segunda-feira, 18 de agosto de 2014

A Cananeia

No passado domingo, o XX do tempo comum do ano litúrgico, o evangelho glosa o episódio conhecido como da Cananeia e que Gil Vicente parafraseia num auto com a mesma designação.

Da leitura evangélica 
Relata o Evangelho de Mateus (Mt 15,21-28) que Jesus saiu da área da Palestina, a evitar eventual perseguição dos serventuários de Herodes Antipas, para os lados de Tiro e Sídon, zona de uma das primeiras colónias de cananeus. Aí, deparou com uma cananeia – Marcos (Mc 7,26) aponta-lhe origem sírio-fenícia – que implora, confiante e humilde, a cura da filha cruelmente atormentada pelo demónio. Perante o silêncio do Mestre, os discípulos, incomodados, instam a que Ele a atenda.
Jesus replicou que fora unicamente enviado aos filhos de Israel e, perante a insistência da cananeia, lança a metáfora de que não é justo dar aos cachorrinhos o pão dos filhos. Porém, a mulher, concordando, acrescenta que também os cachorrinhos comem as migalhas caídas da mesa dos donos.
E o Mestre, enaltecendo a grande fé desta mulher estrangeira, tida como pagã, satisfaz-lhe o pedido, passando a filha a ficar totalmente curada a partir daquele momento.
É óbvio que a pretensa exclusão dos gentios do acesso à fé é meramente aparente, já que, como vaticinara Simeão, Ele é a luz para se revelar aos pagãos, a salvação preparada ao alcance de todos povos (cf Lc 2,30-31) – discurso que desembocará no mandato evangélico, “Ide, doutrinai todas a gentes… ensinando-as a observar tudo o que vos mandei” (cf Mt 28,19-20; Mc 16,15; Lc 24,47-48). No entanto, a postura de Cristo assume um evidente caráter pedagógico: os discípulos tinham de sofrer o incómodo de quem suplica, experimentar a necessidade de serem solícitos intercessores, testemunhar o sentido da simplicidade e perseverança de quem implora auxílio, apreciar a eloquência e a exemplaridade da fé de quem, à partida, não teria a obrigação do ato de fé (em contraste com as estéreis discussões dos fariseus), e verificar a pronta eficácia da graça concedida. Por outro lado, como a caridade começa por casa, o regime de inclusão obriga a cuidar dos mais vizinhos, neste caso, os filhos de Israel – é esta a predominância da missão do Mestre – ao passo que o alargamento da pregação a todos os povos será já a missão dos discípulos, a quem o Senhor entregou o mandato, que os torna testemunhas de tudo quanto o Mestre lhes ensinara, secundados pela presença contínua de Jesus e pela força do Espírito Santo (cf Lc 24,48-49). E a missão estará cumprida quando todos os pobres comerem e ficarem saciados (cf Sl 22, 27) ou quando todos clamarem do íntimo e universalmente, Vem, Senhor Jesus (cf Ap 22,20).

