Quando
mais nada se diz a seu respeito, o apelido Silva
Gaio refere-se ao cidadão referenciado em epígrafe. No entanto, há que
referir que este gerou um outro homem de letras, que dá pelo nome de Manuel e a
que já dedicámos modesta abordagem. Hoje vamos falar de António de Oliveira da
Silva Gaio, que ganhou fama “com o romance Mário
(1868), no qual explora, como se lê no subtítulo, episódios das lutas civis portuguesas de 1820 a 1834” (Barreiros,
1982: 101).
Silva Gaio, o pai do poeta Manuel da Silva
Gaio, nasceu em Viseu a 14 de agosto de 1830, tendo falecido no Buçaco em agosto
de 1870. Médico e professor de Higiene na Universidade de Coimbra (em que se
formara em 1858), distinguiu-se como escritor, inserto na corrente romântica,
com influências de Alexandre Herculano e de Camilo Castelo Branco.
Educado
num Seminário da diocese de Viseu, formou-se em Medicina pela Universidade de
Coimbra. Dedicando-se à literatura e ao jornalismo, publicou o romance já
referido, Mário – Episódios das
Lutas Civis Portuguesas (1868), que versa as lutas entre liberais e
absolutistas, uma peça de teatro intitulada Frei Caetano Brandão (1869) e fundou O Comércio de Coimbra.
O
seu nascimento ocorreu no mesmo dia em que a França fazia entrar em vigor a Carta Constitucional, sobre a qual assentaria o
regime de Luís Filipe, feito que contribuiria para o agravamento do isolamento
diplomático de D. Miguel no concerto das potências europeias e que
necessariamente criaria condições para novo impulso na luta daqueles que se lhe
opunham. Era no atribulado rescaldo da morte do rei D. João VI, verificada em
Março de 1826.
A infância de Silva Gaio é marcada pela atribulação devido às lutas
acérrimas em que se envolveu todo o País e que foram vividas de forma
lancinante na Beira e, especialmente, em Viseu e em todo o seu distrito, como
no-lo atesta, entre outros, Maximiano de Aragão. Assim, Silva Gaio assistiu, nesta fase
da vida, à interferência direta estrangeira nos assuntos internos de Portugal, que
de antes ouvira contar, à história descaraterizada do constitucionalismo
monárquico mal resolvido até à década de 1840, ao início da guerra civil que
opusera absolutistas e liberais e à solução encontrada pelo ex-arsenalista
Costa Cabral, que viria a adoptar a “bandeira” da ordem e do desenvolvimento
económico. Para tanto, Cabral reimplantou um regime de ditadura assente na
repressão e na violência – tal como no período em que se opuseram, violenta e
demoradamente, o miguelismo absolutista no poder e o campo liberal unificado em torno de D.
Pedro IV e de D. Maria II.
Esquemática e sinteticamente, ouvira falar amiúde das invasões napoleónicas
– a 17 de novembro de 1807, a primeira, comandada pelo general Jean-Andoche
Junot; a segunda, a 10 de março de 1809, liderada pelo marechal Nicolas Jean de
Dieu Soult; a terceira, a 24 de julho de 1810, chefiada pelo marechal André
Massena; e a quarta, com a duração de apenas 20 dias, tomou lugar a 3 de abril
de 1812, comandada pelo Marechal Marmont –; da partida da Família Real para o
Brasil (1807); do desembarque das tropas inglesas em Portugal (1808); da
insurreição no Porto e noutros lugares contra os invasores franceses e a
ocupação da cidade (1808-1809); das batalhas de Roliça, Vimeiro e Buçaco (1808-1810);
da batalha das Linhas de Torres Vedras (1810-1812); da elevação do Brasil a
Reino por via do grito de independência nas margens do Ipiranga (1815); da
revolução liberal no Porto (1820); da Martinhada (1820); da morte do rei D. João VI e da
abdicação do sucessor a favor de D. Maria II (1826); do regresso do infante D.
Miguel e do início da sua regência, depois de jurar a Carta Constitucional
(1827-1828); do golpe de estado absolutista e da dissolução das Cortes (1828),
com a aclamação de D. Miguel como rei absoluto e início de um período de
terror, com execuções de liberais; do desembarque da expedição liberal no
Mindelo (mais propriamente desde as praias de Mindelo até à Praia dos Ladrões, em Arnosa de
Pampelido, no limite das freguesias de Lavra e Parafita) e cerco do Porto (1832); do desembarque de D. Pedro em Lisboa (1833) …
Um nunca mais acabar de situações que alteraram as mentalidades do tempo e que
se espelharam nos trabalhos dos letrados e de outros intelectuais. Presenciara
a designada por eterna luta entre ‘o Trono e o Altar’ – como ele mesmo, por
estas palavras, o refere no seu livro, não sem desfiar razões de Victor Hugo,
no seu extenso romance Les Misérables.
