quarta-feira, 13 de agosto de 2014

O realismo “dulciamargo” da sumarenta homilia do bispo do Porto

O Senhor Bispo do Porto presidiu, no Santuário de Fátima, à peregrinação aniversária de 12 e 13 de agosto, cujo tema sintetiza o Salmo penitencial 51, “Perdoai-me, porque pequei” (Sl 51).
Assim, a homilia do dia 13, muito bela, muito bem estruturada e muito apelante, responde cabalmente à temática da peregrinação a do perdão “re-elevante” do homem pecador, no contexto do temático pano de fundo oferecido pelo santuário a este ano pastoral, “envolver a todos no amor de Deus pelo mundo”, e ao lema “Migrações: rumo a um mundo melhor”, da 42.ª Semana Nacional das Migrações, iniciativa da nossa Igreja Católica, de 10 a 17 de agosto.
A peregrinação aniversária de agosto, caraterizada pela presença de grande número de peregrinos que integram esta  Peregrinação dos Migrantes e Refugiados ao Santuário de Fátima, constitui um dos pontos altos da semana das migrações, organizada anualmente pela Igreja Católica em Portugal através da Obra Católica Portuguesa de Migrações (OCPM).
Dom António Marto, Bispo de Leiria-Fátima, no agradecimento ao Senhor Bispo do Porto, caraterizou a sua homilia como uma mensagem “cheia de beleza, de ternura, de calor humano e afetuoso, de grande realismo”, incitando todos a sermos “portadores de esperança e de energia nova, rumo a um mundo melhor”.
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Como não podia deixar de ser, já que Dom António Francisco dos Santos é dotado de profundo saber teológico, fino sentido litúrgico e desenvolto tacto pastoral, a homilia que proferiu mostra-se tocante, doutrinal e cheia de humanitarismo, propondo um novo olhar de releitura dos textos bíblicos, exercitando uma aguda atenção à realidade e apelando à transformação de um mundo velho, em que um novo modo de pecar se estabeleceu, num mundo novo de valores de ética e fraternidade.
Começa aliando a entrega que Jesus, no Calvário, fez de Sua mãe ao discípulo amado e do discípulo à Mãe de Jesus, para o discípulo A recebesse em sua casa como filho seu (cf Jo 19,25-27) – cenário a aplicar necessariamente a cada um de nós, filhos – ao caso do emigrante que, em França, após a viagem atribulada da clandestinidade e do acolhimento de concidadãos, topara no meio da roupa emalada pela esposa “uma imagem de Nossa Senhora com esta mensagem: ‘Guarda contigo esta imagem, porque onde Nossa Senhora estiver também aí estamos nós: os teus filhos e eu’.”. E este é o exemplo do homem bom, do bom de fé, que guarda “íntegra a sua comunhão com a família”, comunhão que lhe dava a “força diária para viver sereno, para estar confiante e para trabalhar com coragem, sabendo que da sua vida digna e do seu trabalho honesto dependiam a vida e o futuro da família”. Foi este um momento tocante, de doutrina, de espiritualidade e de tacto pastoral.
Depois, frisando a vertente histórica de Portugal como nação de emigrantes e terra de imigrantes, declara que o país deve assumir com alegria e honra este desígnio histórico, acolhendo generosamente os novos imigrantes, que nos procuram. E, recordando em tom orante “homens e mulheres emigrantes, protagonistas desta história”, sublinha não podermos “ignorar nem deixar de lamentar as razões que levam hoje tantos portugueses, cheios de dons e de talentos, a sair de Portugal, porque aqui não encontram trabalho” – pela sina da inevitabilidade.
E o Bispo do Porto, no estilo a que nos habituou desde há muitos anos, sentenciou sem medo e com toda a clareza judiciosa de quem sabe:
A falta de trabalho desumaniza as pessoas e coloca em perigo o futuro de um País. Portugal não pode esquecer que sem os emigrantes de ontem não era o País que hoje é e sem os emigrantes de hoje não consegue vencer a crise que tem vivido.”

