O 14 de agosto é para os portugueses
o memorável dia da Batalha de Aljubarrota, em 1385, travada entre o exército
invasor castelhano e o exército português, comandado por D. João I e D. Nuno Álvares
Pereira, hoje S. Nuno de Santa Maria. Em sua memória D. João mandou edificar o
Mosteiro da Batalha, dedicado a Santa Maria da Vitória, cuja comemoração se
fazia neste dia de agosto. Por seu turno, o Exército Português celebra hoje o dia
da sua Infantaria.
Estando no olvido as contendas
com o território castelhano e diafanizadas as quezílias entre os dois Estados
ibéricos, queria, embora sem negar a vertente nacional de opções, apresentar um
exemplo dos malefícios da tentação hegemónica da contemporaneidade, tão
hegemónica que pretendia absurdamente depurar o mundo de todas as raças,
reservando o exclusivo existencial para a dita raça ariana.
***
Do
martírio de Maximiliano Kolbe no campo de Auschwitz, distrito de Cracóvia,
muito se sabe e comenta. Porém, é quase desconhecida a sua vida de lúcidos e ousados
empreendimentos apostólicos, fruto de um espírito de largos horizontes, eivado
de extremosa devoção à Virgem Maria.
A Polónia
de fins do séc. XIX e início do XX, como toda a Europa e América, achava-se em
plena prosperidade, aliada ao laicismo de mentes e costumes. A sociedade deliciava-se
no esplendor eufórico da Belle Époque,
de fartura e conforto, mais preocupada com o gozo da vida do que com o atinente
à Religião. É neste ambiente que nasce Raimundo Kolbe, a 8 de janeiro de 1894,
na cidade polaca de Zduńska Wola, recebendo no mesmo dia o Batismo.
Os pais,
Júlio Kolbe e Maria Dabrowska, eram cristãos genuínos e fiéis devotos da Virgem
Maria. Dos seus cinco filhos, dois faleceram na infância e os outros abraçaram
a vida religiosa.
Criança viva
e travessa, Raimundo recebe, certo dia, uma repreensão materna que lhe marca a
vida, tornando-se devoto de Maria, aos 10 anos. Tivera uma visão da Mãe de
Deus, que mostrava em Suas mãos duas coroas, uma branca e outra vermelha.
Sorrindo maternalmente, ter-lhe-á perguntado qual escolhia: a branca, da
perseverança na castidade; e a vermelha, do martírio. Raimundo optou por ambas.
Surgiu-lhe, então, por graça da Imaculada Conceição de Maria, a vocação à vida religiosa,
na modalidade de franciscano; e, aos 13 anos, começou os estudos no seminário
menor dos frades conventuais, em Lwóv, junto com seu irmão mais velho, o Francisco.
Na escola, gostava de matemática,
ciências e estratégias militares. Xadrez era o jogo preferido. Desenvolveu
projetos de foguetes, montava rádios e outros aparelhos. Mas, no início da
guerra, viu o pai decidir-se a combater contra os russos, o que lhe dará prisão
e enforcamento, o que Raimundo soube somente em 1919 e pelo que a mãe se
recolheu a um convento beneditino.
Aos 16
anos, foi admitido no noviciado, escolhendo o nome de Maximiliano, em honra do grande
mártir africano – hoje opção encarada como prenúncio do seu futuro.
Como o pai, Raimundo sonha defender
a Polónia, quer lutar pela pátria, defender seus irmãos. E, antes de entrar no
noviciado, em 1910, entra em crise vocacional. A dúvida persegue-o a tal ponto
que decide não só deixar a Ordem Franciscana, como convence Francisco, seu
irmão, a ir com ele. Estavam prontos para conversar com o reitor, quando ambos
recebem uma visita inesperada. Era a mãe, Maria Dabroska, que contava para os
filhos que também o irmão mais novo, o José, entraria no convento. Eles, vendo
nisto um sinal do Alto, optam pela vida consagrada e, a partir deste dia,
Maximiliano canaliza as suas forças e estratégias militares para “conquistar”
almas para o reino de Deus.
