Sim, o Papa Francisco, na homilia
da celebração matinal do dia 23 de setembro, em Santa Marta, falou da Palavra
de Deus. É a coisa mais natural – dirão alguns. Pois é, mas eu não sei dizer
com absoluta certeza se muitos dos que o admiram topam que o seu discurso
habitual, mesmo que não o pareça, é sempre fundado na palavra de Deus. Por
exemplo, quando denuncia uma economia que mata, por cavar o fosso cada vez
maior entre ricos e pobres, poderosos e fracos, opressores e oprimidos, tem
como subtexto a Palavra de Deus, que nos diz: Eu vi a opressão do meu povo e ouvi o seu clamor… desci a fim de o
libertar (vd Ex 3,7.8);
Olhai que o salário que não pagastes aos
trabalhadores está a clamar e os clamores chegaram ao Senhor do Universo (cf
Tg 5,4); Vós desonrais o pobre. Porventura não são os
ricos que vos oprimem? (cf Tg 2, 6). E, se compulsarmos todo o
Evangelho de Lucas, qual Evangelho dos pobres e da compaixão do Senhor, ou o
capítulo 25 do Evangelho de Mateus (Mt 25,31-46), com o elenco das obras – dar
de comer ao faminto, dar de beber a quem tem sede, vestir o nu, dar pousada ao
peregrino e visitar o enfermo e o encarcerado – que servem de necessário critério
de admissão ao Paraíso, mais esclarecidos ficaremos.
Mesmo, quando intervém e é ouvido
como Chefe de Estado, ninguém o ouve ou entende como simples Chefe de Estado. É
na força da Palavra que reside a autoridade moral e o desassombro com que se
dirige a todos. E, se nem sempre se evidencia a eficácia da sua influência, ao
menos serve o mundo como uma peculiar referência de sabedoria, de coração, de
humanismo, de transcendência.
***
Sobre a Palavra de Deus, para lá
das intervenções normais do Magistério Eclesiástico, devem salientar-se os
seguintes documentos: o Concílio Vaticano II produziu uma constituição dogmática,
a Dei Verbum; Paulo VI elaborou uma
exortação emblemática sobre a atualização e a difusão da palavra de Deus,
enquanto fermento evangélico no mundo todo e em todos os seus escaninhos, a Evangelii Nuntiandi, e, durante o seu
pontificado, a Congregação para o Clero publicou o Diretório Catequístico Geral; João Paulo II elaborou a exortação
apostólica Catechesi Tradendade e
mandou publicar o Catecismo da Igreja
Católica e, durante o seu pontificado, a mesma Congregação para o Clero
publicou o Diretório Geral para a
Catequese; e Bento XVI elaborou uma exortação pós-sinodal, a Verbum Domini, e mandou publicar o
Compêndio do Catecismo da Igreja Católica.
Ora, Papa Francisco, que tem toda
uma panóplia de intervenções e documentos radicados na Palavra de Deus, diz-nos
frequentemente coisas bem importantes.
Com efeito, a Palavra de Deus
deve ser ouvida, lida e guardada no coração, como fazia Maria ao guardar tudo
em seu coração (cf Lc 2,19), uma vez que não se trata de “uma banda desenhada”
(rica imagem, pela negativa: a banda desenhada entranha-se na mente pelo texto
leve e encanta pela visualização, mas não transforma ninguém) para ler, mas “um
ensinamento que deve ser ouvido com o coração e posto em prática na vida diária”.
Tanto assim é que, “enquanto Ele
falava, uma mulher, levantando a voz no meio da multidão, clamava, Felizes as entranhas que te trouxeram e os
seios que te amamentaram, ao que Jesus retorquiu: “Felizes, antes, aqueles que escutam a Palavra de Deus e a põem em
prática”. E a carta de Tiago declara: “Tendes
de pôr em prática a Palavra e não apenas ouvi-la, enganando-vos a vós mesmos,
porque quem se contenta em ouvir a Palavra, sem a pôr em prática, assemelha-se
a alguém que mira a sua fisionomia ao espelho – e, mal acaba de se contemplar,
sai dali e esquece-se de como era” (Tg 1,22-24).
Nestes termos, o papa conclui que
a Palavra de Deus cria um compromisso
acessível a todos, pois, ainda que “a tenhamos complicado um pouco”, a vida
cristã é “muito simples”: de facto, “ouvir a palavra de Deus e pô-la em
prática” são as únicas duas “condições” impostas por Jesus a quem o quer
seguir. Mais: a carta de Tiago, já citada, também assegura: “Aquele que medita com atenção a lei
perfeita, a lei da liberdade, e nela persevera – não como quem a ouve e logo dela
se esquece, mas como quem a cumpre – esse encontrará a felicidade ao pô-la em
prática” (Tg 1,25).
