O Conselho Nacional de Educação (CNE), entendeu por iniciativa da sua
Presidente em outubro de 2019, ter chegado o momento de produzir uma reflexão
sobre a cidadania e a educação antirracista. E os acontecimentos recentes
mostram que foi uma decisão avisada pois, como afirmou Francisco Bethencourt,
num texto de opinião no jornal Público
a 16 de junho, em Portugal “temos claramente um problema educativo”. Com
efeito, o racismo persiste e manifesta-se de formas subtis ou implícitas – um
“racismo que se esconde em justificações e legitimações socialmente
aceitáveis”, continuando a marcar o comportamento social e as instituições. E
também, como têm revelado estudos que envolvem crianças e jovens de grupos
racializados, se manifesta através dum racismo quotidiano, explícito e
sistemático, inclusive em contextos educacionais.
Por outro lado, refere o CNE que a diversidade étnico-cultural e as estratégias para
combater o racismo ainda têm um “tímido papel” na promoção da igualdade nas
escolas.
Sendo o tema pertinente e havendo muito a fazer, o CNE
produziu, pela pena das conselheiras-relatoras
Isabel Menezes, Joana Brocardo e Luisa Malhó, a recomendação “Cidadania e Educação Antirracista”,
aprovada a 6 de novembro na 143.ª sessão plenária e divulgada no dia 9 no site
do CNE e no dia 19 no “educare.pt”.
Para o CNE, tendo a educação um papel fundamental para
a construção de sociedades pacíficas e sustentáveis, os problemas do racismo e da
educação antirracista devem ser vistos no contexto da educação para a
cidadania, já que envolvem ameaças à qualidade da vida democrática em valores
fundamentais como a liberdade, o pluralismo, a igualdade. Porém, as questões da
cidadania, sobretudo as atinentes à diversidade étnico-cultural e ao
antirracismo, “ainda têm um tímido papel na ampla estratégia de promoção da
igualdade na escola”. Foi o que inferiram as conselheiras-relatoras auscultando
direções de escolas, educadores e professores, associações com intervenção
nestas temáticas e lendo documentos e contributos nacionais e internacionais,
pelo que apresentaram várias propostas para uma educação antirracista.
Tais propostas passam pelo reforço de políticas
públicas de combate à exclusão e à pobreza, pela condenação, de forma explícita
e sistemática, da discriminação e do racismo e pela recolha de dados sobre a
etnia dos alunos, com vista a uma efetiva monitorização do impacto de variáveis
associadas. No último caso e como se trata de dados sensíveis, o levantamento
deve basear-se na autodeclaração, de acesso reservado, e seguir as orientações
da Comissão Nacional de Proteção de Dados.
Por outro lado, sugere-se a adoção dum programa
nacional de educação antirracista e para os direitos humanos que envolva
atividades curriculares, extracurriculares e de educação não formal. E é
importante que exista um clima democrático nas escolas e um esforço sistemático
“na concretização quotidiana dos valores
de liberdade, pluralismo e igualdade, o que implica políticas de tolerância
zero face a manifestações de racismo e xenofobia, combatendo-se os preconceitos,
a desinformação e o discurso de ódio”.
Considerada fundamental a autonomia de escola para a
contratação de equipas educativas que melhor concretizem os projetos de efetiva
educação antirracista, o documento indica:
“Só se podem desenvolver projetos
consistentes, que visem um real impacto a médio e longo prazo ao nível da
educação antirracista, com equipas estáveis, que não se alteram por imposições
contratuais de ordem diversa, de modo a assegurar a viabilidade dos projetos já
iniciados, garantindo a continuidade de quem neles quer trabalhar”.
Além disso, é de proceder à contratação de
profissionais especializados para apoio às estratégias de inclusão e educação
antirracista. Ademais, indica a recomendação, os currículos devem evitar uma
visão etnocêntrica dos fenómenos, o que implica aposta forte na formação dos
professores e atenção, maxime nos
manuais escolares, “às formas de representação de pessoas não brancas, às
referências à escravatura e ao comércio de pessoas escravizadas, ao destaque de
figuras históricas (…) de diferentes etnias/raças, às narrativas que reconheçam
a diversidade da população portuguesa, incluindo referências à história das
comunidades ciganas”.
No sentido de a expansão portuguesa e o colonialismo
serem discutidos nas escolas para permitir pensamentos autónomos e críticos dos
alunos, o CNE observa:
“Esta discussão deve reconhecer e integrar
pontos de vista complexos e diversos, contextualizados temporalmente, que
visibilizem diferentes histórias e atores, incluindo o sofrimento e a
resistência e as sistemáticas violações de direitos humanos nos territórios
ocupados”.
E, como “o momento que se vive a nível mundial exige
uma priorização da educação antirracista que assente numa formação de qualidade
de todos os que trabalham com crianças e jovens na escola”, o CNE propõe um
programa nacional de formação contínua de educadores, professores e
funcionários não docentes para a inclusão e a educação antirracista e a sua
valorização para efeitos de progressão nas respetivas carreiras.