No ano
seguinte, emitiu votos simples. Mercê da sua privilegiada inteligência,
decidiram os superiores mandá-lo para Roma, para prosseguir os estudos no
Colégio Seráfico Internacional dos franciscanos e, depois, cursar filosofia na
Universidade Gregoriana. Apesar da objeção que apresentou pelo facto de ouvir
falar da dificuldade em se manter a castidade em Roma, lá marchou em nome da
santa obediência. E, completados os estudos, fez a sua profissão solene a 1 de
novembro de 1914, acrescentando ao seu nome religioso o de Maria.
Em Roma,
Maximiliano Maria Kolbe chocou-se com a insolência dos ataques dos inimigos da
Igreja, sem proporcionada resposta dos católicos. Decidiu-se então pela entrada
na polémica ainda antes da ordenação presbiteral. Reunindo em torno de si seis
condiscípulos, fundou, em 1917, a associação apostólica “Milícia de Maria
Imaculada”, cujos estatutos enunciavam como objetivos primordiais: a conversão
dos pecadores, inclusive dos inimigos da Igreja, e a santificação de todos os
seus membros, sob a proteção de Maria Imaculada. Nela admitiu apenas jovens
destemidos e verdadeiramente dispostos a acompanhá-lo nessa missão, com o
designativo de Cavaleiros de Vanguarda.
Nas atas
da sua ordenação sacerdotal, a 28 de abril de 1918, ficou bem gravada a sua
sede de almas. Na manhã seguinte, quis celebrar a primeira Missa no altar da
Madonna del Miraccolo, na igreja de Sant'Andrea delle Fratte, onde se dera o
notável episódio com Afonso Maria Ratisbonne, em 1842: ante a aparição da
Virgem, ajoelhara-se judeu e levantara-se católico, numa conversão miraculosa e
instantânea. E, na agenda das Missas dos primeiros dias de sacerdote, o padre
Kolbe escreveu que queria celebrar o Santo Sacrifício para “impetrar a conversão
dos pecadores e a graça de ser apóstolo e mártir”.
Voltando
à Polónia em 1919, esteve internado num sanatório devido a problemas de saúde.
Logo que se restabeleceu, fundou o jornal mensal da sua associação, Cavaleiro da Imaculada, colocando o progresso
técnico em matéria gráfica, ao serviço da fé. Na véspera do lançamento do
mensário, reuniu operários, colaboradores e redatores – ao todo 327 pessoas –
que passaram o dia em oração e oração, organizando à noite uma piedosa vigília
de Adoração ao Santíssimo Sacramento e de oração à Santíssima Virgem, para que
abençoassem esse empreendimento. Na noite seguinte, as rotativas imprimiram o
primeiro número do periódico, filho dessas orações. Grande impulso conheceu a
obra em 1927, quando o príncipe João Drucko-Lubecki cedeu ao Padre Maximiliano
um terreno situado a 40 quilómetros de Varsóvia, onde o religioso começou a
construir uma Niepokalanów ou Cidade de Maria. Planeava edificar um enorme
convento com novas instalações para a sua obra de imprensa. Ao dinheiro Maria havia
de prover, já que a obra era dela e de seu Filho.
Assim, em
1939, o jornal tinha já a tiragem de um milhão de exemplares, e a ele se haviam
juntado outros dezassete periódicos de menor porte, além de uma emissora radiofónica.
A Cidade de Maria contava com 762 habitantes, sendo 13 sacerdotes, 18 noviços,
527 irmãos leigos, 122 seminaristas menores e 82 candidatos ao sacerdócio. Nela
habitavam também médicos, dentistas, agricultores, mecânicos, alfaiates,
construtores, impressores, jardineiros e cozinheiros, além de um corpo de
bombeiros.
