sexta-feira, 26 de setembro de 2014

As inefáveis motivações da reforma da justiça


Perdi algum tempo, que pretendia e pensava ganhar, a ver e ouvir o debate sobre o colapso da reforma da justiça no Programa “Prós e Contras”, do passado dia 22, na RTP 1. E a primeira coisa que me escandalizou foi o que sucedeu quando Sua Excelência o Secretário de Estado da Justiça começou, logo na sua primeira intervenção, a confessar, lá do alto da sua autoridade ética, que desejava que o debate decorresse com elevação – o que reiterou em várias ocasiões.
Não intento entrar na substância do debate, porque, pelos vistos, a justiça em Portugal deixa de ser um valor acessível a todos e gerida por pessoas comuns, quando eu, não sendo especialista, entendia ser um daquele “todos” e lidar na administração da justiça com pessoas de bom senso e que soubessem de direito e realidades, mas não juízes que, à maneira dos especialistas médicos (o oftalmologista só sabe de olhos, o pneumologista só trata de pulmões…) saibam só disto ou daquilo e não daquilo nem daqueloutro.
Em todo o caso, gostaria de me rir – o que não fiz nem faço por ser coisa muitíssimo séria – pela confusão semântica estabelecida. Desapareceram ou não os processos da plataforma Citius com a migração dos processos para as 23 novas comarcas ou respetivas secções de competência genérica e/ou de competência específica? Secretário de Estado garantiu que nenhum processo desapareceu, enquanto advogados ali presentes diziam a pé firma que desapareceram. Depois, veio a saber-se que não terão efetivamente desaparecido, mas que uns não estavam disponíveis para consulta e para utilização, outros ninguém sabia onde estavam e de outros nem se sabia se existiam se não. Porém, o ilustre membro do Governo não se esqueceu de acusar o Governo anterior de fazer desaparecer peças processuais. Até retorquiu, a quem falava de um tribunal ora encerrado e que fora objeto de avultadas quantias em construção de raiz, que não foi ele quem fez essas obras. Quanto aos processos, chegou a afirmar-se que não desapareceram, mas que não se encontram…
Ao longo da semana, a informação prestada em vários meios de comunicação confirma o desaparecimento ou a indisponibilidade dos processos na plataforma Citius, introduz o esclarecimento da Ministra sobre a existência de vários backup dos processos e revela que alguns processos foram parar a tribunais extintos. Trata-se de cerca de três milhões e meio de processos, mais de oitenta milhões de documentos! A justiça, segundo o que diz quem está por dentro do sistema, está nos serviços mínimos, ou seja, como se dizia no mencionado programa televisivo, resolve os casos de emergência e concretiza mais algumas diligências, poucas – e com recurso ao papel e ao correio convencional. Não se circunscreve a um mero percalço ou simples transtorno, como é voz governamental.
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A reforma da justiça e, em particular, o novo mapa judiciário acabam por desencantar os corifeus e sequazes da ideia reformadora e parecem dar agora razão acrescida aos seus contestatários. O caos não se verificaria, caso o sistema operativo, hoje necessário para a sua aplicação, tivesse sido objeto de testagem mais abundante (e não da de simples amostragem), a capacidade da plataforma informática fosse suficientemente dimensionada e a migração dos processos dos anteriores tribunais comarcãos e de tribunais especializados se processasse de modo faseado, de modo a não engasgar o sistema. Mas esta é uma das pequenas máculas que soem cair nas reformas portuguesas. Raramente as reformas passam por experiências-piloto. Excetuam-se poucas como, por exemplo, a da justiça delineada por Sócrates (devidamente anatematizada, mesmo no dito programa televisivo) baseada nas NUTs; e a da autonomia e gestão das escolas, determinada pelo decreto-lei n.º 172/91, de 10 de maio, que se aplicou em algumas escolas em regime experimental, mas que não chegou a generalizar-se, não tendo sido possível avaliar se as regras por aquele normativo estabelecidas possuíam uma eficácia a elas inerente, dado que paralelamente foram concedidas possibilidades de gestão parecida às escolas que seguiam as normas do decreto-lei n.º 769-A/76, de 23 de outubro. Reformas aplicadas de forma faseada também são poucas, entre as quais se contam aquelas que determinam aumento da escolaridade obrigatória. De resto, as reformas entram em vigor já e de todo. Algumas também se limitam a meia dúzia de palavras para justificar a passagem de alguém por determinadas pastas, a menos que se traduzam no agravamento das condições de vida do contribuinte. E a maior parte dos sistemas reformistas são substituídos sem a necessária avaliação dos resultados.
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Pelos vistos, a presente reforma da justiça, para lá das alterações (e até revisão) dos diversos códigos, configura um novo mapa judiciário. É claro que o comum dos cidadãos deixa habitualmente para os entendidos no direito o ónus da apreciação dos instrumentos da administração da justiça, como são as leis de enquadramento, os códigos e os regulamentos. A provisão dos quadros dos operadores da justiça fica justamente para as respetivas entidades representativas. Porém, a distribuição dos serviços de ministração da justiça, designadamente os tribunais, isso já diz respeito também aos cidadãos, sem diminuir em nada a responsabilidade de quem sabe de administração, gestão, direito e economia – mormente em matéria de justiça.
