No passado domingo, o XX do tempo comum do ano
litúrgico, o evangelho glosa o episódio conhecido como da Cananeia e que Gil
Vicente parafraseia num auto com a mesma designação.
Da leitura evangélica
Relata o Evangelho de Mateus (Mt 15,21-28) que Jesus saiu da área da Palestina, a evitar
eventual perseguição dos serventuários de Herodes Antipas, para os lados de
Tiro e Sídon, zona de uma das primeiras colónias de cananeus. Aí, deparou com
uma cananeia – Marcos (Mc 7,26) aponta-lhe
origem sírio-fenícia – que implora, confiante e humilde, a cura da filha
cruelmente atormentada pelo demónio. Perante o silêncio do Mestre, os
discípulos, incomodados, instam a que Ele a atenda.
Jesus replicou que fora unicamente enviado aos filhos
de Israel e, perante a insistência da cananeia, lança a metáfora de que não é
justo dar aos cachorrinhos o pão dos filhos. Porém, a mulher, concordando,
acrescenta que também os cachorrinhos comem as migalhas caídas da mesa dos
donos.
E o Mestre, enaltecendo a grande fé desta mulher
estrangeira, tida como pagã, satisfaz-lhe o pedido, passando a filha a ficar
totalmente curada a partir daquele momento.
É óbvio que a pretensa exclusão dos gentios do acesso
à fé é meramente aparente, já que, como vaticinara Simeão, Ele é a luz para se
revelar aos pagãos, a salvação preparada ao alcance de todos povos (cf Lc
2,30-31) – discurso que desembocará no
mandato evangélico, “Ide, doutrinai todas
a gentes… ensinando-as a observar tudo o que vos mandei” (cf Mt
28,19-20; Mc 16,15; Lc 24,47-48). No
entanto, a postura de Cristo assume um evidente caráter pedagógico: os
discípulos tinham de sofrer o incómodo de quem suplica, experimentar a
necessidade de serem solícitos intercessores, testemunhar o sentido da simplicidade
e perseverança de quem implora auxílio, apreciar a eloquência e a exemplaridade
da fé de quem, à partida, não teria a obrigação do ato de fé (em contraste com
as estéreis discussões dos fariseus), e verificar a pronta eficácia da graça
concedida. Por outro lado, como a caridade começa por casa, o regime de
inclusão obriga a cuidar dos mais vizinhos, neste caso, os filhos de Israel – é
esta a predominância da missão do Mestre – ao passo que o alargamento da
pregação a todos os povos será já a missão dos discípulos, a quem o Senhor
entregou o mandato, que os torna testemunhas de tudo quanto o Mestre lhes
ensinara, secundados pela presença contínua de Jesus e pela força do Espírito
Santo (cf Lc 24,48-49). E a missão estará cumprida quando todos os pobres comerem e ficarem saciados (cf Sl 22, 27) ou quando todos clamarem do íntimo e universalmente,
Vem, Senhor Jesus (cf Ap 22,20).
O texto vicentino
Este auto é elaborado
a rogo da “muito virtuosa e
nobre senhora dona Violante, Dona
Abadessa do muito louvado e santo convento do mosteiro de Odivelas. É o
único trabalho dramático vicentino e o que não corresponde a nenhum evento
ocorrido ou celebrado na corte portuguesa.
Resulta da devoção da
proponente e é baseado no Evangelho da
Cananea. Foi representado pela primeira vez em 1534 no referido mosteiro.
O auto, embora
apresente uma certa unidade, apresenta uma tetrapartição em suave devir.
Aparecem, em primeiro
lugar, em cena três pastoras que encarnam as alegorias das três leis: a lei da
Natureza (a pagã Silvestra), a lei da Escritura (a judia Hebreia) e a lei da
Graça (a cristã Veredina). Cada uma salienta o seu papel: a primeira vive na
serra - inacessível por causa do gado que nela pasce, múltiplo, bravo e disperso
– e tem uma função difícil, guardar esse gado que “de um Deus não fazem conta, senão correr e saltar”; a segunda
nasceu no monte Sinai e o gado que ela pasce “sempre o verás andar de pecado em pecado, de cativeiro em cativeiro”
e canta salmos e medita Jeremias e Isaías; e a terceira, sente-se enviada de “Um só Deus que no céu mora” e que se lembrou
“do que tinha prometido”. O diálogo das três leis conclui que chegara o Messias.