E, no tom da romano-argentina revolução franciscana de Igreja, declara:
“Recusar, por seu lado, a entrada a quem procura imigrar para viver em família com dignidade e para trabalhar com honestidade é um pecado! Ninguém pode roubar aos emigrantes o encanto do sonho e a alegria da esperança!”.
É um segmento discursivo comovente, realista, mas exigente. Mas o antístite portuense não deixa de apontar caminhos: “Queremos acreditar e devemos trabalhar para que esta seja também a hora da reconciliação entre as pessoas estrangeiras e da paz entre os povos desavindos” (cf 2 Cor 5, 17-21).
E Dom António Francisco, que teve experiência de emigração e de pároco-missionário de emigrantes, e é filho de pai emigrado no Brasil em tempos difíceis, sabe dar testemunho da consciência que temos “de que o desejo de um futuro digno, justo e solidário esteve sempre presente no coração de quem emigra”. E vai mais longe ao assegurar que “os emigrantes são embaixadores desta esperança e protagonistas da construção de um mundo melhor, com rosto humano, esculpido com as linhas cristãs da bondade, da hospitalidade, da universalidade e da fraternidade”.
Escalpelizando as injustiças e guerras que permitem e mesmo promovem “o tráfico das pessoas”, aniquilam “os sonhos das crianças”, matam “inocentes” e põem “em risco o futuro de tantos povos”, proclama que “os crentes são convidados”, segundo as palavras do Papa Francisco na Mensagem para a Jornada Mundial do Migrante de 2014, a
não perder a esperança de que lhe está reservado um futuro mais seguro e que nos caminhos da migração encontrarão sempre uma mão estendida que lhe fará experimentar a solidariedade fraterna e o calor da amizade (cf. MJMM 2014).
Embora convicto de que não cabe à Igreja a definição de políticas de migração, acentua o seu dever de “alertar com coragem e determinação os governantes para as causas da justiça e para os valores do bem comum, em ordem a promover uma economia de rosto humano e solidário e um sistema financeiro assente na ética e na verdade”.
Se estes parâmetros tivessem sido objeto de uma observância por mínima que fosse, não teríamos de lamentar e sofrer o descalabro a que chegou o país (e cuja dimensão ainda permanece na obscuridade), bem como a crise sistémica e global que perpassou o mundo, ou o fosso que opõe os cada vez mais ricos ao número cada vez mais avassalador dos mais pobres.
Também por isso e para que se rasguem irreversivelmente horizontes de um mundo melhor, é preciso, que todos e cada um se empenhem em “envolver a todos no amor de Deus pelo mundo”, em conformidade com a atual proposta de espiritualidade do Santuário de Fátima. E, porque muitas têm sido ao longo do tempo as transgressões à lei divina e grandes os pecados (quer de comissão quer de omissão) contra os nossos irmãos neste campo “do reconhecimento do próximo, da hospitalidade dada aos estrangeiros, da busca da fraternidade, do respeito pela dignidade humana, da construção do bem comum e da promoção da justiça social” – também neste domínio temos de assumir como nosso o pecado da Humanidade, a ponto de cada um dever vir a clamar humildemente: “Perdoai-me, Senhor, porque pequei” (cf Sl 51).
O anestesiamento do coração e o fecho no nosso bem-estar postulam um lancinante pedido de perdão e um despertar de consciência para que não se repita o mal que tem acontecido até aqui, como preconizava o Papa Francisco em Lampedusa, há um ano.
Na ocasião, o Papa agradeceu à comunidade cristã de habitantes de Lampedusa e Linosa, às suas associações e aos voluntários a atenção dada aos emigrantes e às pessoas em viagem: “Sois uma realidade pequena, mas ofereceis-nos um belo exemplo de solidariedade (Homilia do Papa em Lampedusa, 08-07-2013).
Na esteira do Papa Francisco, Dom António, à semelhança do que fazia em Aveiro e pratica no Porto, quis hoje também “ser voz da Igreja para agradecer aos sacerdotes, aos consagrados (as), aos agentes de pastoral, às famílias, às comunidades e às missões católicas dispersas pelo mundo o bem realizado na vanguarda desta missão ao serviço dos emigrantes” e agradeceu e louvou, igualmente, o trabalho feito pela Obra Católica Portuguesa das Migrações, pelos Secretariados Diocesanos da Mobilidade Humana e pelas Associações de Migrantes, invocando de Deus a recompensa para todos. É referência que os Pastores não raro se esquecem de fazer.
Quase no fim da sua intervenção, o prelado da diocese da Cidade Invicta e Cidade da Virgem explicita que a solicitude pastoral atinente à mobilidade humana se concretiza “na lucidez evangélica do magistério da Igreja e na disponibilidade dos sacerdotes e agentes de pastoral para partirem com os emigrantes para os países de destino”, bem como “na forma acolhedora das comunidades cristãs de origem neste tempo de férias e no regresso definitivo”. E, nestes termos, “a história da emigração em Portugal e a ação pastoral da Igreja com os emigrantes se faz de pequenos gestos proféticos e de sinais visíveis que serviram para abrir caminhos novos, rumo a um mundo melhor na vida dos emigrantes”.
E, depois de salientar a sugestiva particularidade desta peregrinação aniversária “de testemunhar a generosidade dos agricultores de Leiria e de Portugal que, cumprindo uma bela tradição, oferecem trigo dos seus campos, fruto da bondade de Deus e do trabalho humano, para aqui ser transformado, na Eucaristia, em Pão da Vida e Corpo de Cristo para a vida do Mundo – gesto magnânimo e de tão eloquente generosidade que o bispo agradece rezando – Dom António, solicitando a sintonia de todos, formulou uma oração à Mãe de Deus, a companheira e animadora de peregrinos e emigrantes, a Senhora da Bênção e da Paz, a Luz dos que buscam Deus, o Alívio dos que sofrem, a Acolhedora dos que choram, a Senhora dos pastorinhos.
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O repórter Manuel de Portugal salientou as palavras de incidência política do presidente da celebração eucarística, mas parece ter contextualizado, restringindo-a, a ação dos pastores da Igreja em Portugal como fazendo o seu trabalho e levantando a voz seguindo o exemplo do Papa Francisco.
Ora, saudando a mais-valia da palavra e gesto de Francisco e a normalidade da sua influência na ação dos agentes da Igreja toda (pena é que alguns o admirem sem o seguirem), já me custa a tolerar a obnubilação da palavra e ação dos predecessores, como o facto de ir caindo no olvido o levantamento da voz e os gestos a que nos habituaram tantas figuras da Igreja Portuguesa.
Ainda no dia 12, o Bispo de Leiria-Fátima citava Bento XVI na sua denúncia da “ditadura do capitalismo financeiro e especulativo”. A Igreja não começou ontem!


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