A parábola evangélica
tomada para a liturgia do XXXII domingo do Tempo Comum no Ano A finalizava com
a frase imperativa: “Vigiai, pois, porque
não sabeis o dia nem a hora” (Mt 25,13).
Ora, conexa
com essa parábola e seu final de tipo imperativo vem a parábola proclamada
neste XXXIII domingo do Tempo Comum no Ano A (Mt 25,14-30) em três
aspetos, que Dom António Couto (vd Jornal da
Madeira, de hoje) especifica:
o sentido da atitude de vigilância proposta (gregoreîte oûn: vigiai, pois) fica explicado agora, pois o passo desta perícopa
inicia-se deste modo: [homoiôthêsetai hê
basileía tôn ouranôn] “hôsper gar…”
([o reino dos céus é], na verdade como…) (Mt 25,14); o atraso do noivo na parábola das dez virgens que
aguardavam a sua chegada (Mt 25,5) equivale ao
“metà dè polùn khrón” (porém, muito
tempo depois) da parábola
desta dominga (Mt 25,19); as cinco virgens
operosas, que tinham tudo preparado, correspondem aos dois servos operosos,
pois, como elas entram na sala do banquete (Mt 25,10), eles entram na alegria do seu Senhor (Mt 25,21.23), ao passo que, tal como néscias ficam fora da porta
da sala do banquete (Mt 25,12), também o
servo mau e preguiçoso é excluído da alegria do seu Senhor (Mt 25,30).
Estamos, mais uma vez, perante um extrato do “discurso
escatológico” (cf Mt
24-25), em que Mateus
aborda o tema da segunda vinda de Jesus e define a atitude com que os
discípulos a devem preparar e esperar, remando contra mediocridade em que estão
tentados a incorrer, se é que já não incorreram, ou contra o desânimo provocado
pelas frequentes perseguições.
Era, pois, necessário reaquecer o entusiasmo dos crentes,
redespertar-lhes a fé, renovar o compromisso com Jesus e com a construção do
Reino. Por isso, Mateus recompõe o “discurso escatológico” de Marcos (cf Mc 13) e faz dele uma exortação aos
cristãos, lembrando-lhes que a segunda vinda do Senhor está no horizonte final
da história humana, não interessando o momento em que ela ocorrerá; e que, até
lá, os crentes devem “pôr a render os seus talentos”, vivendo na fidelidade aos
ensinamentos de Jesus e comprometidos com a construção do Reino.
A parábola fala de talentos que um senhor, antes de ir de
viagem, distribuiu pelos servos.
O talento começou por ser uma unidade de peso, usada
sobretudo para medir metais preciosos. Por exemplo, na Babilónia, um talento de
prata equivalia a 60 quilos, sendo que o de ouro valia muito mais. Porém, em
épocas sucessivas, no período helenístico, o valor do talento baixou,
situando-se entre 36 e 26 quilos. Seja como for, o talento era uma quantia
muito considerável, pois equivalia a 6000 denários (250000 a 300000€), sendo que o denário era o salário
normal dum dia de trabalho. Assim, o talento correspondia ao salário de aproximadamente
3.000 dias de trabalho dum operário não qualificado – quase o equivalente a uma
vida inteira de trabalho. E 5 talentos era bastante mais que um milhão de euros.
Terá sido Erasmo de Roterdão (1467-1536) quem, partindo desta pérola evangélica, deu a estes talentos
o sentido novo do “talento” ou “capacidades” que distinguem cada ser humano.
A parábola, tal como saiu da boca de Jesus, era uma parábola
do Reino. Conta que um senhor, um amo, partiu em viagem e deixou a sua fortuna
nas mãos dos servos, entregando cinco talentos a um, dois talentos e um talento
a outro. À volta, chamou os servos e pediu-lhes contas da sua gestão. Os dois
primeiros tinham duplicado a soma recebida; mas o terceiro tinha escondido
cuidadosamente o talento que lhe fora confiado, pois, conhecendo a exigência do
senhor, tinha medo. Os dois primeiros foram louvados pelo senhor, ao passo que
o terceiro foi severamente criticado e condenado. O amo exigente seria Deus,
que reclama para Si uma lealdade a toda a prova e que não aceita meias tintas e
situações de acomodação e de preguiça. E os servos a quem Ele confia os valores
do Reino são os crentes, que devem acolher os seus dons e pô-los a render, para
que o Reino seja uma realidade. No Reino, ou se está completamente
comprometido, ou não se está.
