sábado, 21 de novembro de 2020

É preciso combater o racismo e o cyberbullying

 

O Conselho Nacional de Educação (CNE), entendeu por iniciativa da sua Presidente em outubro de 2019, ter chegado o momento de produzir uma reflexão sobre a cidadania e a educação antirracista. E os acontecimentos recentes mostram que foi uma decisão avisada pois, como afirmou Francisco Bethencourt, num texto de opinião no jornal Público a 16 de junho, em Portugal “temos claramente um problema educativo”. Com efeito, o racismo persiste e manifesta-se de formas subtis ou implícitas – um “racismo que se esconde em justificações e legitimações socialmente aceitáveis”, continuando a marcar o comportamento social e as instituições. E também, como têm revelado estudos que envolvem crianças e jovens de grupos racializados, se manifesta através dum racismo quotidiano, explícito e sistemático, inclusive em contextos educacionais.

Por outro lado, refere o CNE que a diversidade étnico-cultural e as estratégias para combater o racismo ainda têm um “tímido papel” na promoção da igualdade nas escolas.

Sendo o tema pertinente e havendo muito a fazer, o CNE produziu, pela pena das conselheiras-relatoras Isabel Menezes, Joana Brocardo e Luisa Malhó, a recomendação “Cidadania e Educação Antirracista”, aprovada a 6 de novembro na 143.ª sessão plenária e divulgada no dia 9 no site do CNE e no dia 19 no “educare.pt”.

Para o CNE, tendo a educação um papel fundamental para a construção de sociedades pacíficas e sustentáveis, os problemas do racismo e da educação antirracista devem ser vistos no contexto da educação para a cidadania, já que envolvem ameaças à qualidade da vida democrática em valores fundamentais como a liberdade, o pluralismo, a igualdade. Porém, as questões da cidadania, sobretudo as atinentes à diversidade étnico-cultural e ao antirracismo, “ainda têm um tímido papel na ampla estratégia de promoção da igualdade na escola”. Foi o que inferiram as conselheiras-relatoras auscultando direções de escolas, educadores e professores, associações com intervenção nestas temáticas e lendo documentos e contributos nacionais e internacionais, pelo que apresentaram várias propostas para uma educação antirracista.

Tais propostas passam pelo reforço de políticas públicas de combate à exclusão e à pobreza, pela condenação, de forma explícita e sistemática, da discriminação e do racismo e pela recolha de dados sobre a etnia dos alunos, com vista a uma efetiva monitorização do impacto de variáveis associadas. No último caso e como se trata de dados sensíveis, o levantamento deve basear-se na autodeclaração, de acesso reservado, e seguir as orientações da Comissão Nacional de Proteção de Dados.

Por outro lado, sugere-se a adoção dum programa nacional de educação antirracista e para os direitos humanos que envolva atividades curriculares, extracurriculares e de educação não formal. E é importante que exista um clima democrático nas escolas e um esforço sistemático “na concretização quotidiana dos valores de liberdade, pluralismo e igualdade, o que implica políticas de tolerância zero face a manifestações de racismo e xenofobia, combatendo-se os preconceitos, a desinformação e o discurso de ódio”.

Considerada fundamental a autonomia de escola para a contratação de equipas educativas que melhor concretizem os projetos de efetiva educação antirracista, o documento indica:

Só se podem desenvolver projetos consistentes, que visem um real impacto a médio e longo prazo ao nível da educação antirracista, com equipas estáveis, que não se alteram por imposições contratuais de ordem diversa, de modo a assegurar a viabilidade dos projetos já iniciados, garantindo a continuidade de quem neles quer trabalhar”.

Além disso, é de proceder à contratação de profissionais especializados para apoio às estratégias de inclusão e educação antirracista. Ademais, indica a recomendação, os currículos devem evitar uma visão etnocêntrica dos fenómenos, o que implica aposta forte na formação dos professores e atenção, maxime nos manuais escolares, “às formas de representação de pessoas não brancas, às referências à escravatura e ao comércio de pessoas escravizadas, ao destaque de figuras históricas (…) de diferentes etnias/raças, às narrativas que reconheçam a diversidade da população portuguesa, incluindo referências à história das comunidades ciganas”.

No sentido de a expansão portuguesa e o colonialismo serem discutidos nas escolas para permitir pensamentos autónomos e críticos dos alunos, o CNE observa:

Esta discussão deve reconhecer e integrar pontos de vista complexos e diversos, contextualizados temporalmente, que visibilizem diferentes histórias e atores, incluindo o sofrimento e a resistência e as sistemáticas violações de direitos humanos nos territórios ocupados”.

E, como “o momento que se vive a nível mundial exige uma priorização da educação antirracista que assente numa formação de qualidade de todos os que trabalham com crianças e jovens na escola”, o CNE propõe um programa nacional de formação contínua de educadores, professores e funcionários não docentes para a inclusão e a educação antirracista e a sua valorização para efeitos de progressão nas respetivas carreiras.

