quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Afinal, o que é a língua e para que serve?

Paulo Chitas escreve na revista Visão on line, de 21 de agosto, na secção “Os trabalhos e os dias”, crónica a que dá o título “avaliação dos professores”, com o subtítulo “Andam todos a precisar de estudar Gramática nas férias?”.
O cronista comenta o sublinhado feito pelo IAVE – IP e pela comunicação social aos erros dos professores que se submeteram à tão propalada prova de avaliação de conhecimentos e capacidades (PACC), todos eles atinentes a falhas no conhecimento do Português com relevo para a ortografia.
Também concordarei que os erros maiores não serão os ortográficos, mas os concernentes à sintaxe e à organização da frase, do parágrafo, do texto. Também entendo a iniquidade do realce dado às falhas no âmbito da Língua Portuguesa, sem referência a lacunas manifestadas noutros domínios, já que a prova também envolvia aspetos de lógica, matemática, resolução de problemas, compreensão de enunciados, etc. – continuando a alimentar o imaginário obsessivo de uma certa elite portuguesa quanto a uma determinada ortografia da Língua (a de 1945).
Verifica o mencionado colunista “a sensação de que é aceitável dar umas calinadas valentes numa série de áreas (matemática ou estatística, física ou geografia, sociologia ou antropologia, mesmo filosofia e a sua lógica), enquanto um erro ortográfico é imperdoável e coloca o faltoso a um nível cultural digno de um olhar de apedrejamento mental”.
Como é usual dizer-se nos últimos tempos, é óbvio que não posso estar mais de acordo com Paulo Chitas. Todavia, não o posso acompanhar na justificação.
É certo que “a língua evolui e transforma-se muito depressa, mesmo durante o tempo de uma vida humana”. Porém, não sou capaz de afiançar que “os conhecimentos científicos mudam muito menos”. Posso, no entanto, assegurar que evolui a forma de os atingir e de os ensinar, bem como o universo da sua aplicação. Bem me recordo como oscilaram as fórmulas químicas, como, por exemplo, a da água que era H2O, passou a OH2 e voltou a H2O. Vi um compêndio de Matemática para construção civil, uma tentativa de análise de poema em categorias matemáticas e conceitos de trigonometria aplicados à música. E todos se recordarão da dificuldade de êxito nos exames nacionais em Matemática B ou em Matemática Aplicada às Ciências Sociais.
Por outro lado, o cronista revela um conceito muito lacunar de “língua” e, em concreto de “língua portuguesa”, e, sobretudo, infere desse conceito desastrosas consequências práticas.
É verdade que “a língua portuguesa serve, como todas as línguas, para comunicar”, mas não é plausível que se defenda que não é um conteúdo de conhecimento, mas apenas um transmissor deste”. Se para um ser humano normal é importante “saber o que é uma raiz quadrada, ou conhecer um pouco a lógica aristotélica”, também o é saber organizar frase, encadear frases, separar parágrafos, tecer texto (dando-lhe coerência, coesão e progressão temática, mesmo que não se conheça a nomenclatura). E conhecer as regras da ortografia e aplicá-las (a escrita da palavra, a acentuação, a pontuação, a colocação dos pronomes) permitem dar indicações aos destinatários para perceção, compreensão e interpretação da mensagem (conteúdo da comunicação). Por outro lado, ajuda-se a evitar os ruídos de contacto e a conseguir um mínimo de uniformização em nome da unidade, embora sem menosprezar a diversidade.
Já experimentaram tentar interpretar uma partitura musical (veículo da comunicação musical) em que estejam colocadas na pauta somente as notas musicais a indicar a altura dos sons, sem visualizar a figura (para indicar a duração do som); sem apor a clave, para a leitura das notas; sem a indicação dos acidentes, para perceber a tonalidade do texto musical; ou sem a especificação do compasso e indicadores de ligação, andamento, pausas, adornos e modos de expressão? Como escolher o ritmo e a expressão no âmbito da execução?
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Quanto a regras ortográficas, é natural que se estranhem as reformas. Convém recordar que elas, embora se estribem em pressupostos linguísticos, resultam de opções de política da língua e até de concretização de desígnios negociais. Ou querem convencer-me de que D. Dinis, ao decretar que todos os documentos oficiais seriam obrigatoriamente redigidos em português, o terá feito apenas por lídimo patriotismo e baseado em puros pressupostos científicos?
