O Papa,
comentando o Evangelho de domingo (cf Mt
16,21-23), em que Jesus repreende severamente o Apóstolo por ele, servindo de
estorvo, zelar os interesses dos homens, não os de Deus e, portanto, sem dar
por ela, estar da parte de Satanás, o tentador, afirmou que o cristão está
chamado a viver bem inserido no mundo, mas sem ser mundano (cf Jo 17,9.15). Também recorda que Paulo, na 2.ª leitura, exorta os
cristãos de Roma a “não se conformarem com este mundo, mas a deixarem-se
transformar, renovando o seu modo de pensar, para poderem discernir a vontade
de Deus” (cf Rm 12,2).
É certo que os
cristãos vivem no mundo, inseridos nas realidades sociais e culturais de cada tempo.
E é justo que assim seja, mas isto comporta o risco de nos tornarmos mundanos, o risco de que “o sal perca o seu sabor” (cf Mt 5,13), de que o cristão se dilua, perca a carga de novidade que
lhe vem do Senhor e do Espírito. Ora deveria ser o contrário – declarou o
Pontífice, citando Paulo VI e observando que, quando nos cristãos permanece
viva a força do Evangelho, pode transformar “os critérios de juízo, os valores
determinantes, os pontos de interesse, as linhas de pensamento, as fontes
inspiradoras, os modelos de vida” (Evangelii Nuntiandi).
Francisco aponta
a necessidade de contínua renovação a partir do alimento da linfa do Evangelho,
pela leitura e meditação quotidiana do Evangelho, pela participação na Missa
dominical (para a pessoa se encontrar com o Senhor na comunidade, escutando a
Palavra e recebendo a Eucaristia que nos une a Ele e entre nós), pela oração,
pelos dias de retiro e, mesmo, pelos exercícios espirituais. Graças a estes
dons do Senhor e meios, os seus discípulos podem conformar-se, não ao mundo,
mas a Cristo, seguindo-O no seu caminho, na via da perda da própria vida para a encontrar: perdê-la, doando-a,
oferecê-la por amor e no amor… É uma doação que requer o sacrifício, a cruz,
para a receber novamente – purificada, libertada do egoísmo e da hipoteca da
morte, plena de eternidade. Belas e exigentes palavras!
***
Ao ler o comentário pontifical,
cuja síntese fica exposta, e ao ouvir a homiliada celebração dominical, veio-me
à memória a aula de leitura do Auto da
Alma, de Gil Vicente (com alunos do 10.º ano de uma escola secundária), que
“foi feito à muito devota Rainha D. Leonor e representado ao mui poderoso e
nobre Rei D. Manuel, seu irmão, por seu mandado, na cidade de Lisboa, nos Paços
da Ribeira, em a noite de endoenças” (Quinta-feira Santa), em 1508.
Considero que aquela figura
alegórica, a Alma, incarna a condição
do homem peregrino, sujeito às vicissitudes do mundo e às tentações dos
tradicionalmente denominados inimigos da alma ou do homem (mundo, demónio e
carne), mas também com os apelos do Bem, do Alto, da Consciência, de Deus. O Diabo apresenta-se como o zelador do
pensamento e dos interesses dos homens mundanais (há por cá tantos diabos com
aparência de homens), ao passo que o Anjo
zela os interesses de Deus junto da alma (o homem). Também, graças a Deus, há
muitíssimos anjos neste mundo com face humana! Traz outrossim o Auto ao ambiente dramático uma grande inovação
vicentina do âmbito ideológico, que rompe com o status doutrinal medievo, muito querido ao movimento da Reforma e
ao Renascimento e praticamente ausente do cristianismo tradicional: a
liberdade. Segundo esta prerrogativa do homem, ele torna-se responsável por
todas as suas decisões, boas ou más. Não tem que alijar para outrem as suas
responsabilidades, muito menos para Deus ou para as forças ocultas: “Vosso
livre alvidrio, / isento, forro, poderoso, / vos é dado / polo divinal poderio
/ e senhorio / que possais fazer glorioso / vosso estado”.