Paralelamente, o CNE pensa que a comunidade, as redes, as parcerias, a articulação entre diversos intervenientes e atores constroem relações de confiança. Por isso, aconselha que as intervenções perante situações discriminatórias sejam reforçadas de modo a permitirem a denúncia de forma segura, bem como a redução dos riscos de encaminhamento de crianças e jovens para dispositivos que limitam o acesso à progressão escolar.

Assim, o CNE quer “garantir que as crianças e jovens de todas as origens tenham acesso igual à educação e sejam totalmente integradas no sistema escolar, não existindo segregação de crianças pertencentes a minorias nas escolas, impedindo-as de serem colocadas em turmas separadas e ajudando as crianças pertencentes a minorias a aprender o idioma de ensino”. Por outro lado, “os processos de encaminhamento e orientação de crianças e jovens devem reconhecer os riscos de seleção social e combater eventuais desigualdades no acesso aos diferentes cursos no Ensino Básico, Secundário e Superior”.

E, na linha de favorecimento de estratégias para melhorar o acolhimento de alunos estrangeiros, migrantes, refugiados, a constar nas orientações dos estabelecimentos de ensino, as escolas devem fomentar procedimentos específicos, nomeadamente nos regulamentos internos, para uma interação positiva e combater situações de discriminação étnico-racial.

Tendo em conta vários estudos e a realidade que denunciam um racismo quotidiano, explícito e sistemático, inclusive em contextos educacionais, o CNE recorda o relatório da Comissão Europeia Contra o Racismo e a Intolerância de 2018, relativo a Portugal, que reconhece importantes avanços no reconhecimento de direitos e no combate à discriminação, mas que, ao mesmo tempo, destaca “a intensidade de desigualdades e discriminação educacionais com ampla tradução em fenómenos de abandono, insucesso e dificuldades na progressão escolar de crianças e jovens afrodescendentes e de origem cigana, mas também a manutenção de uma visão heroica e unilateral de acontecimentos históricos relacionados com a expansão marítima, a colonização e a escravatura”. Na verdade, há fatores a montante da escola que ajudam a enquadrar a discriminação e o racismo, nomeadamente as dinâmicas segregativas e de exclusão socioterritorial, bem como as políticas de habitação e planeamento urbano para diferentes grupos sociais. E há ainda a gestão da diversidade social e uma “visão relativamente unilateral e acrítica dos manuais escolares, em particular no que remete para as narrativas em torno da história nacional, da escravatura e do colonialismo”.

Ora, sendo cada vez mais multicultural a sociedade portuguesa, o CNE entende ser necessário atentar neste facto e no papel da escola enquanto fator de promoção social, que valoriza a diversidade e está aberta a um mundo global e plural. Na sua ótica, já explicitada num parecer, “as desigualdades e exclusões são evitadas ou atenuadas quando é contrariada a função de reprodução social e cultural da escola e se promove o acesso e sucesso emancipatório de todas e todos ao conhecimento e à aprendizagem”. Por isso, tem de se cuidar dos materiais didáticos e da formação e supervisão de professores para a promoção dos direitos humanos, de forma a evitar a reprodução de estereótipos e promover a equidade e a não discriminação, pois, como sustenta o CNE, “a Educação é cada vez mais uma ferramenta de defesa contra o aumento da violência, racismo, extremismo, xenofobia, discriminação e intolerância”.

Não é verdade que o “Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória” deixa bem claro que a escola deve habilitar “os jovens com saberes e valores para a construção de uma sociedade mais justa, centrada na pessoa, na dignidade humana e na ação sobre o mundo enquanto bem comum a preservar”? E não é verdade que a “Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania”, que se assume como transversal em todos os ciclos de educação e ensino e integra, a nível dos segundo e terceiro ciclos, a disciplina de “Cidadania e Desenvolvimento”, sustenta que a educação para uma conduta cívica tem necessariamente de assentar na igualdade das “relações interpessoais, na integração da diferença, no respeito pelos Direitos Humanos e na valorização de conceitos e valores de cidadania democrática”?

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Paralelamente e com o mesmo empenho, tem a escola de combater o ódio e a violência, quer no espaço físico escolar e sua envolvente, quer na comunicação online.

Ao nível do espaço escolar e sua envolvente, há que mobilizar a autoridade escolar, as famílias e as forças da ordem, designadamente através do programa “Escola Segura”.

Ao nível da comunicação online, em que o discurso do ódio e o cyberbullying são cada vez mais frequentes e duros, é preciso descobrir e mobilizar todos os meios possíveis, bem como contribuir, pela via da educação, da dissuasão e da punição, para a criação e robustecimento da cultura da tolerância, do respeito e da sã convivência.   