O que
alimentava o dinamismo da obra era a piedade que incutia nos colaboradores. Sua
mola propulsora era o amor militante a Maria Imaculada e à Eucaristia. Neste
Sacramento, residia a fonte da fecundidade da ação e edificação, pelo que instituiu
a Adoração Perpétua em Niepokalanów, e ele mesmo iniciava todos os trabalhos
com um ato de adoração eucarística.
Em sua
ânsia de expandir por todo o orbe a sua obra de evangelização, decidiu fazer
uma incursão pelo Oriente, pois queria editar a sua revista nos mais diversos
idiomas para atingir as almas de todo o globo, aspirando mesmo a ter uma Cidade
de Maria em cada país. Conseguiu fundar uma em Nagasaki, no Japão. Em 1930, a
Niepokalanów japonesa dispunha já de tipografia onde foram impressos os
primeiros dez mil exemplares de “Cavaleiro da Imaculada” no idioma dos
samurais. E lá se mantém a obra com trabalhadores nativos e muitos sacerdotes.
Mais
tarde, antes dos desastres da Segunda Grande Guerra, contou a seus religiosos
uma graça mística que recebera em terras nipónicas. No refeitório da Cidade de
Maria, depois de um jantar, disse-lhes que ia morrer e que eles iam ficar, que
lhe fora prometido o paraíso com toda a segurança, quando estava no Japão.
A eclosão
da Segunda Guerra Mundial, em 1939, deixou a Cidade de Maria muito exposta a
riscos, pois situava-se nas imediações da estrada de Potsdam a Varsóvia, rota
provável de provável invasão nazi. Tendo a prefeitura de Varsóvia ordenado a
pronta evacuação da zona, Maximiliano conseguiu, não obstante, um lugar seguro
para todos os irmãos e permaneceu ali com cinquenta dos seus colaboradores mais
imediatos. Em setembro, as tropas invasoras levaram-nos presos para Amtitz.
Porém, na festa da Imaculada, a 8 de dezembro, foram todos libertados e
voltaram para a sua Niepokalanów, transformando-a em refúgio e hospital para
feridos de guerra, prófugos e judeus.
Retomaram
também o labor apostólico, pois os invasores permitiram ao padre Kolbe
continuar com suas publicações, à cata de pretexto para lhe acabar com o
apostolado. Com grande coragem, escreveu ele no último número de Cavaleiro da
Imaculada, as seguintes palavras, de admirável honestidade intelectual e
integridade de convicções:
“Ninguém no mundo pode mudar a
verdade. O que podemos fazer é procurá-la e servi-la quando a tenhamos
encontrado. O conflito real de hoje é um conflito interno. Mais além dos
exércitos de ocupação e das hecatombes dos campos de extermínio, há dois inimigos
irreconciliáveis no mais profundo de cada alma: o bem e o mal, o pecado e o
amor. De que nos adiantam vitórias nos campos de batalha, se somos derrotados
no mais profundo de nossas almas?”.
A
propósito disso, em fevereiro de 1941, a Gestapo irrompeu na Cidade de Maria e
levou presos o Kolbe e outros quatro frades, os mais anciãos. Na prisão de
Pawiak, em Varsóvia, foi submetido a injúrias e vexações e, depois, trasladado
para o campo de Auschwitz.
Começaram
para o mártir as estações de sua via crucis.
Passou a primeira noite numa sala com outros 320 prisioneiros. Na manhã
seguinte, foram desnudados, lavados com jactos de água gelada, recebendo cada
qual uma jaqueta com o número. Coube-lhe o 16.670. Quando o oficial viu o seu
hábito de religioso, ficou irritado. Arrancando-lhe violentamente do pescoço o
Crucifixo, gritou-lhe, “E tu acreditas
nisto?” Ante a categórica resposta afirmativa, deu-lhe uma “valente”
bofetada! Por três vezes repetiu a pergunta e por três vezes o religioso
confessou sua fé, recebendo o mesmo ultraje. A exemplo dos Apóstolos, São
Maximiliano dava graças a Deus por ser digno de sofrer por Cristo: “Eles saíram da sala do Grande Conselho, cheios de alegria, por
terem sido achados dignos de sofrer afrontas pelo nome de Jesus” (At 5,41). A Virgem Maria não o abandonou um instante sequer.
