domingo, 8 de novembro de 2020

Não podemos desperdiçar o ensejo de participar na festa do Reino

 

A perícopa evangélica assumida na liturgia do XXXII domingo do Tempo Comum no Ano A (Mt 25,1-13) integra-se no chamado discurso escatológico de Jesus – o seu quinto e último discurso – que ocupa os capítulos 24 e 25 do Evangelho de Mateus.

Para a sua composição o evangelista, que antes fora publicano, reelaborou o discurso escatológico de Marcos (cf Mc 13) e ampliou-o com três parábolas – a parábola do mordomo fiel (Mt 24,45-51), a parábola das dez virgens (Mt 25,1-13) e a parábola dos talentos (Mt 25,14-30) – e a pinturesca descrição do juízo final (Mt 25,31-46).

Porém, enquanto Marcos, no discurso escatológico, se refere predominantemente aos sinais que precederão a destruição do Templo de Jerusalém, Mateus aborda, sobretudo, o tema da segunda vinda de Jesus e a atitude com que os discípulos a devem preparar. Trata-se duma perspetiva diferente para responder às necessidades da comunidade a quem Mateus se dirige. Com efeito, nos finais do século I (década de 80), Já tinha passado o afã da iminência do tempo escatológico e os cristãos estavam a relaxar o fervor evangélico e o ardor testemunhal, pois já não aguardavam com a mesma paciência e esperança como próxima a última vinda do Senhor e, arrefecida a fé, a comunidade instalara-se na rotina e no comodismo. Era preciso redespertar os discípulos para o compromisso com o Evangelho. Um cristianismo descafeinado não interessa!

Neste ambiente, o evangelista vê no “discurso escatológico” de Jesus uma forte interpelação, que transforma em veemente exortação aos cristãos lembrando-lhes que a segunda vinda do Senhor está no horizonte final da história humana e que, enquanto ela não se realiza, os crentes são instados a viver com coerência e entusiasmo a fé na fidelidade ao ensinamento de Jesus e no compromisso com a construção do Reino. É a atitude da vigilância à espera do Senhor.

A parábola das “dez virgens que, tomando as suas candeias (tàs lâmpadas eautôn), saíram ao encontro do noivo” alude ao ritual típico do casamento judaico. Efetivamente, o cenário é o do casamento judaico tradicional. De acordo com o costume, a cerimónia do casamento começava com a ida do noivo a casa da noiva, depois do pôr do sol, para a levar para a sua nova casa.

Normalmente, o noivo chegava atrasado, pois devia, antes, discutir com os familiares da noiva os presentes que ofereceria à família da amada. As negociações entre as duas partes eram demoradas e tinham uma importante função social. Os parentes da noiva deviam mostrar-se exigentes, sugerindo dessa forma que a família perdia algo de muito precioso ao entregar a menina a outra família; por seu turno, o noivo e os seus familiares ficavam contentes com as exigências, pois dessa forma mostravam aos vizinhos e conhecidos o valor e a importância da mulher que entrava na família. As testemunhas do acordo estavam prontas para irem avisar a noiva de que as negociações estavam concluídas e o noivo ia chegar. Entretanto, a noiva, vestida a preceito, esperava na casa paterna que o noivo viesse ao seu encontro. E as amigas da noiva esperavam também, com as candeias acesas, para acompanhar a noiva, entre danças e cânticos, à sua nova casa, pois era aí que tinha lugar a festa nupcial.

O noivo, acompanhado pelos amigos em cortejo, à luz de tochas e ao som de cânticos, dirigia-se para a casa da noiva e, quando, ao som do pregão “Chegou o noivo: ide ao seu encontro(idoù ho nymphíos, exérkhesthe eis apántêsin autoû), o cortejo chegava à casa do pai da noiva, esta, com as amigas, deixava a casa de seu pai e formava-se a única comitiva luminosa e ruidosa, que se dirigia para a casa do noivo para a celebração do casamento e degustação do banquete nupcial.