A acalmia, após a Revolução dita da Maria da Fonte (1.ª fase: abril-maio de
1846; 2.ª fase, outubro de 1846-junho de 1847), num momento do turbulento e acidentado
reinado de D. Maria II [1826-1853], só chegou com D. Pedro V [1853-1861] e D.
Luís [1861-1889], explicável no enquadramento geral da expansão económica e da
prosperidade benfazeja para as classes dirigentes. Regeneradores e históricos
ou progressistas – como estes vieram a designar-se mais tarde – alternam-se no
poder. Saldanha, como marechal, marquês e duque, presidente do Conselho de
Ministros, é titular da pasta, como tal, de maio a novembro de 1835, de outubro
de 1846 a abril do ano seguinte, de maio de 1851 a junho de 1856 e de maio a
agosto de 1870. Nesse ambiente que convidava o proletariado literário ao partidarismo,
Silva Gaio deambulou de cadeia em cadeia, tendo conhecido a liberdade apenas
para vir a morrer, no Buçaco, a 8 de agosto de 1870.
***
Frequentou os estudos num Seminário viseense, formou-se em Medicina (grau de licenciado, 22 de julho; de doutor, 31 de julho), em 1858, na Universidade de Coimbra, de
que se tornaria professor, ainda nesse ano. É Tomás António Ribeiro Ferreira
[1831-1901], seu amigo de infância, estudante no Liceu Nacional de Viseu,
natural de Parada de Gonta, Tondela, quem nos refere acerca do seu conterrâneo:
“amava a vida, era namoradeiro, eloquente, corajoso e temerário, ao ponto de se
bater em duelo, em 1854, com Filipe do Quental, por um motivo fútil”. Pouco
depois de se doutorar, casou com a prima Emília de Campos Paredes, a quem dedicou o seu romance Mário.
Foram pais de Manuel da Silva Gaio [Coimbra, 6 de maio de 1860-Coimbra, 11 de fevereiro
de 1934), poeta, teorizador e ensaísta, neto de António Manuel Joaquim de Almeida
da Silva Gaio, advogado viseense prestigiado que teve de fugir “aos esbirros
miguelistas – cena incluída em Mário.
Em 1864, é-lhe entregue a regência da
Cadeira de “Higiene Pública”, criada na Faculdade de Medicina da Universidade
de Coimbra. Nos registos da Universidade de Coimbra pode ler-se
que:
Participou na defesa de Almeida contra as tropas
miguelistas. Proferiu a Oração de Sapientia de 1.10. 1860.
Obteve os graus de Licenciado, a 22.7.1858; de Doutor, a 31.7.1858. Lecionou as cadeiras de:
– Anatomia Humana e Comparada (1859-1860), 3.º
substituto extraordinário; Física Medica (1859-1860), 3.º substituto
extraordinário; História Natural Médica (1859-1860), 3.º substituto
extraordinário; Patologia Médica... (1861-1863), Substituto; Física Médica…
(1861-1864), substituto; Medicina Legal... (1863-1867), Substituto; Higiene
Pública (1864-1865), Substituto; Matéria Medica (1864-1867), Substituto;
Medicina Legal... (1867-1870), Lente.
Exerceu os cargos de: Secretário da Faculdade de Medicina (1860-1861);
Fiscal da Faculdade de Medicina (1861-1865); Diretor do Gabinete de Operações
Cirúrgicas (1866).
Tem como publicação científica A litotrícia no tratamento
radical dos cálculos vesicais… (Coimbra, 1858).
Comendador da Ordem de Santiago. Cavaleiro da Ordem de
Carlos III de Espanha. Foi amigo íntimo do poeta e estadista Tomás Ribeiro, e
também de Manuel de Arriaga.
Procurando participar na vida política, lançava, em 1863, um efémero
periódico, o Comércio de Coimbra,
pelo que criou um centro em Viseu, um “grupo de pressão”, lugar em que tentou
estabelecer as bases da sua candidatura a S. Bento, em que não obteve sucesso.
Romancista – da 1.ª fase –, dramaturgo, contista e ativista político foi
representante da uma nova geração de escritores portugueses. A sua obra – quer
em Mário, quer em Frei Caetano Brandão (1869) – é um
mosaico de situações e personagens representativas da vida política dos Anos
Vinte e de então em diante, em Portugal.