Por outro lado, temos aqui uma
imagem de Igreja complementar daquela que Francisco não se cansa de apresentar.
Ele apresenta-a assiduamente como a caminho ou em saída a todas as periferias
existenciais, qual hospital de campanha em socorro da humanidade ferida. Mas o
atual Bispo de Roma também define a Igreja com Casa das Bem-aventuranças, o
espaço onde os que sofrem encontram abrigo. Ora, é esta dimensão de Igreja que
Gil Vicente releva nos alvores do século XVI, quando a designa como
estalajadeira (também está no caminho) para refeição e descanso das almas que
peregrinam para a eterna morada de Deus:
“Assi
como foi cousa muito necessária haver nos caminhos estalagens, pera repouso e
refeição dos cansados caminhantes, assi foi cousa conveniente que nesta
caminhante vida houvesse uma estalajadeira, pera refeição e descanso das almas
que vão caminhantes pera a eternal morada de Deus. Esta estalajadeira das almas
é a Madre Santa Igreja, a mesa é o altar, os manjares as insígnias da Paixão.
E não podemos esquecer que, se a
Igreja é estalajadeira, ela e seus estalajadeiros participam da condição da Alma. Estiveram e estão também a caminho,
com ela sofreram o cansaço, a tentação, a fome, o desconforto. A dicotomia
entre Alma e Igreja é mera aparência. Os quatro doutores da Igreja (S. Tomás,
S. Jerónimo, S. Ambrósio e S. Agostinho),
agora luminares e “pilares” da Igreja, já foram caminhantes e um deles,
Agostinho, foi bem pecador.
A peça tem duas partes distintas:
a caminhada da Alma na sua viagem; e
o conforto de repouso e retemperação de forças pelo repouso e pela refeição na
divinal pousada.
A caminhada é encimada por uma
espécie de prólogo a cargo de Santo Agostinho, um dos serviçais da mencionada
estalajadeira, que apresenta a Alma na sua dupla condição: pertencente à
natureza humana “transitória”, “cansada em várias calmas”; e redimida por
Cristo, o qual, por Sua Morte, “comprou, penando”, as iguarias que hão de
satisfazer as necessidades da Alma,
servidas pelos estalajadeiros da Santa Madre igreja. Por seu turno, o Anjo adverte a Alma das possibilidades que lhe dá o livre arbítrio (liberdade):
“Deu-vos
livre entendimento, / e vontade libertada / e a memória, / que tenhais em vosso
tento / fundamento, / que sois por Ele criada / pera a glória”.
Nesta caminhada, a Alma segue a estrada entre as tentações
do Diabo e as solicitações do Anjo. O Diabo, menosprezando as recomendações do seu opositor, convida-a
não ter pressa, a parar para bem sentir o gozo dos prazeres, da riqueza e
poder, da beleza pessoal com todos os seus adereços e do estatuto da cortesã
que está pronta, mais do que a servir, a ser servida. O Anjo, pelo contrário, estimula-a a andar prestes, sobretudo para
não contemporizar com as solicitações do mundo e com a fugacidade da vida
prazenteira, que só lhe dará desgostos, nomeadamente o desgosto eterno. A Alma começa por resistir ao Diabo. Mas, pelo discurso final do Anjo
e pela declaração da Alma, já antes
(“Faço o que vejo fazer / polo mundo), mas sobretudo, perante a Igreja, ela terá eventualmente sucumbido
(“sou uma alma que pecou culpas mortais”).
No entanto, é o Anjo que vence esta batalha acenando à Alma com a gentileza da estalajadeira
(“hóspeda”), que lhe fará “tantos favores” e com a promessa de um novo estatuto
– “outra passada, / que não tendes de andar tanto / a ser esposa” (de Cristo,
tal como a Igreja).
E a sua segunda parte
desenrola-se em torno da pousada.
