A expressão inscrita em epígrafe
corresponde ao segmento final de artigo do cónego Rui Osório, publicado na
última página do semanário Voz
Portucalense, do passado 30 de julho. Conheci este sacerdote da diocese portuense
num encontro de jornais de inspiração cristã nos longínquos tempos de 1975, na
Casa do Beato Nuno, em Fátima, sob a coordenação de Dom Manuel Franco Falcão,
então Bispo Coadjutor com direito de sucessão do
bispo de Beja ao tempo, Dom Manuel dos Santos Rocha.
Já nessa ocasião
anotei que o perfil e a postura social e eclesial do padre também dado ao
jornalismo corresponderiam àquilo que o cónego Rui Osório diz de si no
mencionado artigo (talvez a razão por que o lia com natural agrado),
“convencido de que a liberdade na Igreja deve fluir mais viçosa do que na
sociedade civil”, assumindo a Igreja como uma “pátria de liberdade”. É curioso
como o colunista de Voz Portucalense
o enuncia como resposta a um reparo de um canonista sobre a diferença entre a
liberdade na Sociedade e a liberdade na Igreja – resposta em que manifesta a
concordância como o perito em cânones, mas a que dá um sentido diferente:
“Também para mim é claro que a liberdade na Igreja é diferente porque tem de
ser mais e melhor liberdade do que na sociedade civil”.
***
Não é difícil perceber
que a Igreja é a pátria da liberdade. Já a sua pré-história o faz entender.
Abraão teve um filho da escrava e um, filho da mulher livre. Ora, o povo de
Israel que se perpetua no Israel novo da plenitude dos tempos, descende de
Abraão pelo lado de Isaac, o filho da mulher livre (Sara); do filho, não do
detentor da primogenitura natural (Esaú), mas de Jacob, o detentor da bênção
largamente concedida por seu pai Isaac; e da mulher amada de Jacob (Raquel) e
não da mulher imposta, convencional (Lia) – cf Gl
4,21-31.
Cristo, o
fundador e cabeça da Igreja constrói a liberdade fundamentando,
espiritualizando e agilizando a aliança. Não se funda mais no sangue de
animais, mas no do próprio Cristo, filho de Deus; não fica materializada nos
rituais meramente externos circunscrito à letra da Lei, mas na pureza de
coração e retidão de pensamento, celebrada com pão e vinho, acessíveis a todos
– ricos e pobres – e não puro alimento material, mas corpo e sangue de Cristo.
Liberta o homem do jugo do Sábado e proclama o Sábado como serviço ao Homem,
exatamente por ter sido criado para o serviço de Deus, de que o homem é imagem
e semelhança; e faz da Lei o pedagogo para a assunção das Bem-aventuranças como
código de liberdade (cf Rm 7,6; 8,2). Em Cristo,
que dá a vida em testemunho da Verdade e com esta nos libertou, não há grego
nem judeu, livre ou escravo, homem ou mulher – mas todos somos um em Cristo (cf Gl 3,28).
Vários textos neotestamentários
acentuam a vertente da liberdade. No entanto, não pode deixar de se atentar no
capítulo V da carta aos Gálatas, em que fica definido o estatuto dos seguidores
do Mestre: “Foi para a liberdade que
Cristo vos libertou. Permanecei, pois, firmes e não torneis a sujeitar-vos ao
jugo da servidão.” (Gl 5,1). Por outro lado, a liberdade liga-se ao
fundamental do ser e operar cristão: “Vós,
de facto, irmãos, fostes chamados à liberdade. Somente não façais da liberdade
um incentivo para a carne, antes, pela caridade, tornai-vos servos uns dos
outros. É que toda a Lei fica completamente cumprida com um só preceito –
Amarás o teu próximo como a ti mesmo.” (Gl 5,13-14) – preceito semelhante a este: Amarás o
Senhor teu Deus, com todo o teu coração e com toda a tua alma com todo o teu
entendimento” (Mt 22,37).
***
O mencionado colunista dá o seu
próprio testemunho de vida em que coloca em paralelo a postura da sociedade
civil e a da Igreja sobre a liberdade, circunscrevendo-o, como é natural, à
liberdade de pensamento e sua correlata liberdade de expressão – a mais
significativa na relação interpessoal e institucional. Por outro lado, é
natural que o clérigo católico ocidental não tenha experimentado o óbice do
acesso a uma profissão, a um cargo público ou a um estado de vida. No seu
contexto de padre e jornalista, Rui Osório denuncia, na sociedade civil, a
“censura apertada e estupidamente arbitrária” e, depois de conquistada a
liberdade, a necessidade de vigilância para “recusar pressões subtis quer da
política quer da economia, uma e outra tão gulosas da manipulação da opinião
pública e da opinião publicada”. Porém, na aliança que tentou fazer, ao longo
de mais de 50 anos, entre o culto e a cultura, no vasto quadro da comunicação
social, oral e escrita, nunca o obrigaram, em Igreja, ao exame prévio nem foi
objeto de reparo de seus bispos, confessando que o aceitaria para autocorreção.
Veja-se a diferença entre a censura política (por interesse, por medo, por
ambição, afirmação de pensamento único) e a censura eclesiástica (em nome de
doutrina, com fins pedagógicos, para distinguir afirmações pessoais das de
doutrina oficial…).
Por mim, que não tenho a prática jornalística
nem a longevidade eclesiástica de Osório, também posso testemunhar o incomensuravelmente
menor cerceamento das liberdades em contexto eclesial que o da sociedade civil.
