terça-feira, 12 de agosto de 2014

Distinguir para baralhar

Distinguir demasiado terá uma função análoga à da mudança total para que tudo fique na mesma.
Refiro-me ao estribilho, propalado a toda a gente tanto pelo BdP como pelo Governo, comentadores e jornalistas, de que o BES e o GES eram coisas totalmente diferentes; e que o BES estava bem e se recomendava, ao passo que aquilo que estava mal era o GES (Grupo Espírito Santo). O GES acusava enormes falhas, mas o BES (Banco Espírito Santo) estava forte e recomendava-se. Tinha até procedido a uma recente operação de aumento de capital e possuía uma boa almofada para encarar qualquer situação de surpresa desagradável em virtude da sua exposição ao GES.
Depois, veio a falar-se, sem reservas, da sua exposição ao grupo, tendo, por este lado, surgido em definitivo a justificação do que veio a suceder ao Banco. E, por um lado, unidades empresariais do GES solicitaram gestão protegida/ controlada, sendo talvez este um eufemismo para insolvência ou falência (às vezes, os preciosismos das linguagens, ditas técnicas, criam cada partida aos utentes públicos e privados!…); por outro, lado agências de rating faziam desclassificações e CMVM suspendia transações na Bolsa de Valores, suspensão de venda de ações a descoberto, etc. E o Banco, que tinha emprestado mais de 3 mil milhões de euros ao BESA (Banco Espírito Santo de Angola), sob garantia (ou equivalente) do Presidente José Eduardo dos Santos, que não renovou na altura do aperto, foi obrigado, em 1 de agosto, a devolver ao BCE os 10 mil milhões de euros que lhe tinha emprestado; e, apesar de o BdP (Banco de Portugal), o regulador, lhe ter emprestado cerca de 3 mil e 500 mil milhões (soube-se, por ata de reunião do CA do BdP, em site de grupo privado), para que o BES pudesse satisfazer às exigências do BCE (Banco Central Europeu), o BCE ter-lhe-á cortado toda a possibilidade de financiamento, o que implicava, pelo menos na prática, a negação da autorização da atividade bancária. É que, a 30 de julho, soube-se que os prejuízos do BES referentes ao primeiro semestre de 2014 totalizavam a “módica” (?!) importância de 3.577,3 milhões de euros, sem contar os cerca de 3.000 milhões de euros, emprestados ao BESA. E o GES e o BES eram coisas totalmente diferentes!
E o Governo, que nada tinha a ver com o desenvolvimento da atividade de um Banco (privado) e que entendia que os erros de gestão do GES deveriam ser imputados unicamente a quem os cometeu, de 31 de julho a 3 de agosto (um domingo), aprovou dois decretos-lei sobre esta matéria, sendo o primeiro para proceder à transposição da respetiva diretiva europeia para o ordenamento jurídico português; e o segundo parece ter sido negociado por e-mail. E, no dia 3 à noite, o Governador explicou ao país “toda” (!) a situação e comunicou a decisão, tomada por ele com os colegas, o regulador, ou seja o CA do BdP, de extinguir o BES (o banco que alegadamente antes não tinha problemas). Em seu lugar, ficava a funcionar com nova administração um banco mau, denominado “BES”, que absorveria os ativos tóxicos e demais responsabilidades do antigo BES; e é criado um banco novo, denominado “Novo Banco”, gerido por novos administradores, alguns já conhecidos, com a absorção dos ativos não problemáticos – mais uma distinção de entidades. Os depositantes e demais clientes podiam trabalhar logo no dia seguinte com os mesmos balcões e sites, sem qualquer problema ou dano; e os contribuintes não teriam qualquer prejuízo. Os acionistas e credores de obrigações subordinadas ficariam no banco mau, bem como a família Espírito Santo e anteriores administradores. O único acionista do Novo Banco é o fundo de resolução criado em 2012, no âmbito da zona Euro, para obviar a situações similares, que, no caso português, é financiado pelos outros bancos, incluindo a pública CGD, com base no recente imposto sobre a banca, sendo o seu capital social de 4 mil e 900 milhões de euros, realizado de imediato com base nas provisões do fundo e num empréstimo contraído junto do Estado a partir da tranche cedida pela troika para efeitos da recapitalização dos bancos que a tal se candidatassem, no âmbito do PAEF. Também aqui o antigo BES se distinguiu sobranceiramente com a não necessidade de recurso a tal medida.
Cedo começou a saber-se que não foi o BdP que tomou sua sponte a famosa decisão, mas a  isso foi induzido pelo conselho de governadores de bancos centrais da Zona Euro sob a égide do BCE.
A ministra das finanças, questionada pela razão por que foi somente o Governador a comunicar a tal decisão, escudou-se na lei que dá tais competências ao regulador. Só que a lei fora preparada em cima da hora, à pressa e ad hoc. Também garantiu que o contribuinte nada teria a pagar, o que, não corresponde à realidade, como se demonstrou em tempo.
