terça-feira, 5 de agosto de 2014

Igreja, minha “pátria da liberdade”

A expressão inscrita em epígrafe corresponde ao segmento final de artigo do cónego Rui Osório, publicado na última página do semanário Voz Portucalense, do passado 30 de julho. Conheci este sacerdote da diocese portuense num encontro de jornais de inspiração cristã nos longínquos tempos de 1975, na Casa do Beato Nuno, em Fátima, sob a coordenação de Dom Manuel Franco Falcão, então Bispo Coadjutor com direito de sucessão do bispo de Beja ao tempo, Dom Manuel dos Santos Rocha.
Já nessa ocasião anotei que o perfil e a postura social e eclesial do padre também dado ao jornalismo corresponderiam àquilo que o cónego Rui Osório diz de si no mencionado artigo (talvez a razão por que o lia com natural agrado), “convencido de que a liberdade na Igreja deve fluir mais viçosa do que na sociedade civil”, assumindo a Igreja como uma “pátria de liberdade”. É curioso como o colunista de Voz Portucalense o enuncia como resposta a um reparo de um canonista sobre a diferença entre a liberdade na Sociedade e a liberdade na Igreja – resposta em que manifesta a concordância como o perito em cânones, mas a que dá um sentido diferente: “Também para mim é claro que a liberdade na Igreja é diferente porque tem de ser mais e melhor liberdade do que na sociedade civil”.
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Não é difícil perceber que a Igreja é a pátria da liberdade. Já a sua pré-história o faz entender. Abraão teve um filho da escrava e um, filho da mulher livre. Ora, o povo de Israel que se perpetua no Israel novo da plenitude dos tempos, descende de Abraão pelo lado de Isaac, o filho da mulher livre (Sara); do filho, não do detentor da primogenitura natural (Esaú), mas de Jacob, o detentor da bênção largamente concedida por seu pai Isaac; e da mulher amada de Jacob (Raquel) e não da mulher imposta, convencional (Lia) – cf Gl 4,21-31.
Cristo, o fundador e cabeça da Igreja constrói a liberdade fundamentando, espiritualizando e agilizando a aliança. Não se funda mais no sangue de animais, mas no do próprio Cristo, filho de Deus; não fica materializada nos rituais meramente externos circunscrito à letra da Lei, mas na pureza de coração e retidão de pensamento, celebrada com pão e vinho, acessíveis a todos – ricos e pobres – e não puro alimento material, mas corpo e sangue de Cristo. Liberta o homem do jugo do Sábado e proclama o Sábado como serviço ao Homem, exatamente por ter sido criado para o serviço de Deus, de que o homem é imagem e semelhança; e faz da Lei o pedagogo para a assunção das Bem-aventuranças como código de liberdade (cf Rm 7,6; 8,2). Em Cristo, que dá a vida em testemunho da Verdade e com esta nos libertou, não há grego nem judeu, livre ou escravo, homem ou mulher – mas todos somos um em Cristo (cf Gl 3,28).
Vários textos neotestamentários acentuam a vertente da liberdade. No entanto, não pode deixar de se atentar no capítulo V da carta aos Gálatas, em que fica definido o estatuto dos seguidores do Mestre: “Foi para a liberdade que Cristo vos libertou. Permanecei, pois, firmes e não torneis a sujeitar-vos ao jugo da servidão.” (Gl 5,1). Por outro lado, a liberdade liga-se ao fundamental do ser e operar cristão: “Vós, de facto, irmãos, fostes chamados à liberdade. Somente não façais da liberdade um incentivo para a carne, antes, pela caridade, tornai-vos servos uns dos outros. É que toda a Lei fica completamente cumprida com um só preceito – Amarás o teu próximo como a ti mesmo.” (Gl 5,13-14) – preceito semelhante a este: Amarás o Senhor teu Deus, com todo o teu coração e com toda a tua alma com todo o teu entendimento” (Mt 22,37).
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O mencionado colunista dá o seu próprio testemunho de vida em que coloca em paralelo a postura da sociedade civil e a da Igreja sobre a liberdade, circunscrevendo-o, como é natural, à liberdade de pensamento e sua correlata liberdade de expressão – a mais significativa na relação interpessoal e institucional. Por outro lado, é natural que o clérigo católico ocidental não tenha experimentado o óbice do acesso a uma profissão, a um cargo público ou a um estado de vida. No seu contexto de padre e jornalista, Rui Osório denuncia, na sociedade civil, a “censura apertada e estupidamente arbitrária” e, depois de conquistada a liberdade, a necessidade de vigilância para “recusar pressões subtis quer da política quer da economia, uma e outra tão gulosas da manipulação da opinião pública e da opinião publicada”. Porém, na aliança que tentou fazer, ao longo de mais de 50 anos, entre o culto e a cultura, no vasto quadro da comunicação social, oral e escrita, nunca o obrigaram, em Igreja, ao exame prévio nem foi objeto de reparo de seus bispos, confessando que o aceitaria para autocorreção. Veja-se a diferença entre a censura política (por interesse, por medo, por ambição, afirmação de pensamento único) e a censura eclesiástica (em nome de doutrina, com fins pedagógicos, para distinguir afirmações pessoais das de doutrina oficial…).