O texto vicentino
Este auto é elaborado a rogo da “muito virtuosa e nobre senhora dona Violante, Dona Abadessa do muito louvado e santo convento do mosteiro de Odivelas. É o único trabalho dramático vicentino e o que não corresponde a nenhum evento ocorrido ou celebrado na corte portuguesa.
Resulta da devoção da proponente e é baseado no Evangelho da Cananea. Foi representado pela primeira vez em 1534 no referido mosteiro.
O auto, embora apresente uma certa unidade, apresenta uma tetrapartição em suave devir.
Aparecem, em primeiro lugar, em cena três pastoras que encarnam as alegorias das três leis: a lei da Natureza (a pagã Silvestra), a lei da Escritura (a judia Hebreia) e a lei da Graça (a cristã Veredina). Cada uma salienta o seu papel: a primeira vive na serra - inacessível por causa do gado que nela pasce, múltiplo, bravo e disperso – e tem uma função difícil, guardar esse gado que “de um Deus não fazem conta, senão correr e saltar”; a segunda nasceu no monte Sinai e o gado que ela pasce “sempre o verás andar de pecado em pecado, de cativeiro em cativeiro” e canta salmos e medita Jeremias e Isaías; e a terceira, sente-se enviada de “Um só Deus que no céu mora” e que se lembrou “do que tinha prometido”. O diálogo das três leis conclui que chegara o Messias.
A seguir, Satanás e Belzebu dialogam sobre as tentações com que, por ordem de Satanás, Belzebu tentara sem êxito induzir Cristo a pecar.
Posteriormente, aparece Cristo que ensina o “Pater Noster” aos seis Apóstolos que O acompanham e de que se destacam os três mais íntimos Tiago, Pedro e João, os quais discutiam o valor da oração e desejavam saber como rezar. A oração é ensinada em dois momentos: o dos louvores (Santificado o Teu nome, feita a Tua vontade); e o das petições (os pedidos do pão de cada dia, do perdão e do auxílio na fuga da tentação).
A parte restante da peça representa a história de uma Cananeia, estrangeira, cuja filha está possuída pelo demónio, e que vem junto de Cristo a pedir a libertação daquela: “Senhor, filho de Davi, amercea-te de mi”.  “Senhor, filho de Davi, amercea-te de mi”.
Perante uma oração de súplica da Cananeia e as instâncias dos apóstolos, Cristo cede à vontade e à fé exemplar da mulher, que declama no final: “Ajudai-me a dar louvores e graças ao Redentor”. E o Mestre aproveita o ensejo para dar a todos as instruções necessárias.
Assim, o tema visível desta obra é o valor da oração, unindo-se assim a cena do Paster Noster à cena da Cananeia.
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No entanto e sem menosprezo pelo tema enunciado, a motivação temática que perpassa o auto não é estranha às vicissitudes que nos últimos tempos afligem o dramaturgo que fica na História da nossa literatura como o pai do teatro luso, não porque o tenha inventado de todo, mas por o ter dotado de repertório escrito e elaborado em consonância com os valores religiosos e humanistas da época, cheios de religiosidade, é certo, mas com o suficiente espírito crítico.
A obra vicentina põe em causa toda a sociedade. No entanto, a crítica que desfere contra distintos membros do clero e pregação das indulgências, leva-o a incorrer na desconfiança da Cúria Romana e no incómodo à piedade de Dom João III, o rei Piedoso, e da sua piedosíssima rainha consorte. E Gil Vicente é excluído da corte, o que para ele constituiu um rude golpe, e não estava claramente a salvo da Inquisição, cuja instituição o rei solicitara ao Sumo Pontífice.
Assim, os cachorrinhos referidos no Evangelho da Cananeia (a quem se aplica realmente a exclusão da salvação, que no evangelho era apenas aparente) já não são apenas os gentios, liderados por Silvestra, mas passaram a ser também os judeus, assumidos por Hebreia, expulsos do Reino ou feitos cristãos-novos. E até os que pertenciam à Lei da Graça correm sério risco de, à face da práxis oficial, irem para as profundas do inferno. Por isso, alguns críticos entendem razoavelmente que a Cananeia é a voz lancinante do próprio dramaturgo, que representa todos os novos excluídos e clama por piedade: Senhor, filho de Davi, amercea-te de mi”; e “Senhor, não hei de cansar, pois al não posso fazer; tu queiras-me perdoar porque te hei de importunar, e Tu me hás de socorrer”.