Entretanto, atente-se nas grandes palavras que determinaram o estabelecimento do novo mapa judiciário, ouvidas que foram, diz o Governo (?!), todas as estruturas representativas interessadas (que alguns autarcas desmentem): especialização, proximidade e avaliação.
Por nos falarem de avaliação dos magistrados, diga-se que se trata de uma estranha moda a criação de sistemas de avaliação, como se muita dela não fosse preparada e manipulada (segundo perspetivas de chefias na administração pública e na gestão empresarial), sem ter em conta um objeto de avaliação preciso. Um Primeiro-Ministro, ao menos neste aspeto, de má memória vociferou, em 2005, que há mais de 30 anos os professores não eram avaliados. Quanto aos senhores juízes e procuradores, parece que aquilo que não falta é a avaliação de desempenho e não sei se, por consequência, teremos tido melhores juízes e uma justiça cada vez mais isenta, célere e eficaz. Agora, parece que pretendem entregar a tarefa da avaliação a nova entidade e de acordo com novos parâmetros (por objetivos, como se de um banco se tratasse!). O importante, como em outras áreas, devia ser o melhor apuramento do perfil dos candidatos ao CEJ e a formação dos magistrados (inicial e contínua) por parâmetros cognitivos, sim, mas sobretudo de humanismo, contenção, bom senso e capacidade de ouvir para bem decidir (Repare-se que a nota académica não é o mais importante). Quanto ao mais, o desempenho obtuso seria colmatado com as medidas disciplinares adequadas e, em casos graves (de negligência e dolo), com as decisões judiciais previstas na lei; e o mérito relevante, com prémios de desempenho significativos. E poderiam poupar as populações a estas desnecessárias encenações.
Quanto à proximidade, não me obriguem a alinhar com o piropo político de que secção de proximidade é este governo em relação à troika e ao alinhamento europeu. Algumas decisões também são tomadas em Lisboa. Mas o território, senhores? Já sabemos que os advogados se deslocam com toda a facilidade ao sítio onde se faz o tribunal tal como a casa do cliente: o cliente tudo paga. Porém, o cidadão, se tiver de se deslocar ou de fazer deslocar as suas testemunhas, ou se inibe ou paga mais. Depois, vêm as deslocações para sítios diferentes conforme a especificidade das secções, o que gera despesas e confusões, com despesas em duplicado ou em triplicado. O apoio jurídico prestado pelo Estado é tremendamente limitado. E o acesso a uma justiça de base é um direito de todos os cidadãos.
Sim, que haja tribunais de competência específica em matérias de alta complexidade criminal (corrupção, fiscalidade, colarinho branco, etc.) e cível (ao nível empresarial, comercial) em comarcas de grandes dimensões (por exemplo as atuais 23) com o respetivo departamento de investigação e ação penal e o juízo de instrução criminal, tudo bem. Porém, para o crime comum e para as médias ações cíveis, a comarca deveria quanto possível coincidir com as áreas municipais (se há demasiados municípios, que se opere a sua reorganização). Todavia, nunca o número pode constituir um critério absoluto ou quase. Imaginem que a uma localidade, por não ter um número mínimo de pessoas convencionalmente estabelecido, se lhe corta o direito à justiça, à saúde, ao ensino, ao vestuário, à alimentação, ao policiamento, à segurança social. Será justo? Porque não pensam, antes, num reordenamento do território e da população mais simétrico, com os devidos incentivos ao povoamento e com as necessárias medidas de suscitação de emprego e empreendedorismo?
Finalmente, uma palavra sobre a especialização. É óbvio que a especialização será sempre bem-vinda nas diversas áreas, mas mantendo sempre a atenção à perspetiva holística das matérias. Já basta a corrida a especialistas que a medicina exige. Ninguém acredita que qualquer médico especialista tenha perdido a formação de base, mas a circunscrição a miniespecialização é cada vez mais frequente e nem sempre de forma razoável. Quem paga e sofre é o utente, cliente ou paciente.
Quanto à justiça, Deus nos livre que o país enverede por uma especialização dos juízes no sentido estrito. Não será necessária e terá efeitos perversos, por obrigar os cidadãos a ficar sujeitos à lei da oferta e da procura. Especializem-se, sim, os advogados, as entidades encarregadas da investigação e outros operadores, como funcionários e assessores. Quanto aos juízes, proporcione-se-lhes sólida formação em direito e outras ciências sociais e humanas, leitura das realidades, gestão das conflitualidades, capacidade de escutar peritos, especialistas e assessores – e sobretudo bom senso. Compete-lhes não tanto revelar erudição, mas sentido de apreciação e capacidade de decisão. Não lhes cabe a produção da prova, mas verificar se ela chegou a ser produzida e em que medida o foi. Ninguém pensa especializar os jurados, mas tão somente exigir-lhes capacidade de ouvir e bom senso para construir a decisão.
Evidentemente que, se não é por termos juízes especializados que teremos melhor justiça, também não será por termos secções, gabinetes e salas de audiências com “placas” (rótulo sou letreiros) de matérias especificadas que teremos juízes especializados. Mas é de todo conveniente que os juízes rodem por diversos lugares, serviços e juízos para adquirirem maleabilidade e evitarem a cristalização.
Quanto ao mais, há quem diga que a justiça é cega. Não sei se concorde com isso em toda a linha, mas sei que ela deve ser imparcial. Porém, o que não se tolera é que os seus reformadores e os seus administradores sejam cegos e sobretudo que façam cegos dos outros.

A justiça merece todo o cuidado e os cidadãos exigem todo o respeito pelos seus direitos!

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