Paralelamente, o CNE pensa que a comunidade, as redes,
as parcerias, a articulação entre diversos intervenientes e atores constroem
relações de confiança. Por isso, aconselha que as intervenções perante
situações discriminatórias sejam reforçadas de modo a permitirem a denúncia de
forma segura, bem como a redução dos riscos de encaminhamento de crianças e jovens
para dispositivos que limitam o acesso à progressão escolar.
Assim, o CNE quer “garantir que as crianças e jovens
de todas as origens tenham acesso igual à educação e sejam totalmente
integradas no sistema escolar, não existindo segregação de crianças
pertencentes a minorias nas escolas, impedindo-as de serem colocadas em turmas
separadas e ajudando as crianças pertencentes a minorias a aprender o idioma de
ensino”. Por outro lado, “os processos de encaminhamento e orientação de
crianças e jovens devem reconhecer os riscos de seleção social e combater
eventuais desigualdades no acesso aos diferentes cursos no Ensino Básico,
Secundário e Superior”.
E, na linha de favorecimento de estratégias para
melhorar o acolhimento de alunos estrangeiros, migrantes, refugiados, a constar
nas orientações dos estabelecimentos de ensino, as escolas devem fomentar
procedimentos específicos, nomeadamente nos regulamentos internos, para uma
interação positiva e combater situações de discriminação étnico-racial.
Tendo em conta vários estudos e a realidade que denunciam um racismo
quotidiano, explícito e sistemático, inclusive em contextos educacionais, o CNE
recorda o relatório da Comissão Europeia Contra o Racismo e a Intolerância de
2018, relativo a Portugal, que reconhece importantes avanços no reconhecimento
de direitos e no combate à discriminação, mas que, ao mesmo tempo, destaca “a
intensidade de desigualdades e discriminação educacionais com ampla tradução em
fenómenos de abandono, insucesso e dificuldades na progressão escolar de
crianças e jovens afrodescendentes e de origem cigana, mas também a manutenção
de uma visão heroica e unilateral de acontecimentos históricos relacionados com
a expansão marítima, a colonização e a escravatura”. Na verdade, há fatores a
montante da escola que ajudam a enquadrar a discriminação e o racismo,
nomeadamente as dinâmicas segregativas e de exclusão socioterritorial, bem como
as políticas de habitação e planeamento urbano para diferentes grupos sociais.
E há ainda a gestão da diversidade social e uma “visão relativamente unilateral
e acrítica dos manuais escolares, em particular no que remete para as
narrativas em torno da história nacional, da escravatura e do colonialismo”.
Ora, sendo cada vez mais multicultural a sociedade
portuguesa, o CNE entende ser necessário atentar neste facto e no papel da
escola enquanto fator de promoção social, que valoriza a diversidade e está
aberta a um mundo global e plural. Na sua ótica, já explicitada num parecer, “as desigualdades e exclusões são evitadas ou
atenuadas quando é contrariada a função de reprodução social e cultural da
escola e se promove o acesso e sucesso emancipatório de todas e todos ao
conhecimento e à aprendizagem”. Por isso, tem de se cuidar dos materiais
didáticos e da formação e supervisão de professores para a promoção dos
direitos humanos, de forma a evitar a reprodução de estereótipos e promover a
equidade e a não discriminação, pois, como sustenta o CNE, “a Educação é cada vez mais uma ferramenta de
defesa contra o aumento da violência, racismo, extremismo, xenofobia,
discriminação e intolerância”.
Não é verdade que o “Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória” deixa bem
claro que a escola deve habilitar “os jovens com saberes e valores para a
construção de uma sociedade mais justa, centrada na pessoa, na dignidade humana
e na ação sobre o mundo enquanto bem comum a preservar”? E não é verdade que a “Estratégia Nacional de Educação para a
Cidadania”, que se assume como transversal em todos os ciclos de educação e
ensino e integra, a nível dos segundo e terceiro ciclos, a disciplina de “Cidadania e Desenvolvimento”, sustenta
que a educação para uma conduta cívica tem necessariamente de assentar na
igualdade das “relações interpessoais, na integração da diferença, no respeito
pelos Direitos Humanos e na valorização de conceitos e valores de cidadania
democrática”?
***
Paralelamente
e com o mesmo empenho, tem a escola de combater o ódio e a violência, quer no
espaço físico escolar e sua envolvente, quer na comunicação online.
Ao nível
do espaço escolar e sua envolvente, há que mobilizar a autoridade escolar, as
famílias e as forças da ordem, designadamente através do programa “Escola Segura”.
Ao nível
da comunicação online, em que o discurso do ódio e o cyberbullying são cada vez mais frequentes e duros, é preciso descobrir
e mobilizar todos os meios possíveis, bem como contribuir, pela via da
educação, da dissuasão e da punição, para a criação e robustecimento da cultura
da tolerância, do respeito e da sã convivência.