É este pano de fundo que suporta a parábola. Não obstante, Dom António Couto, Bispo de Lamego (vd Jornal da Madeira, de 8 de novembro), adverte que a noiva nunca é referida no texto e que o noivo não segue o ritual previsto, pois se atrasa muito para lá da hora habitual. Também as amigas da noiva saltam fora da norma, pois estão divididas em dois grupos, iguais em número, mas não em qualidade: cinco prudentes (phrónimoi) e cinco insensatas (môraí).

E o prelado lamecense explicita como a arqueologia tem mostrado estas antigas cadeias ou tochas e o seu funcionamento: um suporte de madeira em cuja cavidade superior se introduziam trapos e estopa, que eram então embebidos em azeite e acesos só na hora de sair para o exterior. São, na verdade, luzes de exterior, que nada têm a ver com as lucernas de interior. Depois de embebidas em azeite, e acesas, o seu tempo de duração era de cerca de 15 minutos. Pelo que só deviam ser acesas imediatamente antes de sair (aqui diz-se que estavam acesas). E, como a viagem poderia demorar, devia transportar-se a almotolia para não haver o risco de a tocha se apagar.

Dado o inesperado atraso do cortejo do noivo, as amigas da noiva adormecem todas, não se notando, neste aspeto, diferença entre os dois grupos, até que, a meio da noite, inesperadamente, a vozearia do cortejo do noivo faz acordar, estremunhadas, todas as amigas da noiva, surgindo agora a grande diferença no comportamento dos dois grupos: as prudentes, juntamente com as suas candeias, necessárias para entrarem na luminosa comitiva noturna, levam o indispensável combustível, o azeite (élaion); mas insensatas, com as candeias a apagarem-se e sem o indispensável azeite, não puderam integrar a comitiva e, enquanto foram comprar o azeite, pôs-se em marcha o cortejo até à casa do noivo, iniciou-se o banquete e fechou-se a porta.  

Mais tarde, chegaram as jovens insensatas e disseram: “Senhor, Senhor, abre-nos a porta”: Kýrie, Kýrie, ánoixon hêmîn (Mt 25,11). Porém, a resposta, surge com mais estrondo que o fechar da porta: “Em verdade vos digo: não vos conheço”: Amèn légô humîn, ouk oîda humâs (Mt 25,12).

A parábola, tal como saiu da boca de Jesus, é uma “parábola do Reino” (v. 1: “o Reino dos céus pode comparar-se…”: homoiôthêsetai hê basileía tôn ouranôn…). O Reino dos Céus é, pois, comparado a uma das celebrações mais alegres e festivas que os israelitas conheciam: o banquete de casamento. As dez jovens representam a totalidade do Povo de Deus, que espera ansiosamente a chegada do Messias (o noivo). Uma parte (a das jovens previdentes) está preparada e, quando o Messias aparece, pode entrar a fazer parte da comunidade do Reino; outra parte (a das jovens descuidadas, loucas, embrutecidas) não está preparada e não pode entrar na comunidade do Reino.

Originariamente, a parábola constituía um apelo aos israelitas a não perderem a oportunidade de participar na grande festa do Reino. Alguns anos depois, Mateus retomou a parábola para a adaptar às necessidades da comunidade e converteu-a numa exortação a estarmos preparados para a vinda do Senhor, a qual pode acontecer no momento menos esperado. A festa é, neste novo contexto, a segunda vinda de Jesus. O noivo que está para chegar é Jesus. As dez jovens representam a Igreja que, experimentando na história as dificuldades e as perseguições, anseia pela chegada da libertação definitiva. Uma parte da Igreja está preparada, vigilante, atenta e, quando o noivo chega, pode entrar no banquete da vida eterna; a outra parte não está preparada, porque apostou nos valores do mundo e esqueceu os valores do Reino.