Neste sentido, porque a tolerância e o respeito pela diferença precisam de alicerces firmes, prevenir eficazmente o ódio e a violência online é o motor que faz girar a parceria estabelecida entre o Cyberbullying.pt e a Respect Zone, organização não governamental francesa que luta contra a ciberviolência – duas estruturas que decidiram trabalhar em conjunto por ocasião da 2.ª edição da Global StopCyberbullying Telesummit, realizada virtualmente a partir de Portugal.

Diga-se, antes de mais, que o Cyberbullying.pt é uma iniciativa portuguesa que surgiu para sensibilizar e combater o cyberbullying e dispõe de um livro que se assume como um guia sobre como identificar, prevenir, intervir e combater o cyberbullying, destinado a ajudar pais e encarregados de educação, professores e educadores e outros profissionais que lidem com crianças e jovens ou os tenham a seu cargo. Dele fala Daniel Sampaio, Professor Catedrático de Psiquiatria e Saúde Mental, da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, apontando:  

Contém muita informação pertinente sobre o tema, fornece inúmeras ideias para reflexão e dá pistas concretas para a ação, sem nunca cair em paternalismos ou em considerações passadistas. Temos o dever de divulgar esta obra junto de jovens, pais e educadores, de modo que todos possam ter uma atitude ativa face a este problema dos nossos dias.”.

O Cyberbullying.pt, fundado em 2016, é composto por uma página, um site, um livro para pais e educadores – com presença assídua nas redes sociais com os objetivos de informar, sensibilizar e educar para prevenir, intervir, identificar e combater o cyberbullying.

Por seu turno, a Respect Zone (RZ) é uma organização não governamental criada, em 2014, pelos irmãos  Nathan e Adrien Coen e por Philippe Coen, seu pai, e especializada na luta contra a ciberviolência, o assédio moral e as discriminações (homófobas, racistas, sexistas ou antissemitas).

Esta parceria internacional prevê a criação duma rede de apoio jurídico em Portugal que, em breve, ajudará vítimas a defenderem o seu direito à integridade e dignidade digital, bem como o acesso às ferramentas criadas pela Respect Zone. Assim, como primeiro passo para melhorar o clima digital, os cidadãos e as organizações podem adotar a “Carta Para o Respeito Digital” e sinalizar a adesão, exibindo o logo da Respect Zone nos seus perfis e páginas em redes sociais.

Além disso, a junção de vontades em torno de objetivos comuns neste âmbito, inclui um kit para a educação e comunicação disponível para a comunidade educativa e um curso online de formação em moderação de conteúdos desenvolvido no quadro do projeto Scan – iniciativa financiada pela União Europeia –, bem como ferramentas de formação específicas para os ensinos Básico, Secundário e Superior.

A este propósito, Tito de Morais, representante do Cyberbullying.pt, adiantou ao “educare.pt”:

Respect Zone tem uma larga experiência na comunicação não violenta de prevenção do assédio, discriminação, incitamento à violência online e em espaços públicos. Esta parceria terá impacto não apenas na comunidade estudantil, mas em toda a comunidade escolar, municípios e empresas, pois estas são as frentes que têm sido trabalhadas pela Respect Zone.”.

Por isso, deve começar o mais cedo possível – e não há motivo para que não comece já – o combate ao discurso de ódio e ao cyberbullying. E “tem de começar em idades precoces porque os valores para que somos educados, tais como a tolerância e o respeito pela diferença, precisam de alicerces firmes que se começam a construir desde tenra idade”. E, como salienta Morais, “só assim conseguiremos construir uma sociedade que se caraterize pela igualdade de oportunidades para todos, independentemente da sua ascendência, sexo, orientação sexual, identidade de género, raça, língua, origem étnica ou nacional, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou deficiência física ou psíquica”.

Ademais, no quadro desta parceria, o Cyberbullying.pt aprofunda o compromisso internacional de longo prazo na luta contra a ciberviolência; e a Respect Zone assegura uma presença ativa em cinco países: França, Bélgica, Suíça, Estados Unidos e Portugal.

A este respeito, Philippe Coen, da Respect Zone, num comunicado enviado aos media, enfatiza:

Numa época em que a sociedade civil europeia enfrenta um aumento da exposição à ciberviolência, em resultado dos confinamentos impostos para combater a pandemia de covid-19, esta parceria permitirá oferecermos as respostas e as ferramentas necessárias para lhes fazer frente. (…) Esta parceria é também o princípio de uma frente comum associativa para defender os interesses das vítimas de ciberviolência nas instituições europeias, onde se está a discutir o Digital Services Act.”.

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Enfim, tudo o que ofenda a vida, a integridade e a dignidade humana tem de ser combatido a nível da educação, a nível da criação do caldo de cultura de respeito, tolerância e sã convivência e a nível da mobilização dos meios de dissuasão e penalização de que a sociedade dispõe, já que importa criar e recriar o  novo ser humano.

2020.11.21 – Louro de Carvalho

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