Neste
sentido, porque a tolerância e o respeito
pela diferença precisam de alicerces firmes, prevenir eficazmente o ódio e a
violência online é o motor que faz girar a parceria estabelecida entre o
Cyberbullying.pt e a Respect Zone,
organização não governamental francesa que luta contra a ciberviolência – duas
estruturas que decidiram trabalhar em conjunto por ocasião da 2.ª edição
da Global StopCyberbullying Telesummit, realizada virtualmente
a partir de Portugal.
Diga-se, antes de mais, que o Cyberbullying.pt é uma iniciativa
portuguesa que surgiu para sensibilizar e combater o cyberbullying e dispõe de um livro que se assume como
um guia sobre como identificar, prevenir, intervir e
combater o cyberbullying, destinado a ajudar pais e encarregados de
educação, professores e educadores e outros profissionais que lidem com
crianças e jovens ou os tenham a seu cargo. Dele fala Daniel Sampaio, Professor
Catedrático de Psiquiatria e Saúde Mental, da Faculdade de Medicina da
Universidade de Lisboa, apontando:
“Contém
muita informação pertinente sobre o tema, fornece inúmeras ideias para reflexão
e dá pistas concretas para a ação, sem nunca cair em paternalismos ou em
considerações passadistas. Temos o dever de divulgar esta obra junto de jovens,
pais e educadores, de modo que todos possam ter uma atitude ativa face a este
problema dos nossos dias.”.
O Cyberbullying.pt, fundado em 2016, é composto por
uma página, um site, um livro para pais e educadores – com presença assídua nas
redes sociais com os objetivos de informar, sensibilizar e educar para
prevenir, intervir, identificar e combater o cyberbullying.
Por seu turno, a Respect Zone (RZ) é uma organização não governamental criada, em 2014,
pelos irmãos Nathan e Adrien Coen e por Philippe Coen, seu
pai, e especializada na luta contra a ciberviolência, o assédio moral e as discriminações
(homófobas, racistas, sexistas ou antissemitas).
Esta parceria internacional prevê a criação duma rede
de apoio jurídico em Portugal que, em breve, ajudará vítimas a defenderem o seu
direito à integridade e dignidade digital, bem como o acesso às ferramentas
criadas pela Respect Zone. Assim, como primeiro
passo para melhorar o clima digital, os cidadãos e as organizações podem adotar
a “Carta Para o Respeito Digital” e
sinalizar a adesão, exibindo o logo da Respect Zone nos
seus perfis e páginas em redes sociais.
Além disso, a junção de vontades em torno de objetivos
comuns neste âmbito, inclui um kit para a educação e comunicação disponível
para a comunidade educativa e um curso online de formação em moderação de conteúdos
desenvolvido no quadro do projeto Scan – iniciativa
financiada pela União Europeia –, bem como ferramentas de formação específicas
para os ensinos Básico, Secundário e Superior.
A este propósito, Tito de Morais, representante do
Cyberbullying.pt, adiantou ao “educare.pt”:
“A Respect Zone tem
uma larga experiência na comunicação não violenta de prevenção do assédio,
discriminação, incitamento à violência online e em espaços públicos. Esta
parceria terá impacto não apenas na comunidade estudantil, mas em toda a
comunidade escolar, municípios e empresas, pois estas são as frentes que têm
sido trabalhadas pela Respect Zone.”.
Por isso, deve começar o mais cedo possível – e não há
motivo para que não comece já – o combate ao discurso de ódio e ao cyberbullying. E “tem de começar em idades precoces
porque os valores para que somos educados, tais como a tolerância e o respeito
pela diferença, precisam de alicerces firmes que se começam a construir desde
tenra idade”. E, como salienta Morais, “só assim conseguiremos construir uma
sociedade que se caraterize pela igualdade de oportunidades para todos,
independentemente da sua ascendência, sexo, orientação sexual, identidade de
género, raça, língua, origem étnica ou nacional, religião, convicções políticas
ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou deficiência
física ou psíquica”.
Ademais, no quadro desta parceria, o Cyberbullying.pt
aprofunda o compromisso internacional de longo prazo na luta contra a
ciberviolência; e a Respect Zone assegura
uma presença ativa em cinco países: França, Bélgica, Suíça, Estados Unidos e
Portugal.
A este respeito, Philippe Coen, da Respect Zone, num comunicado enviado aos media, enfatiza:
“Numa época em que a sociedade civil
europeia enfrenta um aumento da exposição à ciberviolência, em resultado dos
confinamentos impostos para combater a pandemia de covid-19, esta parceria
permitirá oferecermos as respostas e as ferramentas necessárias para lhes fazer
frente. (…) Esta parceria é também o princípio de uma frente comum associativa
para defender os interesses das vítimas de ciberviolência nas instituições
europeias, onde se está a discutir o Digital Services Act.”.
***
Enfim, tudo o que ofenda a vida, a integridade e a dignidade
humana tem de ser combatido a nível da educação, a nível da criação do caldo de
cultura de respeito, tolerância e sã convivência e a nível da mobilização dos
meios de dissuasão e penalização de que a sociedade dispõe, já que importa
criar e recriar o novo ser humano.
2020.11.21 – Louro de Carvalho
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