Porém, segundo Mateus, o senhor da parábola é Jesus que, antes
de deixar este mundo, entregou bens consideráveis aos seus servos, os
discípulos a quem passou a chamar amigos a partir da Última Ceia (vd Jo 15,14.15). Os bens são os dons que Deus, por
Jesus, ofereceu aos homens – a Palavra de Deus, os valores do Evangelho, o amor
que se faz serviço aos irmãos e que se dá até à morte, a partilha e o serviço,
a misericórdia e a fraternidade, os carismas e ministérios que ajudam a construir
a comunidade do Reino. Os discípulos de Jesus, seus irmãos após a ressurreição
do seu Mestre e Senhor (Mt
28,10), são os fiéis depositários
desses bens.
Ora, quer se trate de um, dois ou cinco talentos, é sempre um
imenso dom que nos é entregue. O Evangelho não fala tanto do empenho, dos
méritos, das capacidades de cada um, mas muito mais da graça preveniente de
Deus, do primado da graça de Deus em relação a nós. Na verdade, o imenso dom,
vindo de Deus, precede sempre a nossa ação.
E a questão que se levanta é como devem ser utilizados estes
bens ou dons que Deus nos confia. A resposta colhe-se do andamento da parábola:
os talentos entregues por Deus a cada um de nós não são como uma pedra preciosa
que se há de guardar ciosamente, mas como uma enorme soma de dinheiro a pôr a
render ou como a semente a semear para produzir raízes, caule, ramos, folhas,
flores e frutos. E a progressão da parábola mostra que os dois primeiros servos
não perderam tempo, mas partiram logo (euthéôs poreutheìs; hôsaútôs) (Mt 25,15 e 17) e obtiveram resultado a 100% de lucro (Mt 25,20 e 22). Ao invés, o terceiro agiu como se o
talento recebido fosse uma pedra preciosa e guardou-a ciosamente para, a seu
tempo, a devolver intacta ao dono.
A perícopa apresenta dois modelos de servo: o que mexe com os
bens, que demonstra interesse, que se preocupa em não deixar parados os dons do
senhor, que investe, que não se acomoda nem se deixa paralisar pela preguiça,
pela rotina, ou pelo medo; e o que entregou intactos os bens que recebeu, que
não correu riscos e que impediu que os bens do senhor fossem criadores de riqueza,
de vida nova.
Os motivos do
comportamento do terceiro servo são manifestados quando ele se explica aquando
da chegada do seu senhor muito tempo depois:
“Eu sei que és um homem duro (sklêrós),
que colhes onde não semeaste e juntas onde não espalhaste. Tive medo e escondi
o teu talento na terra.” (Mt 25,24-25).
Também Adão
teve medo de Deus e escondeu-se dele (cf Gn 3,10). E, nas pegadas de Adão, o terceiro servo
da parábola de Mateus ficou tolhido pelo medo e jogou pelo seguro, que era
falso. Diz o Bispo de Lamego que o medo deriva, nos dois casos, de uma falsa
imagem de Deus, visto como “um homem duro e exigente”, o que nos deixa
paralisados e sem a perceção da lógica dos dons de Deus, a começar pelo dom de
Deus por excelência, que é o Espírito Santo. Com efeito, “os dons do Deus da
parábola são dinâmicos, e não pedras estáticas e imóveis”, sendo que o nosso Deus
“é o Senhor da alegria (Mt 25,21 e 23), e não do
medo”. Por conseguinte, a vigilância de Mateus manifesta-se na atividade,
generosidade, coragem e ousadia a começar “em coisas de pouca monta” (epì olíga) (Mt 25,21.23), e não em tolhimento, frieza e inércia, na guarda
ciosa dum grande tesouro. Ou seja, como diz o prelado lamecense, devemos ser “negociantes
ousados, e não o tempo todo sentados em cima do tesouro”.