Na perspetiva de Mateus, “estar preparado para acolher a vinda do Senhor” significa escutar as palavras de Jesus, acolhê-las no coração e viver de forma coerente com os valores do Evangelho. “Estar preparado” significa viver na fidelidade ao desígnio do Pai e amar os irmãos até ao dom da vida, em todos os instantes da nossa existência. A mensagem que Mateus quer transmitir com a parábola aos cristãos da sua comunidade e, por analogia, aos cristãos de todas as comunidades de todos os tempos e lugares é que nós, os crentes, não podemos afrouxar a vigilância e enfraquecer o compromisso com os valores do Reino. Com o tempo, as nossas comunidades tendem a instalar-se no comodismo, no adormecimento, no descuido, numa vida de fé que não compromete, numa religião de “meias tintas”, num testemunho pouco empenhado e pouco coerente. No entanto, é preciso renovar em cada dia o nosso compromisso com Jesus Cristo. E a certeza de que Ele virá deve impulsionar-nos a um compromisso ativo com os valores evangélicos, na fidelidade ao ensinamento de Jesus e ao compromisso com o Reino.

Para se entender o alcance das locuções “Senhor, Senhor” e “não vos conheço”, importa reler no discurso programático da Montanha (Mt 7,21-23):

Nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’, entrará no Reino dos Céus, mas sim aquele que faz a vontade do meu Pai que está nos céus. Muitos me dirão naquele dia: ‘Senhor, Senhor, não foi em teu nome que profetizámos e em teu nome que expulsámos demónios e em teu nome que fizemos muitos milagres?’. Então eu lhes declararei: ‘Nunca vos conheci’.”.

E a propósito do conhecimento e do seu valor, importa reler Mateus 12,48-50, para descobrir a nova família, instaurada não na categoria do sangue, mas na do Reino:

… ‘Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?’. E, estendendo a sua mão para os seus discípulos, disse: ‘Eis a minha mãe e os meus irmãos. Quem faz a vontade do meu Pai que está nos Céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe’.”.

Está dito que o noivo que demora a vir é o Senhor. Ora, temos de saber que o tempo (khrónos) da sua demora é o tempo (kairós) que nos é dado a todos para estarmos sempre prontos, preparados e operosos. Com efeito, na basta estar informado, mas estar pronto. Afinal, as jovens insensatas também sabiam o que era necessário, tanto que acabaram por cumprir o programa e chegar à meta, mas tarde e a más horas, estando já encerrado o controlo.

É para esta implicação prática do saber que nos alerta o texto do livro da Sabedoria (Sb6,13-18), qual espelho por antecipação deste passo do Evangelho.

A sabedoria não é algo de misterioso e oculto que o homem tenha dificuldade em encontrar. Ao invés, ela brilha com brilho inalterável e atraente, que prende o olhar de quem a procura. Não é preciso correr atrás dela com cuidado e fadiga, trilhando caminhos difíceis ou procurando em lugares recônditos e sombrios. Basta amá-la, desejá-la, que imediatamente se fará presente a oferecer a vida e felicidade a todos os que anseiam por ela. Quem ama a sabedoria nela tropeça facilmente, nas circunstâncias mais comuns da vida quotidiana: à porta da casa, nos caminhos e na intimidade do pensamento. Para que a sabedoria ilumine a vida do homem, só é preciso disponibilidade para a acolher.

Neste pão da “Sabedoria” encontramos o amor, a luz, o conhecimento, a busca incessante, o encontro feliz. Na verdade, a Sabedoria em Deus é Deus e constitui uma figura simbólica que indica o amor de Deus, amor nupcial, transformante, unitivo – luminosamente visível em Jesus Cristo, Sabedoria de Deus. A Sabedoria é Luz divina inalterável, Vida divina inalterável. Apresenta-se como esposa que vem ao nosso encontro, tomando a iniciativa do Amor. É Graça preveniente, concomitante, consequente, que desposa cada fiel e todos os fiéis reunidos em comunidade. É trabalho do Amor que atravessa o Novo Testamento como Sabedoria Incarnada.

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Por tudo isto, não podemos deixar de aproveitar o tempo favorável que nos é concedido para embarcar no dinamismo do Reino e participar no festim eterno, o das núpcias divinais.

2020.11.08 – Louro de Carvalho

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