Na celebração da Eucaristia do
passado dia 23, o Pontífice refletiu em particular sobre o trecho do Evangelho
de Lucas (vd Lc 8,19-21),
que refere que a mãe e os irmãos de Jesus não conseguem “aproximar-se d’Ele por
causa da multidão”. Porém, entre os muitos que o seguiam, havia pessoas que
reconheciam nele “uma autoridade nova, um modo de falar novo”, sentiam “a força
da salvação” que d’Ele advinha. Segundo o Bispo de Roma, “era o Espírito Santo
que comovia o coração deles”. No entanto, sublinhou que, no meio da multidão
havia pessoas que seguiam Jesus com segundas intenções: umas “por conveniência”
e carreirismo, outras por gregarismo ou moda e curiosidade (digo eu) e outras
talvez pela “vontade de serem melhores. Quase “como nós” hoje, disse o Papa
transpondo o discurso para a atualidade. Como então, as pessoas que seguem
Jesus têm de purificar as suas intenções. É – diz Francisco – uma história que
se repete, já que então Jesus repreendia quem O seguia por motivos que não eram
os do Reino dos Céus. E exemplifica com o que se passou depois da multiplicação
dos pães (cf Jo 6,20-21)
ou com os dez leprosos, dos quais só um – um samaritano – voltou para Lhe
agradecer, enquanto “os outros nove ficaram felizes com o restabelecimento da
sua saúde e esqueceram Jesus” (cf Lc 17,11-19).
O Pontífice insistiu na exortação
em ouvirmos a Palavra, verdadeiramente, na Bíblia e, em especial, no Evangelho,
meditando as Escrituras para pôr em prática os seus conteúdos na vida quotidiana.
Mas, esclareceu, que, se folhearmos o Evangelho superficialmente, então “isto
não é ouvir a Palavra de Deus: é ler a palavra de Deus, como se lê uma banda
desenhada”. Ao invés, ouvir a palavra de Deus “é ler” e meditar,
questionando-se: “Mas o que diz isto ao meu coração? Que quer dizer-me Deus com
esta palavra?”. Por consequência, só assim “a nossa vida muda”, só assim se
opera a metanoia (a conversão /
transformação da mente, do coração, das atitudes e dos comportamentos). E
Francisco especificou que “Deus não fala só a todos, mas fala a cada um de nós.
O Evangelho foi escrito para cada um de nós” e não só para os outros.
Sem dúvida, reconhece Francisco,
“é mais fácil viver tranquilamente sem se preocupar com as exigências da
palavra de Deus”. Os mandamentos, enunciados no decálogo moisaico (vd
Ex 20,1ss; Dt 5,1ss)
retomados nos evangélicos sinóticos (cf Mt, 22,34-40; Mc
12,28-34; Lc 10,25-28, a que se segue a parábola do bom samaritano) e assumidos como mandamento de
Cristo em João (vd Jo 13,33-35), são, de acordo com o discurso
papal, “precisamente o modo de pôr em prática” a Palavra do Senhor. E o mesmo é
especialmente válido para todas e cada uma das bem-aventuranças enunciadas nos
evangelhos de Lucas (vd Lc 6,20-26) e de Mateus (vd
Mt 5,1-12), que
atualizam em termos neotestamentários a interiorização pessoal e a expressão
comunitária do decálogo e que se replicam nas obras indicadas no capítulo 25 do
Evangelho de Mateus (vd Mt 25,31-40), que garantem, pelo seu
cumprimento dedicado, a entrada definitiva no reino, preparado para nós por
Deus desde o princípio do mundo.
E concluiu o Pontífice: também
hoje, Jesus continua a acolher todos, até os que vão ouvir a Palavra de Deus e
depois O atraiçoam”, como Judas (cf Mt 26,25) a quem Ele chamou de “amigo” (cf
Mt 26,50). O Senhor
“semeia sempre a sua palavra” e, “em troca pede só um coração aberto para a
escutar e boa vontade para a pôr em prática”, o bom terreno: “E aquele que
recebeu a semente em boa terra é o que ouve a Palavra e a compreende (a apanha e a interioriza para a praticar);
esse dá fruto e produz ora cem ora sessenta ora trinta” (Mt
13,23).
***
Paulo, na 2.ª carta a Timóteo, dá-nos
garantia da fiabilidade da Sagrada Escritura e a certeza da sua utilidade: “Tu, porém, permanece naquilo que aprendeste e de que
foste inteirado, sabendo de quem o tens aprendido, pois que, desde a tua
meninice sabes as Sagradas Escrituras, que podem fazer-te sábio para a
salvação, pela fé que temos em Cristo Jesus. Toda a Escritura é divinamente
inspirada e proveitosa para ensinar, para redarguir, para corrigir, para
instruir na justiça, a fim de que o homem
de Deus seja perfeito e esteja perfeitamente preparado para toda a boa obra.” (2 Tm 3,14-17).
Já na era
veterotestamentária o profeta Isaías nos advertia: “Porque, assim como desce a chuva
e a neve dos céus e para lá não tornam sem regarem a terra e a fazerem
produzir, brotar e dar semente ao semeador e pão ao que come, assim será a
minha palavra, que sair da minha boca, não voltará para mim vazia sem ter
feito, antes, o que me apraz e sem cumprir a sua missão, prosperando naquilo
para que a enviei.” (Is 55,10-11).
E o texto do Evangelho que Francisco
comentava mostra que é a Palavra de Deus posta em prática que nos torna
familiares (parentes, próximos) de Jesus: “Minha mãe e meus irmãos são aqueles
que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática” (Lc
8,21).
Assim, o Papa e os demais
pastores não hão de cansar-se (por gosto e dever de ofício) de dissertar sobre
a Palavra de Deus – nem que a língua lhes doa – como quem a vive por dentro e a
faz irradiar – o que devem fazer, segundo as suas possibilidades, todos e cada
um dos cristãos, incessantemente.
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