Decorria, em casa de Caius Iulius Caesar,
no dia 1 de maio do ano 62 a.C., a festa da Bona Dea (Boa deusa), uma orgia báquica,
reservada às mulheres. A responsabilidade da celebração era de Pompeia Sula, a segunda mulher de Júlio
César, pelos vistos, uma mulher bem jovem e muito bela.
Sucede que Publius Clodius Pulcher,
jovem rico e atrevido, que estava apaixonado por Pompeia, não resistiu: disfarçou-se
de tocadora de lira e entrou clandestinamente na festa, na esperança de chegar
junto de Pompeia. Porém, foi descoberto por Aurélia, mãe de César, sem que
tivesse conseguido os seus intentos.
Quase de imediato, todos os romanos passaram a conhecer a peripécia e César
decretou o divórcio de Pompeia, de que informou o senado. Mas César não ficou
contra Publius Clodius, chamado a depor
como testemunha em tribunal. Pelo contrário, disse que nada tinha, nem nada
sabia contra o putativo sacrílego adúltero.
Foi o espanto geral entre os senadores: “Então porque te divorciaste da tua
mulher?”.
A resposta tornou-se famosa: “A mulher de César deve estar acima de
qualquer suspeita”.
Esta frase deu origem ao provérbio, cujo texto é
geralmente traduzido do modo seguinte: “À mulher de César não basta ser honesta, deve também parecer
honesta”.
A expressão cruzou séculos e milénios
e tem sido aplicada às mais diversas situações, desde as relações amorosas até à
higiene de restaurantes e imparcialidade em empresas e provimento em lugares
políticos. Os motivos do tempo e da generalização constituem razão bastante
para justificar uma reflexão sobre a frase, o autor, o contexto e a aplicação
na atualidade.
O autor é um dos homens mais
conhecidos da História. Jurista, orador, sacerdote, escritor, general e político, César era também muito
famoso pelos casos amorosos que mantinha com as esposas de seus adversários
políticos.
Por haver sido acusado, na
juventude, de ter tido relação homossexual com o rei Nicomedes, para garantir o
apoio da Bitínia numa expedição romana – mentira explorada pelos adversários
durante décadas – César seguiu o conselho da extremosa mãe, Aurélia, de
responder aos detratores seduzindo-lhes as esposas pública e notoriamente, o
que fazia com êxito.
Para lá desse seu tique de sedutor,
convém esclarecer que César teve várias esposas (Cornélia, Pompeia, Calpúrnia),
o que possibilitou que haja uma outra versão sobre a origem do provérbio. Segundo
a história, César manteve um caso amoroso com Cleópatra em Alexandria, momento
em que terá encarregado um aliado de voltar a Roma e espalhar o boato de que
Calpúrnia o vinha traindo. Contra o argumento do aliado de que isso era mentira
César foi enfático na ordem de divulgação do boato. Alguns meses depois,
retornando a Roma, César entrou em casa, chamou pela esposa, a quem informou de
que pretendia o divórcio. Tendo Calpúrnia indagado o motivo, retorquiu: “porque
dizem que me vens traindo”. A esposa fiel argumentou que isso era não era verdade.
Como resposta recebeu a afirmativa que “à
mulher de César não basta ser honesta, também tem de parecer honesta”.
Ninguém pensaria que sobre o
general que gritou a ordem de passagem do Rubicão com o “Alea iacta est”, ao entrar em Roma, de normal cabeleira, com a
coroa de louros, os soldados que o transportavam em ombros bradassem para os
lados: Cavete, cives, uxores, moechum
calvum portamus – Guardai, ó cidadãos, as vossas esposas, que nós transportamos
um careca filógino.
***
Independentemente de qual seja a sua
verdadeira origem, o caso mostra duas facetas. A verdade, mesmo conhecida, foi
ignorada em prol das aparências; e os motivos que geraram a frase foram
indignos.
Num mundo que hipervaloriza a
imagem e as aparências – embora hipocritamente apregoe que “o ser” é mais
importante que “o parecer” e insista tanto na necessidade de transparência –
facilmente se explicam os motivos por que a sentença ganhou popularidade.