Mateus exorta, pois, a sua comunidade no sentido de estar
alerta e vigilante, sem se deixar vencer pelo comodismo e pela rotina. Esquecer
o compromisso assumido com Jesus e com o Reino, demitir-se das suas
responsabilidades, deixar na gaveta os dons de Deus, aceitar que o mundo se
construa de acordo com valores que não são os de Jesus, instalar-se na
passividade e no comodismo, é privar os irmãos, a Igreja e o mundo dos frutos a
que têm direito.
O discípulo de Jesus não pode esperar o Senhor apenas de mãos
erguidas e de olhos postos no céu, alheado dos problemas do mundo e preocupado
em não se contaminar com as questões do mundo. Antes, espera o Senhor
profundamente envolvido e empenhado no mundo, ocupado em distribuir a todos os
homens seus irmãos os bens de Deus e em construir o Reino. Caso contrário,
arriscamos a sentença:
“A todo o que tem será
dado e acrescentado, mas ao que não tem, até o que tem lhe será tirado”
(Mt 25,29; cf Mt 13,12).
***
Perante esta
passagem do Evangelho é de perguntar ao serviço de quem devemos pôr as nossas
capacidades a render. Aqueles dois primeiros servos puseram os talentos a
render, não ao serviço de si próprios, mas do seu senhor.
Ora,
conhecemos tantos e tantas que olham para o texto evangélico numa perspetiva meramente
bancária: invisto para que eu lucre e fique rico. Pois bem: aqueles servos
investiram para o senhor, que não deixou de os recompensar confiando-lhes mais
capacidades. Não sabemos o que o senhor fez dos lucros que os servos obtiveram.
Porém, a passagem do Livro dos Provérbios (Pr 31, 10-13.19-20.29-31) mostra-nos o retrato da mulher ideal, não pela beleza
nem pelo encanto feminino, mas como esposa, mãe e dona de casa, sempre atenta a
tudo e a todos; e não centrada em si de forma autorreferencial, mas olhando
para todos e por todos à sua volta, não esquecendo os pobres e necessitados,
que estão no centro das suas atenções e no centro do capítulo 31, um poema alfabético (os seus 22 versículos seguem as 22 letras do alfabeto
hebraico) a fechar o Livro dos Provérbios. E, neste sentido, o nosso Deus, confiando-nos os bens e mandando que
invistamos com eles, indica o uso que lhes devemos dar ao jeito do que faz
aquela mulher.
Dizia o
Padre César Costa, missionário passionista, que a mulher do Livro dos
Provérbios é a imagem do que deve ser a Igreja: a esposa (de Cristo), a mãe, a administradoras da Casa, a que olha para e
por todos, com especial preferência pelos pobres.
Assim, o
tema do 4.º Dia Mundial dos Pobres,
que hoje se vive e celebra, é “Estende a tua
mão ao pobre” (Sir 7,32). E, na sua
mensagem, o Papa considera que “a pobreza assume sempre rostos diferentes, que
exigem atenção a cada condição particular” e que “em cada uma destas, podemos
encontrar o Senhor Jesus, que revelou estar presente nos seus irmãos mais
frágeis”.
Depois,
enfatizando a inseparabilidade da “oração a Deus e a solidariedade com os
pobres e os enfermos”, observa;
“Para celebrar um
culto agradável ao Senhor, é preciso reconhecer que toda a pessoa, mesmo a mais
indigente e desprezada, traz gravada em si mesma a imagem de Deus. De tal
consciência deriva o dom da bênção divina, atraída pela generosidade praticada
para com os pobres. Por isso, o tempo que se deve dedicar à oração não pode
tornar-se jamais um álibi para descuidar o próximo em dificuldade. É verdade o
contrário: a bênção do Senhor desce sobre nós e a oração alcança o seu
objetivo, quando elas são acompanhadas pelo serviço dos pobres.”.
