segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Zelo pelos interesses de Deus vs pelos dos homens

O Papa, comentando o Evangelho de domingo (cf Mt 16,21-23), em que Jesus repreende severamente o Apóstolo por ele, servindo de estorvo, zelar os interesses dos homens, não os de Deus e, portanto, sem dar por ela, estar da parte de Satanás, o tentador, afirmou que o cristão está chamado a viver bem inserido no mundo, mas sem ser mundano (cf Jo 17,9.15). Também recorda que Paulo, na 2.ª leitura, exorta os cristãos de Roma a “não se conformarem com este mundo, mas a deixarem-se transformar, renovando o seu modo de pensar, para poderem discernir a vontade de Deus” (cf Rm 12,2).
É certo que os cristãos vivem no mundo, inseridos nas realidades sociais e culturais de cada tempo. E é justo que assim seja, mas isto comporta o risco de nos tornarmos mundanos, o risco de que “o sal perca o seu sabor” (cf Mt 5,13), de que o cristão se dilua, perca a carga de novidade que lhe vem do Senhor e do Espírito. Ora deveria ser o contrário – declarou o Pontífice, citando Paulo VI e observando que, quando nos cristãos permanece viva a força do Evangelho, pode transformar “os critérios de juízo, os valores determinantes, os pontos de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras, os modelos de vida” (Evangelii Nuntiandi).
Francisco aponta a necessidade de contínua renovação a partir do alimento da linfa do Evangelho, pela leitura e meditação quotidiana do Evangelho, pela participação na Missa dominical (para a pessoa se encontrar com o Senhor na comunidade, escutando a Palavra e recebendo a Eucaristia que nos une a Ele e entre nós), pela oração, pelos dias de retiro e, mesmo, pelos exercícios espirituais. Graças a estes dons do Senhor e meios, os seus discípulos podem conformar-se, não ao mundo, mas a Cristo, seguindo-O no seu caminho, na via da perda da própria vida para a encontrar: perdê-la, doando-a, oferecê-la por amor e no amor… É uma doação que requer o sacrifício, a cruz, para a receber novamente – purificada, libertada do egoísmo e da hipoteca da morte, plena de eternidade. Belas e exigentes palavras!
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Ao ler o comentário pontifical, cuja síntese fica exposta, e ao ouvir a homiliada celebração dominical, veio-me à memória a aula de leitura do Auto da Alma, de Gil Vicente (com alunos do 10.º ano de uma escola secundária), que “foi feito à muito devota Rainha D. Leonor e representado ao mui poderoso e nobre Rei D. Manuel, seu irmão, por seu mandado, na cidade de Lisboa, nos Paços da Ribeira, em a noite de endoenças” (Quinta-feira Santa), em 1508.
Considero que aquela figura alegórica, a Alma, incarna a condição do homem peregrino, sujeito às vicissitudes do mundo e às tentações dos tradicionalmente denominados inimigos da alma ou do homem (mundo, demónio e carne), mas também com os apelos do Bem, do Alto, da Consciência, de Deus. O Diabo apresenta-se como o zelador do pensamento e dos interesses dos homens mundanais (há por cá tantos diabos com aparência de homens), ao passo que o Anjo zela os interesses de Deus junto da alma (o homem). Também, graças a Deus, há muitíssimos anjos neste mundo com face humana! Traz outrossim o Auto ao ambiente dramático uma grande inovação vicentina do âmbito ideológico, que rompe com o status doutrinal medievo, muito querido ao movimento da Reforma e ao Renascimento e praticamente ausente do cristianismo tradicional: a liberdade. Segundo esta prerrogativa do homem, ele torna-se responsável por todas as suas decisões, boas ou más. Não tem que alijar para outrem as suas responsabilidades, muito menos para Deus ou para as forças ocultas: “Vosso livre alvidrio, / isento, forro, poderoso, / vos é dado / polo divinal poderio / e senhorio / que possais fazer glorioso / vosso estado”.