A seguir, Satanás e
Belzebu dialogam sobre as tentações com que, por ordem de Satanás, Belzebu tentara
sem êxito induzir Cristo a pecar.
Posteriormente, aparece
Cristo que ensina o “Pater Noster” aos
seis Apóstolos que O acompanham e de que se destacam os três mais íntimos
Tiago, Pedro e João, os quais discutiam o valor da oração e desejavam saber
como rezar. A oração é ensinada em dois momentos: o dos louvores (Santificado o
Teu nome, feita a Tua vontade); e o das petições (os pedidos do pão de cada
dia, do perdão e do auxílio na fuga da tentação).
A parte restante da peça
representa a história de uma Cananeia, estrangeira, cuja filha está possuída
pelo demónio, e que vem junto de Cristo a pedir a libertação daquela: “Senhor, filho de Davi, amercea-te de mi”.
“Senhor,
filho de Davi, amercea-te de mi”.
Perante uma oração de
súplica da Cananeia e as instâncias dos apóstolos, Cristo cede à vontade e à fé
exemplar da mulher, que declama no final: “Ajudai-me a dar louvores e graças
ao Redentor”. E o Mestre aproveita
o ensejo para dar a todos as instruções necessárias.
Assim, o tema visível
desta obra é o valor da oração, unindo-se assim a cena do Paster Noster à cena da Cananeia.
***
No entanto e sem menosprezo pelo tema enunciado, a
motivação temática que perpassa o auto não é estranha às vicissitudes que nos
últimos tempos afligem o dramaturgo que fica na História da nossa literatura
como o pai do teatro luso, não porque o tenha inventado de todo, mas por o ter dotado
de repertório escrito e elaborado em consonância com os valores religiosos e
humanistas da época, cheios de religiosidade, é certo, mas com o suficiente espírito
crítico.
A obra vicentina põe em causa toda a sociedade. No entanto,
a crítica que desfere contra distintos membros do clero e pregação das
indulgências, leva-o a incorrer na desconfiança da Cúria Romana e no incómodo à
piedade de Dom João III, o rei Piedoso, e da sua piedosíssima rainha consorte. E
Gil Vicente é excluído da corte, o que para ele constituiu um rude golpe, e não
estava claramente a salvo da Inquisição, cuja instituição o rei solicitara ao Sumo
Pontífice.
Assim, os cachorrinhos
referidos no Evangelho da Cananeia (a quem se aplica realmente a exclusão da
salvação, que no evangelho era apenas aparente) já não são apenas os gentios,
liderados por Silvestra, mas passaram
a ser também os judeus, assumidos por Hebreia, expulsos do Reino ou feitos
cristãos-novos. E até os que pertenciam à Lei da Graça correm sério risco de, à
face da práxis oficial, irem para as profundas do inferno. Por isso, alguns críticos
entendem razoavelmente que a Cananeia é a voz lancinante do próprio dramaturgo,
que representa todos os novos excluídos e clama por piedade: “Senhor, filho de Davi, amercea-te de mi”; e “Senhor, não hei de cansar, pois al não posso fazer; tu queiras-me
perdoar porque te hei de importunar, e Tu me hás de socorrer”.
***
Por aqui se nota que G. Vicente sustenta
literariamente os seus argumentos no recurso aos mais diversos tipos sociais e
alegóricos (pastores, negros, crianças, judeus, ciganas, raparigas, bruxas,
alcoviteiras e alcoviteiros, velhas praguejadoras, juízes, médicos, poetas,
padres, santos, patifes, parvos, deuses, demónios e sábios). No entanto, ainda
que pretenda ultrapassar as peculiaridades do seu mundo com as alegorias e
tipos, o seu contexto aponta para novos pactos que surgem do confronto entre
homens que podem apreender, também, a sua verdade através de outras mulheres e outros
homens tão ingénuos, espertos, injustiçados e afortunados como eles. À medida
que o mundo deixava de ser unicamente sua contraface celeste ou a palavra
divina, o quotidiano tornava-se cenário passível de experiências e
aprendizagens. Mostra o dramaturgo, materialmente humanista e formalmente medieval,
como agora mereciam uma adequada reflexão as atitudes humanas particulares.
Afinal, os homens e as suas ações já não eram tão secundarizados, como na Idade
Média, em relação a Deus, à Igreja ou à Natureza.
