A propósito da crise BES/GES, a
opinião pública foi bombardeada pelo Governo e pelo Banco de Portugal com a
propalada diferença (que todos conhecíamos) que existia entre o Banco Espírito
Santo e o Grupo Espírito Santo. Mais: dizia-se que o Banco estava ótimo e que
até dispunha de uma almofada de mais de dois milhares de milhões de euros para
obviar a qualquer surpresa da sua exposição aos problemas do Grupo. Os
clientes, nomeadamente os depositantes, tinham mais que motivos para ficarem
tranquilos. O próprio Banco Espírito Santo de Angola estava a coberto de um
aval (ou instrumento equivalente) firmado pelo próprio Presidente José Eduardo
dos Santos (que não renovou), em virtude de empréstimo de mais de 3 mil milhões
de euros, concedido pelo BES.
Também foi o povo advertido Urbi et Orbi pelo Chefe do Governo Português
de que o Estado não tinha de interferir em problemas da esfera das instituições
privadas e que não podiam ser os contribuintes portugueses nem o Estado responsabilizados
pelos erros de gestão cometidos pelos gestores das empresas daquelas entidades.
Há uns tempos a esta parte, eu na
minha inocência “provinciana”, formulava, a propósito do discurso público, um
conjunto de questões para que não encontrei resposta aceitável, a não ser a da
técnica da avestruz de enterrar a cabeça na areia. E, apesar de ainda há pouco
tempo ter sido lançada com sucesso uma campanha de aumento de capital do BES,
os problemas precipitavam-se em catadupa nas pantalhas da Comunicação Social.
Várias unidades empresariais do GES solicitavam gestão protegida, declaração de
insolvência ou instituto jurídico-financeiro similar. E o ex-Presidente do CA
do BES é detido para prestar declarações no DCIAP e ser constituído arguido,
ficando em liberdade condicional contra a prestação de caução de 3 milhões de
euros (E se fosse pobre?!).
E, no passado dia 3 de agosto, o
Governador do Banco de Portugal (eu diria “Governador de Portugal”, já que,
tratando-se de assunto que mexe com o país, o Governo ficou na sombra, que não
na prateleira) anunciou uma medida drástica: dividir o Banco em dois: um banco
bom, com a designação de “Novo Banco”; e um banco mau, com a designação de BES.
O primeiro tem um conselho de administração de cinco elementos cujos rostos são
grosso modo os que estavam já em cena
(deixando cair Mota Pinto) e assume todos os ativos não tóxicos; o segundo
ficará com a gestão dos ativos e passivos problemáticos, designadamente os
acionistas, a família Espírito Santo e os credores de obrigações subordinadas….
Este banco mau ficará entregue a um conselho de administração cuja missão é
proceder à liquidação do BES, não sem antes tentar resolver, no máximo
possível, os graves problemas pendentes.
Para o Novo Banco, que abriu logo
no início do dia 4, embora provisoriamente com os mesmos sites e balcões, há um único acionista, o Fundo de Resolução,
criado para obviar a casos similares no quadro da Zona Euro e da União Europeia
e que, em Portugal, é alimentado pelos outros bancos, designadamente através do
imposto sobre a Banca. Mas, como esse fundo dispõe até ao momento apenas de
cerca de 200 milhões de euros, fora decidido contrair um empréstimo junto do
fundo disponibilizado pela troika no âmbito do Programa de Ajustamento
Económico e Financeiro (PAEF) de que Portugal foi objeto, que ainda cobre o
capital de 4 mil e 900 milhões de euros de que o Novo Banco necessita. Sabe-se
agora que os bancos farão todo o esforço possível para que o empréstimo no
quadro da disponibilidade da troika (no âmbito do PAEF) seja reduzido ao
mínimo. O capital emprestado fica, pelos vistos (porque os bancos quiseram
fazer um esforço adicional à cabeça), na ordem dos 3 mil e 900 milhões de
euros, a um juro mínimo de 2,95%, atualizável trimestralmente e com o horizonte
máximo de dois anos.