Por outro lado, temos aqui uma imagem de Igreja complementar daquela que Francisco não se cansa de apresentar. Ele apresenta-a assiduamente como a caminho ou em saída a todas as periferias existenciais, qual hospital de campanha em socorro da humanidade ferida. Mas o atual Bispo de Roma também define a Igreja com Casa das Bem-aventuranças, o espaço onde os que sofrem encontram abrigo. Ora, é esta dimensão de Igreja que Gil Vicente releva nos alvores do século XVI, quando a designa como estalajadeira (também está no caminho) para refeição e descanso das almas que peregrinam para a eterna morada de Deus:
“Assi como foi cousa muito necessária haver nos caminhos estalagens, pera repouso e refeição dos cansados caminhantes, assi foi cousa conveniente que nesta caminhante vida houvesse uma estalajadeira, pera refeição e descanso das almas que vão caminhantes pera a eternal morada de Deus. Esta estalajadeira das almas é a Madre Santa Igreja, a mesa é o altar, os manjares as insígnias da Paixão.
E não podemos esquecer que, se a Igreja é estalajadeira, ela e seus estalajadeiros participam da condição da Alma. Estiveram e estão também a caminho, com ela sofreram o cansaço, a tentação, a fome, o desconforto. A dicotomia entre Alma e Igreja é mera aparência. Os quatro doutores da Igreja (S. Tomás, S. Jerónimo, S. Ambrósio e S. Agostinho), agora luminares e “pilares” da Igreja, já foram caminhantes e um deles, Agostinho, foi bem pecador.
A peça tem duas partes distintas: a caminhada da Alma na sua viagem; e o conforto de repouso e retemperação de forças pelo repouso e pela refeição na divinal pousada.
A caminhada é encimada por uma espécie de prólogo a cargo de Santo Agostinho, um dos serviçais da mencionada estalajadeira, que apresenta a Alma na sua dupla condição: pertencente à natureza humana “transitória”, “cansada em várias calmas”; e redimida por Cristo, o qual, por Sua Morte, “comprou, penando”, as iguarias que hão de satisfazer as necessidades da Alma, servidas pelos estalajadeiros da Santa Madre igreja. Por seu turno, o Anjo adverte a Alma das possibilidades que lhe dá o livre arbítrio (liberdade):
“Deu-vos livre entendimento, / e vontade libertada / e a memória, / que tenhais em vosso tento / fundamento, / que sois por Ele criada / pera a glória”.
Nesta caminhada, a Alma segue a estrada entre as tentações do Diabo e as solicitações do Anjo. O Diabo, menosprezando as recomendações do seu opositor, convida-a não ter pressa, a parar para bem sentir o gozo dos prazeres, da riqueza e poder, da beleza pessoal com todos os seus adereços e do estatuto da cortesã que está pronta, mais do que a servir, a ser servida. O Anjo, pelo contrário, estimula-a a andar prestes, sobretudo para não contemporizar com as solicitações do mundo e com a fugacidade da vida prazenteira, que só lhe dará desgostos, nomeadamente o desgosto eterno. A Alma começa por resistir ao Diabo. Mas, pelo discurso final do Anjo e pela declaração da Alma, já antes (“Faço o que vejo fazer / polo mundo), mas sobretudo, perante a Igreja, ela terá eventualmente sucumbido (“sou uma alma que pecou culpas mortais”).
No entanto, é o Anjo que vence esta batalha acenando à Alma com a gentileza da estalajadeira (“hóspeda”), que lhe fará “tantos favores” e com a promessa de um novo estatuto – “outra passada, / que não tendes de andar tanto / a ser esposa” (de Cristo, tal como a Igreja).
E a sua segunda parte desenrola-se em torno da pousada.