Neste Auto da Cananeia, G. Vicente aponta a solução
para os problemas do seu tempo através da hegemonia da Lei da Graça sobre
a Bíblia hebraica – livro de signos – e a Natureza – livro de imagens. Como
durante o Medievalismo a salvação era coletiva e as ações de cada homem
contavam pouco para ela, a questão da Graça não constituía o
centro do debate. No entanto, se o mundo e as ações humanas ganham relevo,
torna-se epistemologicamente necessária uma posição sobre a responsabilidade individual
dos homens. Essa problemática, dado o seu caráter epistemológico, ultrapassava as
fronteiras da Teologia e instalava-se na produção literária secular. É nesse
sentido que Hebreia, a Lei da
Escritura, se lamenta do seu gado, que “pasta
em mesa alheia”, e compara o seu atual rebanho às alcateias.
Veredina, a Lei da Graça, porta-voz de novo tempo,
sente que deve ter cuidado com Satanás, sempre a atacar. Contudo, Satanás surge
com um autoexame e reconhece que, apesar da “muita arte e descrição”, não vencera de todo nem Cristo, nem David
e agora está com medo de Lúcifer, seu chefe. Note-se que os nomes das personagens combinam
com os seus tipos: Silvestra, de silva, bosque, mata; Hebreia, de hebreu, monte
Sinai; e Veredina, de verdade, verdadeiramente digna.
Em outro plano, surge a Cananeia a implorar que a
filha endemoninhada seja salva por Cristo, mas apressa-se Belzebu a criticar as
preces da Cananeia e a tentar dissuadir os apóstolos de incentivar Cristo a
atendê-la, já que a cada um a sua sorte conforme ao seu nascimento, estado e
condição, ao que S. Pedro retruca com firmeza. Por si, a Cananeia persiste na súplica
a Cristo por sua filha, salientando o seu poder e liberalidade para com todos:
“Confesso
que sou cadela / E de cadela nasci / E sou mais perra que ela. / E porém as
cachorrinhas / Com os cães desse teor, / E os gatos, e galinhas, / Se fartam
das migalhinhas / da mesa de seu senhor, / Quanto mais os teus manjares /Que és
padre das companhas, / Fartas montes e montanhas / E desertos e lugares / Até
bichos e aranhas! / Com glória, mui sem trabalho / Fartas os mares e rios, /E
as ervas de rocios, / e os lírios de orvalho, /nos lugares mais sombrios /…
Também, ante a imprevisibilidade do mundo, muitos
no Renascimento buscavam orientação na fé em operações
mágicas. O sucesso do neoplatonismo contribuía, de certo modo, para que o mundo
aparecesse simultaneamente luminoso e obscuro. A superstição, a cartomancia, a
nigromancia e a crença na astrologia ocupavam significativo lugar. Como homem do
seu tempo, G. Vicente, pela “imaginação” e “fantasia” no Auto da Cananeia ,
reconhece uma diferença qualitativa entre o passado e o presente. No entanto, a
superioridade do passado podia ser revivida, no presente, através da Lei
da Graça, capaz de
redimir a história humana, embora com a exigência de determinadas atitudes.
Entre elas, vinha a maneira correta de se relacionar com Deus por meio da
oração e, acentuando a subjetividade inerente ao homem moderno, propunha-se
periodicamente um mergulho na interioridade, um ato de contrição. A sinceridade
e o empenho eram fundamentais para o sucesso da oração.
Estava em marcha o devir do homem novo que lei nenhuma
nem tribunal algum podiam travar.
Referências
Barreiros, J. (1982).História da Literatura Portuguesa. Vol.
I. Séc. XII-XVIII. Braga: Livraria Editora Pax L.da
Braga Teófilo. História
da Literatura Portuguesa II. Ed. N.º 409042/3956.Mem Martins: Publicações
Europa América.
Eyler, Flávia Schlee. “Gil Vicente e o mundo em
Desconcerto”. In Revista Semear 8.
PUC-RIOUFRJ. [em linha] http://www.letras.puc-rio.br/unidades%26nucleos/catedra/revista/8Sem_05.html,
ac agosto 2014.
Mendes, João (1981). Literatura portuguesa I. 2.ª ed. Lisboa: Editorial Verbo.
Rodrigues, M. Idalina Resina (1982). Textos Literários Auto da Barca do Inferno
de Gil Vicente. Lisboa: Editorial Comunicação.
VICENTE, Gil (1965). Obras de Gil Vicente. Porto:
Lello & Irmãos – Editores.
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