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Por aqui se nota que G. Vicente sustenta literariamente os seus argumentos no recurso aos mais diversos tipos sociais e alegóricos (pastores, negros, crianças, judeus, ciganas, raparigas, bruxas, alcoviteiras e alcoviteiros, velhas praguejadoras, juízes, médicos, poetas, padres, santos, patifes, parvos, deuses, demónios e sábios). No entanto, ainda que pretenda ultrapassar as peculiaridades do seu mundo com as alegorias e tipos, o seu contexto aponta para novos pactos que surgem do confronto entre homens que podem apreender, também, a sua verdade através de outras mulheres e outros homens tão ingénuos, espertos, injustiçados e afortunados como eles. À medida que o mundo deixava de ser unicamente sua contraface celeste ou a palavra divina, o quotidiano tornava-se cenário passível de experiências e aprendizagens. Mostra o dramaturgo, materialmente humanista e formalmente medieval, como agora mereciam uma adequada reflexão as atitudes humanas particulares. Afinal, os homens e as suas ações já não eram tão secundarizados, como na Idade Média, em relação a Deus, à Igreja ou à Natureza.
Neste Auto da Cananeia, G. Vicente aponta a solução para os problemas do seu tempo através da hegemonia da Lei da Graça  sobre a Bíblia hebraica – livro de signos – e a Natureza – livro de imagens. Como durante o Medievalismo a salvação era coletiva e as ações de cada homem contavam pouco para ela, a questão da Graça não constituía o centro do debate. No entanto, se o mundo e as ações humanas ganham relevo, torna-se epistemologicamente necessária uma posição sobre a responsabilidade individual dos homens. Essa problemática, dado o seu caráter epistemológico, ultrapassava as fronteiras da Teologia e instalava-se na produção literária secular. É nesse sentido que Hebreia, a Lei da Escritura, se lamenta do seu gado, que “pasta em mesa alheia”, e compara o seu atual rebanho às alcateias.
Veredina, a Lei da Graça, porta-voz de novo tempo, sente que deve ter cuidado com Satanás, sempre a atacar. Contudo, Satanás surge com um autoexame e reconhece que, apesar da “muita arte e descrição”, não vencera de todo nem Cristo, nem David e agora está com medo de Lúcifer, seu chefe.  Note-se que os nomes das personagens combinam com os seus tipos: Silvestra, de silva, bosque, mata; Hebreia, de hebreu, monte Sinai; e Veredina, de verdade, verdadeiramente digna.
Em outro plano, surge a Cananeia a implorar que a filha endemoninhada seja salva por Cristo, mas apressa-se Belzebu a criticar as preces da Cananeia e a tentar dissuadir os apóstolos de incentivar Cristo a atendê-la, já que a cada um a sua sorte conforme ao seu nascimento, estado e condição, ao que S. Pedro retruca com firmeza. Por si, a Cananeia persiste na súplica a Cristo por sua filha, salientando o seu poder e liberalidade para com todos:
“Confesso que sou cadela / E de cadela nasci / E sou mais perra que ela. / E porém as cachorrinhas / Com os cães desse teor, / E os gatos, e galinhas, / Se fartam das migalhinhas / da mesa de seu senhor, / Quanto mais os teus manjares /Que és padre das companhas, / Fartas montes e montanhas / E desertos e lugares / Até bichos e aranhas! / Com glória, mui sem trabalho / Fartas os mares e rios, /E as ervas de rocios, / e os lírios de orvalho, /nos lugares mais sombrios /…
Também, ante a imprevisibilidade do mundo, muitos no Renascimento buscavam orientação na fé em operações mágicas. O sucesso do neoplatonismo contribuía, de certo modo, para que o mundo aparecesse simultaneamente luminoso e obscuro. A superstição, a cartomancia, a nigromancia e a crença na astrologia ocupavam significativo lugar. Como homem do seu tempo, G. Vicente, pela “imaginação” e “fantasia” no Auto da Cananeia , reconhece uma diferença qualitativa entre o passado e o presente. No entanto, a superioridade do passado podia ser revivida, no presente, através da Lei da Graça, capaz de redimir a história humana, embora com a exigência de determinadas atitudes. Entre elas, vinha a maneira correta de se relacionar com Deus por meio da oração e, acentuando a subjetividade inerente ao homem moderno, propunha-se periodicamente um mergulho na interioridade, um ato de contrição. A sinceridade e o empenho eram fundamentais para o sucesso da oração.
Estava em marcha o devir do homem novo que lei nenhuma nem tribunal algum podiam travar.
Referências
Barreiros, J. (1982).História da Literatura Portuguesa. Vol. I. Séc. XII-XVIII. Braga: Livraria Editora Pax L.da
Braga Teófilo. História da Literatura Portuguesa II. Ed. N.º 409042/3956.Mem Martins: Publicações Europa América.
Eyler, Flávia Schlee. “Gil Vicente e o mundo em Desconcerto”. In Revista Semear 8. PUC-RIOUFRJ. [em linha] http://www.letras.puc-rio.br/unidades%26nucleos/catedra/revista/8Sem_05.html, ac agosto 2014.
Mendes, João (1981). Literatura portuguesa I. 2.ª ed. Lisboa: Editorial Verbo.
Rodrigues, M. Idalina Resina (1982). Textos Literários Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente. Lisboa: Editorial Comunicação.

VICENTE, Gil (1965). Obras de Gil Vicente. Porto: Lello & Irmãos – Editores.

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