Perante esta medida, Governador
do BdP e membros do Governo da República garantem que os contribuintes não têm
qualquer fatura a pagar, ao passo, que os agentes políticos postados à esquerda
salientam precisamente o contrário. Que nada disto se parece em nada com o caso
BPN nem com o BPP. Em que ficamos, afinal?
***
Quanto à questão da
responsabilidade do Estado, os factos mostram que o caso BES/GES apresenta
notória pregnância política. Quem bosquejar o Diário da República, nota que, no
dia 1 de agosto próximo passado, foi publicado o Decreto-lei n.º 114-A/2014, de
1 de agosto, que “altera o Regime Geral das
Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro, procedendo a alterações ao
regime previsto no Título VIII relativo à aplicação de medidas de resolução, e
transpondo parcialmente a Diretiva n.º 2014/59/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de
maio, que estabelece um enquadramento para a recuperação e a resolução de
instituições de crédito e de empresas de investimento”. Este decreto-lei foi
visto e aprovado em Conselho de Ministros no dia 31 de julho (véspera), uma
quinta-feira, com as assinaturas do Primeiro-Ministro, do Secretário de Estado
Adjunto e do Orçamento e do Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros;
foi, em 1 de agosto, promulgado pelo Presidente da República, referendado pelo
Vice-Primeiro-Ministro e publicado no DR, I série, para entrar em vigor no dia
4. Porém, no dia 3 (domingo), surge mais um decreto-lei (DL), o
Decreto-lei n.º 114-3/2014, de 4 de agosto, que é
visto e aprovado em Conselho de Ministros (CM), só com as assinaturas do
Vice-Primeiro-Ministro e da Ministra de Estado e das Finanças. Foi, no mesmo
dia 3, promulgado pelo Presidente da República e referendado pelo Vice-Primeiro-Ministro.
Este DL era para entrar em vigor no dia seguinte ao da sua publicação e foi
publicado no dia 4. O assunto deste diploma é a alteração
do “Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado
pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro, procedendo a
alterações ao regime previsto no Título VIII relativo à aplicação de medidas de
resolução”. As alterações do anterior
eram manifestamente insuficientes, certamente.
Para quem afirmava abertamente
que o assunto não era da esfera do poder político ou do Estado, os políticos de
poder trabalharam demasiado, não?! Entretanto, o Conselho de Ministros
subscreve um decreto com três assinaturas. Nada se objeta a este facto, dado
que, segundo o douto parecer da Professora Isabel de Magalhães Collaço (apud
Freitas do Amaral, O Antigo Regime e a
Revolução, 1995), em “estado de necessidade”, bastam três membros de um
órgão colegial para decidir. E o país estava em estado de necessidade a partir
do momento (dia um à noite) em que o BCE deixaria de financiar o BES ou de
avalizar o seu financiamento: passou a faltar ao BES o seu maior capital, a
confiança. Já não se diz o mesmo sobre o DL de 3 de agosto, já que entre
ministros e secretários de Estado era bem possível congregar três elementos
para o CM. Por outro lado, o DL poderia determinar a sua imediata entrada em
vigor e não uma vigência usual, como é muitas vezes a do dia seguinte ao da
publicação. Para espíritos letristas poderia surgir o incidente do
funcionamento ilegal do BES e o do Novo Banco por um dia, em que nem o fundo de
resolução tinha suporte legal. Creio, no entanto, que não terá sido essa a
razão dos levantamentos de largos milhões de euros para a CGD logo no dia 4. Os
depositantes não ficaram tão tranquilos como se fez crer, o que não admira:
dinheiro custa muito a ganhar à maior parte das pessoas. E a Bolsa de Lisboa,
que parecia reagir bem, cedo passou a dar de si.