E, quando me recordam que o Português veio do latim, pelo que teríamos de manter, na escrita, as consoantes c e p em posição muda, apetece-me responder que as mantenham também na pronúncia! Ou também gostaria de perguntar porque não chamam padre ao pai (de patrem) e madre à mãe (de matrem) e parentes aos pais (pai e mãe). E porque é que se escreveu pae e mãi e agora se escreve pai e mãe? Porque não se uniformizou em pai e mãi ou em pae e mãe, se as palavras provêm, respetivamente, de patrem e matrem?
Ninguém contesta as contradições da reforma ortográfica de 1911 ou as da de 1945 – reformas profundas em relação ao “antes”. Será que Gonçalves Viana (1911) ou Rebelo Gonçalves (1945) eram mais competentes que Malaca Casteleiro, Fernando Cristóvão, Vítor Manuel Aguiar e Silva, Maria Helena da Rocha Pereira, entre outros, que deram cobertura a uma reforma mais epidérmica que estrutural?
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Ainda que a língua fosse um mero veículo de comunicação, havia de considerar-se, mesmo no âmbito da evolução, a solidez dos constituintes, a solidariedade de materiais, a funcionalidade do veículo e suas peças, o desempenho, a afinação, a estética, a higiene, a adequação ao estatuto social do proprietário ou do usufrutuário. Ninguém aceitaria circular num veículo com deficiências como: um sistema de frenagem precário, peças mal encaixadas (mesmo que tenham evoluído o sistema de encaixe e/ou de articulação), embraiagem desafinada, sistema de lubrificação desleixado ou falta de limpeza. E o dono/utente do veículo sente necessidade e até prazer de conhecer o nome das peças, o funcionamento, a mecânica e as potencialidades do objeto. Mas a língua pode ser tratada como for, pouco interessando, segundo alguns, o seu conhecimento explícito. Note-se que, apesar da sua evolução e mudança de nomenclaturas, há noções praticamente inalteráveis, como: frase, nome, pronome, adjetivo, numeral, verbo, advérbio, preposição, conjunção, sujeito, predicado, vogal, consoante…
Apesar de os estrangeiros falarem o Português como podem e os portugueses falarem as outras línguas como sabem (sabendo-se que o importante é comunicar = entender, exprimir-se e ser entendido), nem por isso nos devemos acomodar à mediocridade no uso das coisas. Se não é tolerável “a soberba de alguns ortografomaníacos” ou a devolução a eles de “humilhações semelhantes às que gostam de praticar”, não é despicienda a conveniência de melhorar o nível cultural e de competências dos indivíduos também pela correção da escrita, embora sabendo priorizar as suas diversas valências. Não é de aceitar como escusa o facto de os jovens que ensinamos hoje, se a vida lhes correr bem, poderem ir estudar e escrever em inglês nas universidades nacionais (o que desgraçadamente já hoje assim acontece) ou estrangeiras e de serem induzidos a ir trabalhar para outros países, “onde o conhecimento da ortografia lusitana não será certamente o seu principal trunfo, mas antes o que souberem de matemática, de ciência, de filosofia, de arte ou de “novas tecnologias”. Embora sejam estas as bases que lhes “darão mundo” e que poderão levá-los à distinção, nada me convence da verdade da asserção de que o indivíduo que se habitue a cultivar a sua língua como património comum – e seu – certamente se habituará a esmerar-se no domínio de outra ou outras línguas que tenha ou goste de aprender e praticar, bem como no de outras ciências, artes ou disciplinas. A aprendizagem de uma língua produz também um efeito disciplinador do pensamento, do discurso e da relação.
Os empresários e trabalhadores europeus têm enormes capacidades de puxar pelos seus países, de inovar e produzir riqueza – diz o colunista – e não sabem escrever português, mas – digo eu, que também sou gente – dominam minimamente a sua língua e muitos tentam aprender português, a quarta língua mais falada do mundo.
O colunista menciona Vergílio Ferreira, que fora seu “professor de muita coisa”, e também de Português. Acha mesmo que o ensinou a amar a “doce” língua portuguesa. Mas, confessa que “não foi só por essa contribuição tão pessoal e emocional que se tornou um mestre e uma tão grande referência para mim; foi por, acima de tudo, ter sido a pessoa que me ensinou a pensar”. Mas como é que o ensinou a pensar?
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Mas, afinal, o que é a língua e para que serve?