À porta, assistimos ao arrependimento
da Alma, ao acolhimento da Igreja, à conversa entre dois diabos (numa espécie de interlúdio em
que os diabos se põem a carpir do insucesso de suas diligências, que se
goraram, graças à persistência do Anjo)
e ao rasgo da Alma, que se sente fora
do mundo (“fora do ódio / de meu Deos”) e quer responder ao “convite
prezado / do Senhor / guisado aos pecadores / com as dores / de Cristo
crucificado, / redentor”.
Dentro da pousada, está a Alma sentada à mesa, com o Anjo em pé junto dela. Vêm os quatro
doutores com quatro bacios de cozinha cobertos, cantando um hino de saudação à
Cruz de Cristo, Vexilla regis prodeunt
(Avançam os estandartes do Rei). Agostinho
apresenta a Ceia à Alma e, por
indicação da Igreja, faz a oração de
anamnese das maravilhas da redenção divina e a de bênção da mesa. Depois, a Alma purifica-se na água oferecida pela Igreja e limpa-se na toalha da Verónica,
em que Jesus imprimiu a sua Face e canta-se Salve,
santa Facies (Salve, ó santa Face). Depois, servem-se as iguarias, os
instrumentos da paixão de Cristo apresentados por Jerónimo (a 1.ª, a 2.ª e a 4.ª)
e Agostinho (a 3.ª e a sobremesa)
e que todos adoram cantando.
A primeira iguaria é formada pelos
açoites, perante os quais os doutores cantam Ave, Flagellum (Salve, ó chicote). Perante a segunda iguaria, a
coroa de espinhos, oferecida à Alma, os
doutores cantam Ave, corona spinarum (Salve,
ó coroa de espinhos). E a terceira iguaria são os cravos, perante os quais se
canta Dulce lignum, dulcis clavus (Doce
madeiro, doce cravo).
Antes da quarta iguaria, a Cruz,
o Anjo quer que a Alma se dispa do vestido
e joias que o inimigo lhe dera. Perante o crucifixo entregue à Alma, os doutores cantam Domine Iesu Christe (Senhor Jesus
Cristo). Depois, a Alma perora sobre
a Paixão e Morte de Cristo.
E Agostinho, finalmente, para que a Alma, reconfortada pelo repouso e pela refeição redentora, prossiga
viagem sem percalço, recomenda a sobremesa:
“A
fruita deste jantar, / que neste altar vos foi dado / com amor, / iremos todos
buscar / ao pomar / adonde está sepultado / o Redentor”.
E todos com a Alma, cantando Te Deum laudamus (Nós Te louvamos, ó Deus), foram adorar o
moimento.
***
Recordo que os mencionados alunos
e alunas do 10.º ano fizeram uma leitura dramatizada pelas ruas da respetiva
vila e terminaram entrando na igreja cujo altar-mor guarda dentro de si a
imagem do Cristo sepultado. E espontaneamente, às palavras de Agostinho, rodearam o dito altar e
ajoelharam rezando em voz submissa. Quem dera que esse exemplo proliferasse por
cá!
+++
Eis uma peça de Gil Vicente todinha em português. É de salientar como durante cinco séculos o texto oferece
uma compreensão imediata, com pouquinhas palavras caídas em desuso. Ressalta a
luta entre o Bem e o Mal e entre os corifeus de um e de outro; as alegorias,
sobretudo da Alma e da Igreja; o clima místico das falas; e a ideologia que
estriba a salvação mais no sacrifício que nas boas obras. Tudo isto sabe a medievalismo.
Porém, o sentido crítico das riquezas, poderio, espírito cortesão e estilo
sumptuoso e o acento na liberdade individual como fonte de responsabilidade,
aliados a uma estrutura quase clássica pelo lirismo dos versos e da sua métrica
bem ordenada e uma rima quase sempre perfeita, são elementos do pioneirismo de
nova estética e novas ideias
Será que a plateia, formada na maioria pela nobreza,
com seus criados, ao ouvir as falas do Anjo
que condena o luxo, e a alma, cansada, diante da Igreja, a pedir perdão, sairia
da peça bem disposta?
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