Por mim, que não tenho a prática jornalística nem a longevidade eclesiástica de Osório, também posso testemunhar o incomensuravelmente menor cerceamento das liberdades em contexto eclesial que o da sociedade civil. Em Igreja, nunca me senti coagido a dizer ou a escrever o quer que fosse ou como quer que fosse. Nunca me dispensei de proferir as declarações e juízos que me parecessem mais ajustados às realidades que abordava ou aos raciocínios que me ocorria desenvolver. É óbvio que nem sempre a minha liberdade se coadunava com a de outros e, como é natural, havia equívocos e até choques. Nada, porém, que madura reflexão ou o tempo não ajudasse a resolver ou a ultrapassar. Às vezes, era conveniente “pedagogizar” a liberdade, tal como moderar a apreciação das suas consequências.
No entanto, é com desgosto que a história, mesmo recente, se mostra pródiga em chamadas de atenção, reprimendas e proibições de ensinar a teólogos. Será somente porque insistem em não distinguir o que é posição pessoal, fruto de investigação e doutrina oficial da Igreja? Seria tolerável que assim fosse, embora as opiniões pessoais e os resultados e processos de investigação devam ter foros de ensinamento. Parece-me, entretanto, que se digladiam, na arena do pensamento e do seu controlo, o excessivo zelo preservante do depositum fidei, a mostrar a mão fiscalizadora, em vez do braço tutelar, e a tentativa de dogmatizar pontos de vista ainda em fase de gestação sem coroamento, bem como a veleidade de apresentar como novidade formulações já conhecidas de todos há muito tempo.
No atinente, à sociedade civil, sem nos alargarmos demais, é pertinente recordar o abuso que os poderes fizeram dos mecanismos inquisitoriais que em História hoje se condenam sem dó nem piedade como se tivessem sido cometidos pela Igreja à luz dos critérios atuais. A título de exemplo, reparem-se nos juízos de intenção, nos delitos de opinião, na atribuição caluniosa de crimes e atitudes persecutórias (até à morte, ao degredo extinção) perpetradas por Sebastião José de Carvalho e Melo (em maré de iluminismo?!), combates similares no tempo do liberalismo vs absolutismo, nas diversas manifestações dos poderes da I República. Quanto ao Estado Novo, são assaz conhecidos: os excessos delatórios, persecutórios e torturantes no âmbito da polícia política (PVDE → PIDE → DGS); a instauração do regime de livro único no sistema educativo; o oscilatório défice da escolaridade e da formação de docentes; a expulsão de docentes da sua cátedra ou do seu lugar de efetivo em escola; o controlo prévio da comunicação social (censura → exame prévio); a consagração do regime de partido único (UN → ANP) que não era partido, porque a criação de partidos estava proscrita sob a cominação de crime social; a proscrição de inventos, sob a capa de fraude cometida ou de ação de legalidade duvidosa de seus autores; e o silenciamento das questões ultramarinas. A ordem restabelecida era bem periclitante. A cada passo o mentor e líder incontestado se embarcava no rápido da Beira (comboio) para Santa Comba, de lá regressando à capital quando o informavam de que a situação estava sob controlo.
Após a revolução abrilina, foi extinta a polícia política, a censura e foi promovida a criação dos partidos políticos. Mas quem não se recorda das comissões “ad hoc” para os diversos setores da comunicação social, do assalto aos órgãos do poder local, dos excessos do COPCON, da extinção de partidos, dos saneamentos em jornais (alguns foram encerrados), rádio e televisão, dos saneamentos em empresas e departamentos da administração pública ou das nacionalizações em barda? Apesar da bondade da lei de imprensa, da lei de rádio e da lei de televisão, a informação regular era demasiado monocórdica.
Hoje continua a apetência pelo controlo da comunicação social, por pressão política, por determinação administrativa com base em motivações empresariais e/ou políticas, por razões de oportunidade; prevaricadores andam à solta; exagera-se na prisão preventiva, que se troca por entrega de caução de milhares e milhares de euros; aumenta a insegurança; desacredita-se da política e dos políticos, prometem aquilo que sabem não poderem cumprir, que tudo praticam impunemente, perante uma justiça que não funciona, embora todos “creiam” nela; criou-se na administração pública e na empresa o espectro da precariedade do vínculo laboral, com o receio da perda de emprego e a imposição do pensamento único e a postura de agrado às direções, ocupadas não pelos melhores, mas por quem sabe amoldar-se, adquirir apoios ou esperar compensações futuras. Enfim, que liberdades!

Por mim, fui uma vez repreendido por não bater palmas a um discurso de ministro, outra por dizer mal de Salazar e outra por criticar o sucessor e o almirante (Estado Novo). Como cidadão comum ou no desempenho de cargos, por vezes, assumindo postura irreverente, nunca deixei de dizer em privado ou em público tudo o que deveria dizer. Nunca me inibi de enunciar o quer que fosse e como quer que fosse por qualquer medo de receber ameaças ou de perder cargos, emprego, classificações ou boas graças de alguém. Ao nível da escrita, sem que ela tenha grande fôlego, nunca a vi seriamente contestada; e normalmente os materiais que envio, ou são publicados ou não. E, neste caso, a justificação prende-se com o tamanho, a falta de oportunidade ou a existência de muito original para publicação. Como assim, nunca fui objeto de condenações, censuras, reprimendas e advertências, para lá de um ou outro reparo mais ou menos pertinente. E também nunca fui objeto de condecorações ou públicos louvores, para lá de agradáveis mostras de apreço. É a liberdade que vale por si e para esplendor da verdade!

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