Mais refere
que “a
opção de prestar atenção aos pobres, às suas muitas e variadas carências, não
pode ser condicionada pelo tempo disponível ou por interesses privados, nem por
projetos pastorais ou sociais desencarnados”, pois “não se pode sufocar a força
da graça de Deus pela tendência narcisista de se colocar sempre a si mesmo no
primeiro lugar”. E, atendendo ao contexto que vivemos de pandemia, Francisco
aponta que estender a mão é “um sinal que apela imediatamente à proximidade, à
solidariedade, ao amor”, pelo que faz o levantamento das mãos que vê estendidas:
a do médico “que se preocupa de cada
paciente, procurando encontrar o remédio certo”; a da enfermeira e do enfermeiro
“que permanece, muito para além dos seus horários de trabalho, a cuidar dos
doentes”; a de “quem trabalha na
administração e providencia os meios para salvar o maior número possível de
vidas”; a do farmacêutico “exposto a
inúmeros pedidos num arriscado contacto com as pessoas”; a do sacerdote “que, com o coração partido,
continua a abençoar”; a do voluntário
“que socorre quem mora na rua e a quantos, embora possuindo um teto, não têm
nada para comer”; a de homens e mulheres
“que trabalham para prestar serviços essenciais e segurança”… – mãos que
desafiam “o contágio e o medo, a fim de dar apoio e consolação”.
Por outro
lado, segundo o Pontífice, estender a mão ao pobre é “um convite à responsabilidade, sob
forma de empenho direto, de quem se sente parte do mesmo destino” e “um
encorajamento a assumir os pesos dos mais vulneráveis”, como recorda São Paulo
ao dizer:
“Pelo amor, fazei-vos
servos uns dos outros. É que toda a Lei se cumpre plenamente nesta única
palavra: ama o teu próximo como a ti mesmo. (...) Carregai as cargas uns dos
outros.” (Gl 5,13-14;
6,2).
Com efeito, “o Apóstolo ensina que a liberdade que nos foi
dada com a morte e ressurreição de Jesus Cristo é, para cada um de nós, uma
responsabilidade para colocar-se ao serviço dos outros, sobretudo dos mais
frágeis”, o que não é “uma exortação facultativa”, mas “uma condição da
autenticidade da fé que professamos”.
E, na homilia deste Dia Mundial dos Pobres, o Bispo de Roma,
comentando o Evangelho, diz que o banqueiro em que devemos investir os nossos
bens são os pobres, que “estão no centro do Evangelho”. De facto, “o Evangelho
não se compreende sem os pobres”, pois “a personalidade dos pobres é igual à de
Jesus que, sendo rico, aniquilou-Se a Si mesmo, fez-Se pobre, fez-Se pecado, a
pior pobreza”. São, pois, os pobres quem nos garantem “um rendimento eterno” e
permite, “já agora, enriquecer-nos no amor”, pelo que “a maior pobreza que
devemos combater é a nossa pobreza de amor”.
Depois, fazendo referência ao livro dos Provérbios, salienta
o elogio à “mulher diligente e caritativa, cujo valor é superior ao das pérolas”,
exorta a que imitemos “aquela mulher” que “abre a mão ao indigente” (Pr 31,20), considera que
“esta é a grande riqueza daquela mulher” e preconiza que, “em vez de exigires o
que te falta”, estendas “a mão a quem passa necessidade”, garantindo-nos que
assim multiplicaremos os talentos que recebemos.
Lá diz a
sabedoria popular: quem dá aos pobres
empresta a Deus.
E, fitando o
horizonte do Natal, o tempo das festas, Francisco contrapõe à preocupação
corrente do “que posso comprar” ou do “que mais posso ter”, uma nova versão, a
de “o que posso dar aos outros” – isto “para ser como Jesus, que Se deu a Si
mesmo e até nasceu naquele presépio”.
2020.11.15 – Louro de Carvalho
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