Também se fez a distinção entre os casos BES e BPN. As figuras públicas ligadas ao poder atual defendem que o BPN fora nacionalizado e que tal correu mal; para o BES foi encontrada uma solução, sem que fossem convocados os contribuintes e sem prejuízo para os clientes, nomeadamente os depositantes. Por seu turno, os opositores reclamam a condição de solução equivalente: há uma nacionalização indireta, com inevitáveis implicações nos contribuintes (quando muito proteladas no tempo!) e acrescentam que, em tempo, do BPN foram nacionalizados os prejuízos ficando os ativos não tóxicos a benefício da proprietária, a SLN (sociedade lusa de negócios). O partido socialista, acusando a má solução, responde à solução encontrada para o BPN com a inexistência, ao tempo, do fundo de resolução recentemente criado.
Também é de registar que o Governador do BdP se manifestou enganado e desobedecido pela administração do BES. E, ao ser questionado sobre o motivo por que deixou em funções o anterior PCA do BES, depois de saber das situações de infração, respondeu que não podia ultrapassar a lei. Efetivamente veio a saber-se que não se trata propriamente de lei, mas de jurisprudência com base em determinação do STA (Supremo Tribunal Administrativo), em 2005, segundo a qual só podem ser destituídos os administradores em caso de sentença condenatória transitada em julgado. Ora Salgado nem sequer era arguido. E desde 2005 ninguém suscitou qualquer processo legislativo sobre a matéria. Com consequência da inércia, assim se vai a confiança em empresas decisivas para a economia!  
Diz-se, ainda, que os reguladores – BdP, da atividade bancária, e CMVM (Comissão do Mercado de Valores Mobiliários), dos mercados de valores mobiliários e instrumentos financeiros derivados – parecem ter atuado nem sempre em sintonia e, por vezes, com críticas mútuas. Nada que se possa estranhar neste pobre país!
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Hoje, 12 de agosto, souberam-se mais novidades:
– Afinal, por decisão do BdP, a Tranquilidade, detida pela Espírito Santo Financial Group (ESFG), fica no banco ‘bom' porque fora dada como garantia ao BES. A empresa, em processo de venda, vai mesmo ficar no Novo Banco, apesar de a seguradora ser detida pela ESFG. Para tal valeu o facto de ter sido dada como colateral no dinheiro que a ESFG devia ter injetado no BES para este pagar dívida em papel comercial colocada em clientes de retalho do banco. A dúvida de clientes, investidores e eventuais compradores está esclarecida: o crédito do BES sobre a ESFG garantido pelo penhor financeiro da referida Seguradora é transferido para o Novo Banco. Assim, a venda da seguradora irá para o Novo Banco se ninguém vier a impugnar a decisão agora tomada pelo BdP, fundamentada na garantia prestada pela ESFG ao BES. Recorde-se que a ESFG pedira a proteção de credores.
O Novo Banco pode vir a assumir o pagamento de dívida emitida pelo GES até ao final do 1.º semestre de 2014, desde que documentalmente comprovada, apesar de a responsabilidade por esta ficar no “bad bank” (banco mau, BES). Em comunicado do BdP, pode ler-se que fica no ‘bad bank’ a responsabilidade sobre dívida emitida por empresas do GES, isto é, as obrigações, garantias, responsabilidades ou contingências assumidas na comercialização, intermediação financeira e distribuição de instrumentos de dívida emitidos por entidades que integram o GES no Banco Espírito Santo. Há, porém, uma exceção, podendo o Novo Banco “vir a assumir” o pagamento de parte da dívida subscrita até final do 1.º semestre deste ano.
– A injeção de emergência de liquidez no valor de 3 mil e 500 milhões de euros por parte do BdP no BES já foi devolvida pelo Novo Banco – apurou o Expresso junto de fontes ligadas ao processo. A operação, denominada ELA (Emergency Liquidity Assistance) na terminologia da política monetária europeia, serviu para acorrer às necessidades do BES no final de julho, antes da intervenção no banco. Assim, o Novo Banco recupera o que o BES perdera: acesso a liquidez do BCE. E, assim, os empréstimos de emergência, conhecidos através de uma ata do Banco de Portugal, são devolvidos.
 – BdP e CMVM enviaram documentação relevante para o MP (Ministério Público): a par das auditorias em curo, nomeadamente a auditoria forense pedida pelo BdP para verificar se houve responsabilidades individuais dos administradores/ diretores no cumprimento de normas da supervisão, chegaram ao Ministério Público vários indícios de irregularidades. E o BdP declarou, ainda, não deixar de transmitir tempestivamente toda a informação que seja, entretanto, obtida. Esquemas de financiamento fraudulentos são algumas das situações apontadas pelo supervisor quanto às matérias que podem suscitar ilícitos criminais e processos de contraordenação. Já a CMVM enviou, nos últimos anos, pelo menos 5 casos de indícios de crime de utilização de informação privilegiada e abuso de confiança envolvendo responsáveis do GES. Quatro deles, já noticiados, são relacionados com informação privilegiada envolvendo a EDP ou a REN, ora na última fase de privatização, quando os chineses entraram no capital de ambas, ora quando da estreia em bolsa da EDP Renováveis, em 2008; o 5.º corresponderá a um alegado abuso de confiança e crime de fidelidade – desrespeito de regras entre acionistas – e envolverá a “BES Vida”.
E assim se esfarela o poder político atrás da degradação do poder financeiro, para mal de todos!

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