Na década de 1850, via encenado, em Viseu, um drama de cinco atos,
intitulado Luíza, ao que se julga,
com rasgado êxito. Em seguida, já pelos finais da vida, terminou o seu D. Frei Caetano Brandão, (1869), outro
drama que viria a ser representado no Teatro D. Maria II, em Lisboa.
O argumento do seu último drama gira em torno de Frei Brandão, da Terceira
Ordem Regular de S. Francisco, que foi, em 1782, nomeado bispo do Pará pela
rainha D. Maria I, fazendo a sua entrada solene na Catedral de santa Maria de
Belém do Grão Pará, no dia 1 de novembro, no ano seguinte. Em 28 de junho de
1790, tomou posse como titular da Arquidiocese de Braga.
Em Mário, livro em dois volumes,
que se tornou muito popular, romanceou a época das lutas liberais e o cerco do
Porto, muito vivos ainda na lembrança dos seus contemporâneos.
É um livro que tem todo o aparato de um drama. Os diálogos leves ou
pungentes são seguidos de lágrimas, prostrações e leves expressões de amor,
comparadas com altivas ordens de comando, de condenação e brutalidade. No seu
conjunto, os dois volumes descrevem todo um rol de tropelias, vinganças e
traições por parte de alguns energúmenos apoiantes de D. Miguel contra os
liberais, que se leem já no subtítulo, episódios
das lutas civis portuguesas de 1820 a 1834. Embora não tivesse vivido esses
anos, todavia, por um lado, ouvira-as relatar aos mais velhos e, por outro,
assistira às suas primeiras impiedosas consequências.
Como sintetiza Fernando Pereira Marques, a leitura de Mário permite obter
boas representações da época e das personagens em causa.
Depois de apresentar a “sua” Beira Alta e laivos da sua riqueza paisagística,
roçou o poético, transitando para a história epocal. Estamos nos princípios de
1829: “de feito, o Reino jazia sob o arbítrio de um governo intolerante, que
tinha achado um chefe ostensivo no infante D. Miguel e um, real, na coorte que
cercava a Senhora D. Carlota Joaquina. Mantinham-se as vexações antigas” e as
forcas, as autoridades, usavam abusivamente delas, do exílio, também, o mesmo
faziam com as cadeias, como penas para os que acatavam o juramento feito à
Carta Constitucional, que o Infante D. Miguel havia também jurado.
Paralelamente, não podemos esquecer, como nunca o fez Silva Gaio, que
Portugal se encontrava numa situação de total bloqueio que impunha uma viragem
rápida. Na cidade do Porto, ecoou o grito de revolta contra o regime absoluto.
O movimento passou a dispor de apoio militar, pontificado pelo coronel Bernardo
de Castro Correia de Sepúlveda, secundado por outros chefes de guarnição ativos
e empenhados.
Se pretendiam, acima de tudo, o regresso do rei a Portugal, ele aí estava,
no Tejo, às portas de Lisboa, a 3 de julho de 1821, depois de ter jurado no
Brasil a Constituição, por conivência de seu filho D. Pedro.
***
Como é que pode entrar na penumbra da memória ou na sombra do esquecimento um
poeta narrador-notário das vicissitudes do tempo que o circundou e que marcou para
o futuro toda uma época histórica, a partir da região das Beiras, malhas
genuínas do Portugal profundo?
Referências
Aragão,
M. (1928). Viseu (Província da Beira).
Subsídios para a sua história desde fins do século XV, Vol. III. Porto:
Tip. Sequeira, Lda
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B3nio_de_Oliveira_da_Silva_Gaio, ac. agosto de
2014
http://www.uc.pt/org/historia_ciencia_na_uc/autores/GAIO_antoniodeoliveiradasilva,
ac. agosto de 2014
Barreiros, J. (1982).História da Literatura Portuguesa. Vol.
II. Séc. XIX-XX. Braga: Livraria Editora Pax L.da
Braga, T. (1986). História da Literatura Portuguesa. Vol. V e VI. Mem Martins:
Publicações Europa-América
Lisboa,
E. (coord.) – Instituto Português do Livro e da Leitura (1990). Dicionário Cronológico de Autores
Portugueses. Vol. II. Mem Martins: Publicações Europa-América
Marques,
F. (1990). Introdução a António da Silva
Gaio, Mário, Vol. I, ed. dir. António Reis. Lisboa: Alfa, Testemunhos
Contemporâneos
Pereira, J. (1998). A obra e a ação literária de Manuel da Silva Gaio. Coimbra: Escola
do poeta Manuel da Silva Gaio
Ribeiro,
T. (1917). Esboço Biográfico, in Mário. 4.ª ed.. Porto: Companhia Portuguesa
Editora
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