Em Igreja, nunca me senti coagido a dizer ou a escrever o quer que fosse ou
como quer que fosse. Nunca me dispensei de proferir as declarações e juízos que
me parecessem mais ajustados às realidades que abordava ou aos raciocínios que
me ocorria desenvolver. É óbvio que nem sempre a minha liberdade se coadunava
com a de outros e, como é natural, havia equívocos e até choques. Nada, porém, que
madura reflexão ou o tempo não ajudasse a resolver ou a ultrapassar. Às vezes,
era conveniente “pedagogizar” a liberdade, tal como moderar a apreciação das
suas consequências.
No entanto, é com desgosto que a
história, mesmo recente, se mostra pródiga em chamadas de atenção, reprimendas
e proibições de ensinar a teólogos. Será somente porque insistem em não distinguir
o que é posição pessoal, fruto de investigação e doutrina oficial da Igreja? Seria
tolerável que assim fosse, embora as opiniões pessoais e os resultados e processos
de investigação devam ter foros de ensinamento. Parece-me, entretanto, que se
digladiam, na arena do pensamento e do seu controlo, o excessivo zelo preservante
do depositum fidei, a mostrar a mão fiscalizadora,
em vez do braço tutelar, e a tentativa de dogmatizar pontos de vista ainda em
fase de gestação sem coroamento, bem como a veleidade de apresentar como
novidade formulações já conhecidas de todos há muito tempo.
No atinente, à sociedade civil,
sem nos alargarmos demais, é pertinente recordar o abuso que os poderes fizeram
dos mecanismos inquisitoriais que em História hoje se condenam sem dó nem
piedade como se tivessem sido cometidos pela Igreja à luz dos critérios atuais.
A título de exemplo, reparem-se nos juízos de intenção, nos delitos de opinião,
na atribuição caluniosa de crimes e atitudes persecutórias (até à morte, ao
degredo extinção) perpetradas por Sebastião José de Carvalho e Melo (em maré de
iluminismo?!), combates similares no tempo do liberalismo vs absolutismo, nas
diversas manifestações dos poderes da I República. Quanto ao Estado Novo, são
assaz conhecidos: os excessos delatórios, persecutórios e torturantes no âmbito
da polícia política (PVDE → PIDE → DGS); a instauração do regime de livro único
no sistema educativo; o oscilatório défice da escolaridade e da formação de docentes;
a expulsão de docentes da sua cátedra ou do seu lugar de efetivo em escola; o
controlo prévio da comunicação social (censura → exame prévio); a consagração
do regime de partido único (UN → ANP) que não era partido, porque a criação de
partidos estava proscrita sob a cominação de crime social; a proscrição de
inventos, sob a capa de fraude cometida ou de ação de legalidade duvidosa de
seus autores; e o silenciamento das questões ultramarinas. A ordem restabelecida
era bem periclitante. A cada passo o mentor e líder incontestado se embarcava
no rápido da Beira (comboio) para Santa Comba, de lá regressando à capital quando
o informavam de que a situação estava sob controlo.
Após a revolução abrilina, foi
extinta a polícia política, a censura e foi promovida a criação dos partidos políticos.
Mas quem não se recorda das comissões “ad
hoc” para os diversos setores da comunicação social, do assalto aos órgãos
do poder local, dos excessos do COPCON, da extinção de partidos, dos saneamentos
em jornais (alguns foram encerrados), rádio e televisão, dos saneamentos em
empresas e departamentos da administração pública ou das nacionalizações em
barda? Apesar da bondade da lei de imprensa, da lei de rádio e da lei de televisão,
a informação regular era demasiado monocórdica.
Hoje continua a apetência pelo
controlo da comunicação social, por pressão política, por determinação administrativa
com base em motivações empresariais e/ou políticas, por razões de oportunidade;
prevaricadores andam à solta; exagera-se na prisão preventiva, que se troca por
entrega de caução de milhares e milhares de euros; aumenta a insegurança;
desacredita-se da política e dos políticos, prometem aquilo que sabem não poderem
cumprir, que tudo praticam impunemente, perante uma justiça que não funciona,
embora todos “creiam” nela; criou-se na administração pública e na empresa o
espectro da precariedade do vínculo laboral, com o receio da perda de emprego e
a imposição do pensamento único e a postura de agrado às direções, ocupadas não
pelos melhores, mas por quem sabe amoldar-se, adquirir apoios ou esperar compensações
futuras. Enfim, que liberdades!
Por mim, fui uma vez repreendido por não bater palmas a um discurso de ministro, outra por dizer mal de Salazar
e outra por criticar o sucessor e o almirante (Estado Novo). Como cidadão comum
ou no desempenho de cargos, por vezes, assumindo postura irreverente, nunca
deixei de dizer em privado ou em público tudo o que deveria dizer. Nunca me
inibi de enunciar o quer que fosse e como quer que fosse por qualquer medo de receber
ameaças ou de perder cargos, emprego, classificações ou boas graças de alguém. Ao
nível da escrita, sem que ela tenha grande fôlego, nunca a vi seriamente contestada;
e normalmente os materiais que envio, ou são publicados ou não. E, neste caso,
a justificação prende-se com o tamanho, a falta de oportunidade ou a existência
de muito original para publicação. Como assim, nunca fui objeto de condenações,
censuras, reprimendas e advertências, para lá de um ou outro reparo mais ou
menos pertinente. E também nunca fui objeto de condecorações ou públicos louvores,
para lá de agradáveis mostras de apreço. É a liberdade que vale por si e para esplendor
da verdade!
Sem comentários:
Enviar um comentário