Por outro lado, por mais evidentes
que sejam os defeitos e transgressões dos varões, a condição e os erros das mulheres
são mais apontados histórica e popularmente. Assim, em caso de adultério (em
que evidentemente há a cooperação homem/mulher) só a mulher é que era condenada
até à lapidação; pode usar-se à vontade a expressão “homem público”, mas a correspondente
feminina “mulher pública” tem conotação negativa; e pode dizer-se “puto” de um
menino, mas seria ultrajante aplicar a forma feminina a uma menina. Até há pouco
tempo só se utilizava a palavra designativa do/a “profissional” de prostituição
no feminino. E, para elogiar determinadas mulheres da política, se dizia que
esta ou aquela era o “Cavaco de Saias”.
E note-se que se exige que a
mulher de César seja e pareça honesta, mas o mesmo não se exige a César nem ao
filho de César.
É o nosso mundo que prega a igualdade,
mas utiliza a duplicidade de critérios, ou seja, tem dois pesos e duas medidas.
***
O provérbio vem a talho de foice
a propósito da recente incorporação de um filho de Durão Barroso (o chefe de
governo que fugiu para governar a Europa – e se governar – a partir de Bruxelas)
no grupo de colaboradores do Banco de Portugal, a convite do BdP, sem que se
tenha divulgado o preço monetário da colaboração de “tão soberbo crânio” de 31
anos de idade nem a que patamar ou cargo ela corresponde (vd O Diabo, de 19-08-2014; Público, de 20-08-2014). É sempre invocado
o critério da competência em razão do currículo académico e da experiência
profissional. Mas o que se assiste é aos jogos da medíocre classe política (com
honrosas e egrégias exceções) “prostituída e destituída de valores”, ao mais deslavado
nepotismo e à complexa bolsa de poderio e tráfico das influências.
Já assim era quando se integraram,
em lugares de relevância técnica e profissional, filhos dos casais Sampaio,
Silva, Gama, etc. Entretanto, deste novel colaborador do BdP di-zse que a sua
ação abrange com mestria as áreas “de interesse académico” tais como Direito da
União Europeia, Direito Administrativo, Direito Internacional e Direito de
Regulação – um especialista em tantas áreas, milagre! E também se diz que o colaborador
revela competências no domínio do facebook,
como benfiquista e que gosta dos Spurs
no basquetebol. Se calhar, fala inglês, francês, italiano, neerlandês e alemão;
e tocará piano e guitarra…
Ora, sabe-se que o BdP recruta os
colaboradores por concurso, candidatura espontânea e convite. No caso vertente,
dada a crise que passa no BdP, talvez por descrédito do seu papel de regulador
e supervisor, não houve candidaturas espontâneas; e, porque, com a emigração de
quadros e pela ultrapassagem da crise sistémica em Portugal e na Europa, o concurso
deve ter ficado deserto. Por isso, só restava o convite. E, dada a urgência do
provimento no lugar, o BdP terá promovido uma acurada pesquisa nos meios
académicos e no IEFP e só terá encontrado este potencial colaborador com o
complexo de requisitos necessários. Quem terá aferido tais capacidades?!
Não obstante custa-me a
vislumbrar motivo para tanta e tão grande turbulência. Eu creio que, tal como o
Governo não teve nada a ver com a solução do BES/GES, também nem o Presidente
da Comissão Europeia nem o PSD/CDS tiveram qualquer influência no recrutamento
e seleção do neocolaborador. Ademais, o lema de António Guterres, No jobs for the boys, fica inviolável ou
seja, manet in aeternum. E, como se
tem verificado ninguém quebrou a cadeia da sua observância: Barroso, Lopes,
Sócrates, Passos!
É o sistema que nos ajuda a viver
a vida perfeitamente dentro das nossas possibilidades: com novos pobres, sem
avareza, sem desperdício e obrigados à contribuição extraordinária de
solidariedade para com os pobres e às sobretaxas para ajudar corresponsavelmente
a expiar as culpas pelos acidentes do BCP, BPN, BPP e BES/GES.
Sem comentários:
Enviar um comentário