Ao entrar
no campo de concentração, os guardas faziam revista minuciosa as prisioneiros e
tiravam-lhes todos os objetos pessoais. Entretanto, o soldado que revistou o
padre Kolbe devolveu-lhe o rosário, dizendo, “Tome o seu rosário. E vá lá para
dentro”! – o que o padre entendeu como sorriso de Nossa Senhora a dizer-lhe que
estaria sempre com ele.
São conhecidos
os demais episódios que se deram no campo do extermínio: o comportamento do franciscano,
a infatigável atividade apostólica em cada bloco para onde era mandado, etc.
No final
de julho de 1941, foi transferido para o Bloco 14, cujos prisioneiros faziam
trabalhos agrícolas. Tendo um deles fugido, dez dos outros, tirados à sorte,
foram condenados ao “bunker da
morte”: um subterrâneo de pequenas dimensões onde eram jogados desnudos e permaneciam
sem bebida e sem alimento à espera da morte. Ante o desespero daqueles
infelizes, o padre Maximiliano ofereceu-se para ficar em lugar de um deles, pai
de família, o que foi aceite pronta e friamente. O ódio dos esbirros ao
religioso era notório, mas ficaram estupefactos ao verificarem até onde chega a
coragem, a fortaleza e o heroísmo de um padre católico, cuja fisionomia revelava
um varão na força do termo. Sem dúvida, movia-o a caridade autêntica para com o
conterrâneo, mas outra razão meritória o levou a tomar tal decisão: o ensejo de
ajudar aqueles condenados a terem uma boa morte, salvando as suas almas.
Fechado o
bunker, ficava para sempre cortado
para eles o contacto com o exterior. Naquelas terríveis horas, sem outra
expectativa que a da morte, tratava-se de cada qual pôr em ordem a consciência.
Perante o medo da morte, do juízo divino, do sofrimento e na tentação de
desespero, é natural que fosse entendida como privilegio a companhia de um sacerdote
santo! Graças a ele, do bunker da
morte se fez capela de oração e de cântico, embora com vozes cada dia mais
débeis. Três semanas depois, restavam vivos somente quatro. As autoridades, julgando
prolongar-se demasiado a situação, decidiram aplicar-lhes a injeção letal de
ácido muriático.
Kolbe foi
o último a morrer naquele subterrâneo pavoroso. Estendeu espontaneamente o
braço à injeção. Momentos depois, um funcionário do campo encontrou-o morto “com os olhos abertos e a cabeça inclinada. O seu rosto, sereno
e belo, estava radiante”. Era o dia 14 de agosto de 1941, véspera da
Assunção de Maria, assimilada ao Cristo triunfante da morte.
A 10 de
outubro de 1982, na Praça de São Pedro, a multidão de mais de 200 mil pessoas
ouvia o Papa polaco declarar mártir este sacerdote franciscano, que não só morreu
para salvar uma vida, mas sobretudo vivera para salvar muitas almas – ele que
jamais se cansava de dizer: “Não tenhais medo de amar
demasiado a Imaculada; jamais poderemos igualar o amor que teve por Ela o
próprio Jesus: e imitar Jesus é nossa santificação”.
Como
afirmou João Paulo II ao canonizá-lo, “a inspiração de toda a sua vida foi a
Imaculada, a quem confiava o seu amor a Cristo e o seu desejo de martírio”.
Referências: http://pt.wikipedia.org/wiki/Mil%C3%ADcia_da_Imaculada,
ac agosto 2014; Leite,
J.; Coelho, A. (2005). Santos de Todos os Dias. Vol. de julho. Matosinhos: Quid
novi; Sacra Congregatio pro Cultu Divino (1989). Liturgia das Horas, VI.
Coimbra: Gráfica de Coimbra.
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