Sem bosquejar grandes definições, importa assentar num conjunto coerente de itens. É óbvio que a língua é o veículo privilegiado de comunicação, como Paulo Chitas efetivamente assume, mas com todas as implicações acima referenciadas. Porém, não sendo um veículo morto, mas a contrario um organismo vivo em constante evolução, merece que dele se cuide, nele nos revejamos e o apresentemos com um mínimo de dignidade e tirando partido de todas as suas potencialidades.
A língua, enquanto património da comunidade e, por conseguinte, um bem comum, carece de memória, preservação, enriquecimento, mais-valia, apropriação: precisa, para se realizar, de tornar-se “fala”, prática, utilização individual. E, como memória, forma consistente de comunicação e de refrescamento da memória e de retoma da informação, dá lugar à escrita – forma derivada da fala, forma culta de comunicação e a principal modalidade de comunicação à distância ou de suporte para tal.
Mas a língua é instrumento de cultura e de afirmação cultural. A língua cria cultura, favorece cultura, preserva e memoriza cultura e alia-se a outros instrumentos de criação e enditamento cultural. E permite que se defina como culto o homem que domine a sua língua no aspeto teórico, no aspeto prático e no aspeto crítico – que tem em conta o estudo do passado do seu povo, assume o seu presente e prepara sustentavelmente o seu futuro, tentando conhecer o seu ambiente e lançar pontes a outras culturas e sociedades.
A língua é outrossim fontes de recursos estilísticos, os quais, associados entre si e compendiados em enunciado coerente, permitem uma multiplicidade de registo e interpretação do mundo, das pessoas e dos grupos, bem como a criação de novos mundos e a consequente fruição estética, artística, ideativa e sentimental.
Configura assim um facto psicológico, que exprime o ser, o pensamento, o sentir e o agir do homem; e um facto social, que exprime a consciência de uma coletividade e o seu empenho cooperativo na ação. E é um sistema de signos – unidade complexa formada pelo significante e pelo significado, que permite falar da realidade que nos rodeia ou da que vive e se desenvolve dentro de nós, como que as substituindo – que se organizam e combinam segundo regras fonológicas, morfológicas e sintáticas e leis de repetição e progressão. É o meio pelo qual a coletividade concebe o mundo que a rodeia e sobre ele age; configura a utilização social da linguagem, a criação da sociedade; é o corpo orgânico que evolui em paralelo com organismo social que o criou (cf C. Cunha e L. Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 1984).
Saussure compara o aspeto material da língua ao aspeto material do sistema financeiro. Os fonemas seriam equivalentes ao papel e à tinta com que se fazem as notas de dinheiro. O valor atribuído às notas, por sua vez, seria comparável ao significado dos signos linguísticos. O processo de formação dos signos, do lado do social, seria, portanto, exatamente o mesmo processo utilizado no sistema financeiro. Isso porque tanto um como o outro são sistemas de valores. O pensamento humano não passaria de massa amorfa e indistinta. Por outro lado, os sons de que se serve a língua tampouco se encontram organizados de alguma forma. Porém, a língua seria o mediador entre o pensamento e os sons, possibilitando, assim, que entre a massa amorfa do pensamento humano e a profusão indeterminada de sons, surja uma espécie de faixa de organização à qual se chama língua (cf F. Saussurre, Curso de Linguística Geral). Tal é o seu papel de demiurgo.
Como património comum, constitui herança coletiva (de que é mister cuidar), um cúmulo de elementos que resulta da afirmação de personalidades e do estabelecimento, manutenção e desenvolvimento das relações entre gerações e povos ao longo dos tempos e nos diversos espaços que os membros da comunidade linguística integram e ocupam. A língua é, por consequência, sinal e fator de identidade e afirmação de uma comunidade e instrumento de uma certa unidade de origem (por mais diversificada que seja), de cultura (por mínima que seja) e de interesses de bloco frente a outros blocos similares e, nalguns casos, de uma certa hegemonia.
Sendo assim, a língua é pátria comum, Minha Pátria é a Língua Portuguesa (Bernardo Soares, heterónimo de F. Pessoa), que tem os seus falantes, estudiosos e cultores. Alguns dos cultores tornaram-se célebres, como Camões, Bocage, Garrett, Herculano, Camilo, Eça, Aquilino, Torga e Sophia. Mas Fernando Pessoa considera, na linha da mística simbólica, Imperador da Língua Portuguesa o Padre António Vieira.

Portanto, a língua deve ser utilizada, cuidada, cultivada, estudada e divulgada.

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