aqueles que
têm presença nas redes sociais, a “remover o conteúdo racista, misógino e outro
que seja prejudicial”, e a sociedade civil a fortalecer o contacto com as
pessoas vulneráveis, bem como os líderes religiosos a servirem como “modelos de
respeito mútuo”. E, salientando que a doença “não se importa com quem somos,
onde vivemos, no que acreditamos ou sobre qualquer outra distinção”, pediu a “todos,
em todos os lugares, que se levantem contra o ódio, que se tratem com dignidade
e aproveitem todas as oportunidades para espalhar bondade”.
Já em fevereiro,
Guterres fizera um apelo à ação de países, empresas e pessoas a que ajudassem a
renovar e reviver os direitos humanos em todo o mundo, estabelecendo um plano
de sete pontos relacionado com as mudanças climáticas, conflitos e repressão. A
23 de Abril, apelidou a pandemia de “crise humana que está rapidamente a
tornar-se numa crise de direitos humanos” e que teve “efeitos desproporcionais
em certas comunidades, levou ao aumento do discurso de ódio, da segmentação de
grupos vulneráveis e dos riscos de opções securitárias que minam a resposta à
saúde”. E alertou para a possibilidade de, com o “crescente etno-nacionalismo,
populismo, autoritarismo e retrocesso nos direitos humanos em alguns países”, a
crise “fornecer um pretexto para a adoção de medidas repressivas para
propósitos não relacionados com a pandemia”.
Por fim,
devo dizer que não se pode dizer que as empresas, os trabalhadores e os
serviços não sofreram muito com a pandemia, como não se pode ignorar que,
enquanto muitos viram nela a ocasião para reconverterem a sua atividade empresarial
e/ou profissional, outros abusaram da oportunidade e locupletaram-se desmesuradamente
com o negócio que o surto a escala mundial ocasionou.
Todavia,
a generalização dos erros e abusos é perigosa e injusta. Por isso, nem todos inocentes
imunes a toda a prova, nem todos maus em toda a linha!
2020.11.13 –
Louro de Carvalho
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