Pela Carta
Apostólica “Authenticum Charismatis” em
forma de “Motu Proprio”, datada 1 de
novembro, Solenidade de Todos os Santos, divulgada pela Sala de Imprensa da
Sant Sé no dia 4, para entrar em vigor no dia 10, depois de publicada no L'Osservatore
Romano, e a publicar no comentário
oficial dos Acta Apostolicae Sedis, o Papa Francisco determina uma nova redação do cânone 579 do
Código de Direito Canónico.
Assim,
em vez do texto atual do referido cânone – “Episcopi
dioecesani, in suo quisque territorio, instituta vitae consecratae formali
decreto valide erigere possunt dummodo Sedes Apostolica consulta fuerit” (Os
Bispos diocesanos, cada qual no seu território, podem erigir, por decreto
formal, institutos de vida consagrada, contanto que tenha sido consultada a Sé
Apostólica) –,
vigorará o texto do seguinte teor: “Episcopi
dioecesani, in suo quisque territorio, instituta vitae consecratae formali
decreto valide erigere possunt, praevia licentia Sedis Apostolicae scripto data” (Os
Bispos diocesanos, cada qual no seu território, podem erigir, por decreto
formal, institutos de vida consagrada, mediante prévia autorização da Sé Apostólica dada por escrito).
Isto quer
dizer que, se dantes o Bispo podia erigir um instituto de vida consagrada na
sua diocese, após consulta à Sé Apostólica, cujo parecer não era vinculativo,
doravante, para a ereção dum instituto de vida consagrada na sua diocese, doravante
o Bispo só o pode fazer mediante um parecer positivo da Santa Sé. Não se trata,
pois duma consulta ou dum simples parecer, mas duma autorização formal dada por
escrito. Ou seja, se dantes o Bispo poderia contrariar o parecer de Roma, agora,
se o parecer for negativo, isto é, se a autorização não vier ou o parecer for
negativo, o Bispo não pode criar o instituto pretendido.
Nada disto
contraria o teor dos demais cânones (573-606),
atinentes às “normas comuns a todos os institutos
de vida consagrada”, por exemplo, mantendo-se a diferença entre institutos
de vida consagrada de direito pontifício, os eretos pela Sé Apostólica ou
aprovados por decreto formal da mesma, e os institutos de vida consagrada de
direito diocesano, os que tendo sido eretos pelo Bispo diocesano, não obtiveram
da Sé Apostólica o decreto de aprovação (can. 589).
Mais do
que invocar argumentos de ordem prática, como o da eventual proliferação de
institutos com ligeiras alterações a nível da expressão do carisma, o Pontífice
(embora
também o faça) prefere
a linha do enquadramento doutrinal na esteira do teor do capítulo VI da Constituição
Dogmática “Lumen Gentium”, sobre a
Igreja, do decreto conciliar “Perfectae
Caritatis”, sobre a conveniente renovação da vida religiosa, da exortação apostólica
“Vita Consecrata” (de
São João Paulo II, de 25 de março de 1996),
sobre a vida consagrada e a sua missão na Igreja e no Mundo, bem como a exortação
apostólica “Evangelii Gaudium”, de
Francisco
(24 de novembro de 2013),
sobre o anúncio do Evangelho no Mundo atual, e a Carta Apostólica “às Pessoas Consagradas” (21
de novembro de 2014),
de Francisco, para a Proclamação do Ano da Vida Consagrada.
Assim, o
Papa começa por acentuar que “um sinal claro da autenticidade de um carisma é a
sua eclesialidade”, isto é, “a sua capacidade para se integrar harmonicamente na
vida do santo Povo fiel de Deus para bem de todos” (vd
Exortação Apostólica Evangelii Gaudium,
130), sendo que “os fiéis
têm direito a ser advertidos pelos Pastores sobre a autenticidade dos carismas
e a fiabilidade dos que se apresentam como fundadores”, visto que é responsabilidade
eclesial dos Pastores das Igrejas particulares o discernimento sobre a eclesialidade
e a fiabilidade dos carismas. Com efeito, é bom lembrar que o carisma é uma
graça divina ou um dom de Deus concedido a um membro da Igreja, não para em
proveito próprio, mas em benefício de toda a comunidade. Os carismas são, pois manifestações do Espírito Santo para o consolidação,
fortalecimento, crescimento, correção, solidariedade, e expansão da comunidade,
da Igreja, que é o “Sacramento Universal da Salvação”.
Ora,
segundo a “Authenticum Charismatis”,
o discernimento dos carismas, nem sempre fácil de fazer, exprime-se na esmerada
atenção a todas as formas de vida consagrada e, em particular, na decisiva tarefa
de valorar a conveniência de erigir novos Institutos de Vida Consagrada e novas
Sociedades de Vida Apostólica. Na verdade, deve-se corresponder aos dons que o Espírito
Santo suscita na Igreja particular, acolhendo-os generosamente com ação de graças,
mas também há que evitar que “surjam imprudentemente institutos inúteis o não
dotados do suficiente vigor” (Conc. Ecum. Vat. II, Decreto Perfectae caritatis, 19).
Por outro
lado é da responsabilidade da Sé Apostólica, no âmbito da sua função de serviço
pastoral, por vezes eclipsado pela burocracia, acompanhar os Pastores no processo
de discernimento conducente ao reconhecimento eclesial de novo Instituto ou de
nova Sociedade de direito diocesano. Nestes termos, já a exortação apostólica “Vita Consecrata” sustenta que a vitalidade
dos novos Institutos e Sociedades “deve ser discernida pela autoridade da Igreja,
que deve realizar os necessários exames para provar a autenticidade da finalidade
que os inspirou e para evitar a excessiva multiplicação de instituições
análogas entre si, com o risco de nociva fragmentação em grupos demasiado pequenos
(vd
n.º 12). Por isso, os
novos Institutos de Vida Consagrada e as novas Sociedades de Vida Apostólica devem
ser reconhecidos oficialmente pela Sé Apostólica, a única a quem compete o juízo
definitivo. Não se trata dum reforço do, por vezes, irritante centralismo, mas
da cooperação eclesial em comunhão com vista ao reto discernimento dos carismas
que o Espírito concede à Igreja.
Porém, o ato
da ereção canónica pelo bispo transcende o âmbito diocesano e torna-o relevante
para o mais vasto horizonte da Igreja universal. Com efeito, por sua natureza, todo o Instituto
de Vida Consagrada ou Sociedade de Vida Apostólica, ainda que tenha surgido no
contexto de uma Igreja particular, “como dom à Igreja, não é uma realidade isolada
ou marginal, mas pertence intimamente a ela, está no coração da Igreja como
elemento decisivo da sua missão” (Carta aos Consagrados,
III, 5).
Sendo natural
que o dom surja e se reconheça localmente, por sua natureza, abrangência e
finalidade, ele extravasa todas as fronteiras e tem incidência católica ou universal.
Nada há que possa aprisionar o dom de Deus. Contudo, é preciso reconhecê-lo,
aceitá-lo, rezá-lo e cultivá-lo.
Este é, pois, o horizonte em que se coloca a decisão de
Francisco de alterar o cânone 579 do Código de Direito Canónico, para garantir a
dimensão global e holística às iniciativas das Igrejas locais onde pode e deve
pulular a criatividade que a liberdade do Espírito concite e estimule na abundância
e diversidade dos seus dons.
2020.11.05
– Louro de Carvalho
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