À porta, assistimos ao arrependimento da Alma, ao acolhimento da Igreja, à conversa entre dois diabos (numa espécie de interlúdio em que os diabos se põem a carpir do insucesso de suas diligências, que se goraram, graças à persistência do Anjo) e ao rasgo da Alma, que se sente fora do mundo (“fora do ódio / de meu Deos”) e quer responder ao “convite prezado / do Senhor / guisado aos pecadores / com as dores / de Cristo crucificado, / redentor”.
Dentro da pousada, está a Alma sentada à mesa, com o Anjo em pé junto dela. Vêm os quatro doutores com quatro bacios de cozinha cobertos, cantando um hino de saudação à Cruz de Cristo, Vexilla regis prodeunt (Avançam os estandartes do Rei). Agostinho apresenta a Ceia à Alma e, por indicação da Igreja, faz a oração de anamnese das maravilhas da redenção divina e a de bênção da mesa. Depois, a Alma purifica-se na água oferecida pela Igreja e limpa-se na toalha da Verónica, em que Jesus imprimiu a sua Face e canta-se Salve, santa Facies (Salve, ó santa Face). Depois, servem-se as iguarias, os instrumentos da paixão de Cristo apresentados por Jerónimo (a 1.ª, a 2.ª e a 4.ª) e Agostinho (a 3.ª e a sobremesa) e que todos adoram cantando.
A primeira iguaria é formada pelos açoites, perante os quais os doutores cantam Ave, Flagellum (Salve, ó chicote). Perante a segunda iguaria, a coroa de espinhos, oferecida à Alma, os doutores cantam Ave, corona spinarum (Salve, ó coroa de espinhos). E a terceira iguaria são os cravos, perante os quais se canta Dulce lignum, dulcis clavus (Doce madeiro, doce cravo).
Antes da quarta iguaria, a Cruz, o Anjo quer que a Alma se dispa do vestido e joias que o inimigo lhe dera. Perante o crucifixo entregue à Alma, os doutores cantam Domine Iesu Christe (Senhor Jesus Cristo). Depois, a Alma perora sobre a Paixão e Morte de Cristo.
E Agostinho, finalmente, para que a Alma, reconfortada pelo repouso e pela refeição redentora, prossiga viagem sem percalço, recomenda a sobremesa:
“A fruita deste jantar, / que neste altar vos foi dado / com amor, / iremos todos buscar / ao pomar / adonde está sepultado / o Redentor”.
E todos com a Alma, cantando Te Deum laudamus (Nós Te louvamos, ó Deus), foram adorar o moimento.
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Recordo que os mencionados alunos e alunas do 10.º ano fizeram uma leitura dramatizada pelas ruas da respetiva vila e terminaram entrando na igreja cujo altar-mor guarda dentro de si a imagem do Cristo sepultado. E espontaneamente, às palavras de Agostinho, rodearam o dito altar e ajoelharam rezando em voz submissa. Quem dera que esse exemplo proliferasse por cá!
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Eis uma peça de Gil Vicente todinha em português. É de salientar como durante cinco séculos o texto oferece uma compreensão imediata, com pouquinhas palavras caídas em desuso. Ressalta a luta entre o Bem e o Mal e entre os corifeus de um e de outro; as alegorias, sobretudo da Alma e da Igreja; o clima místico das falas; e a ideologia que estriba a salvação mais no sacrifício que nas boas obras. Tudo isto sabe a medievalismo. Porém, o sentido crítico das riquezas, poderio, espírito cortesão e estilo sumptuoso e o acento na liberdade individual como fonte de responsabilidade, aliados a uma estrutura quase clássica pelo lirismo dos versos e da sua métrica bem ordenada e uma rima quase sempre perfeita, são elementos do pioneirismo de nova estética e novas ideias

Será que a plateia, formada na maioria pela nobreza, com seus criados, ao ouvir as falas do Anjo que condena o luxo, e a alma, cansada, diante da Igreja, a pedir perdão, sairia da peça bem disposta? 

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