A Ministra das Finanças, quando
instada a justificar a sua ausência de visibilidade neste cenário da tomada de
medidas, escudou-se no argumento de que é ao regulador que é, por lei,
atribuída a competência para a tomada de medidas em casos como este. Todavia,
há que afirmar que nem havia lei e a lei ora vigente foi elaborada à pressa,
por atacado e em duas doses consecutivas. Em matérias momentosas como esta, não
deveria ter-se recorrido a um CM clandestino ou por e-mail, o que não significa
que não se deveria atuar em termos de urgência ou emergência ou em consonância
com o estado de necessidade. Nem vale o fenómeno de vir um insigne ministro a
correr explicitar que não é a primeira vez que se recorre à assinatura por
e-mail. “Eles” até dispõem do recurso à assinatura digital. Porque não usaram e
ela não vem aposta aos DL citados? Nem é isso que está em causa. Os e-mails são
para uso moderado, não uso atabalhoado ou abusivo.
***
No atinente aos contribuintes,
todos os políticos e técnicos do poder ou seus adesivos garantem que nada
afetará os contribuintes. Porém, Catarina Martins, do BE, reagiu quase de
imediato afirmando que tinham ficado muitas perguntas sem resposta e que as
cosias não eram bem assim como o Governador tinha dito. A isto alguns
comentadores acharam despicientemente que talvez a bloquista necessitasse de
férias.
António Costa, por seu turno, em
entrevista à revista Visão, de 7 de
agosto, mostra que efetivamente o prejuízo se vai refletir nos contribuintes: “Se o capital resultou, essencialmente, de um
empréstimo do Estado, para já, são os contribuintes que estão a suportar o
investimento. A questão é a de saber se o recuperam ou não”.
Há então, do meu ponto de vista,
pelo menos um custo de oportunidade. Mas Costa vai mais adiante: “O facto de o dinheiro ser emprestado pela
troika não altera este dado. Quem paga os juros e quem tem de pagar o
empréstimo? O Estado, logo, os contribuintes. Ou seja, ao contrário do que
dizem Banco de Portugal e Governo, para já, são sobretudo os contribuintes quem
está a suportar a solução”.
Pouco importa, segundo creio, que
os custos para os contribuintes configurem uma responsabilidade direta, como uma
nacionalização mal gerida (no antes, durante e depois), como foi o caso do BPN,
ou que os custos imputáveis aos contribuintes o sejam de forma indireta ou
diferida no tempo, como parece ser o caso vertente.
Ao facto de o Primeiro-Ministro
ter declarado que a solução terá uma repercussão mínima no défice, Costa parece
contrapor que, consolidando o fundo de resolução “no setor público
administrativo, o investimento conta como despesa para efeitos do défice. Se
não houver comprador para o novo banco ou o preço for inferior ao valor do
empréstimo, os outros bancos têm de reembolsar o Estado”. Ora, há que perguntar
com que é os bancos reembolsam o Estado, a não ser com o que obtêm a partir dos
contribuintes (depositantes, aforradores, credores, devedores, funcionários… -
que pagam impostos). Por outro lado, interrogo-me se os acionistas, sobretudo
os que foram aliciados a investir no recente aumento de capital (confiantes nas
declarações do BdP e do Governo de que o BES estava imune aos problemas do
GES), e todos os obrigacionistas subordinados, a quem os ativos do BES vão ser
subtraídos para ficarem postos a salvo no Novo Banco – todos estes vão
renunciar à condição de contribuintes. Por outro lado, esta crise provocada por
gente irresponsável e gerida com alguma incúria (Se a lei não permitia fazer
mais e melhor, porque não suscitavam a sua melhoria, como o conseguiram fazer agora
a correr em 4 dias?) por parte do regulador/supervisor, que garantias deixa da
parte do país ao investidor interno e externo?
Julgo que as autoridades – as
governamentais e as financeiras – têm o dever de não criar alarmismos na
sociedade, mas não têm o direito de aliciar os contribuintes a agir em situação
dúbia e, muito menos, de levianamente assegurar que a população essencial não
fica prejudicada ou vitimizar-se na desculpa de que foram enganados, atraiçoado
ou desobedecidos.
Se Deus não nos acode, estes
homens e mulheres também não. Alguns já nada têm em seu nome. Não sei como
conseguiram proceder a uma transferência bancária para o cuidado do juiz do
TCIC!
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