Perdi algum tempo, que pretendia
e pensava ganhar, a ver e ouvir o debate sobre o colapso da reforma da justiça
no Programa “Prós e Contras”, do passado dia 22, na RTP 1. E a primeira coisa
que me escandalizou foi o que sucedeu quando Sua Excelência o Secretário de
Estado da Justiça começou, logo na sua primeira intervenção, a confessar, lá do
alto da sua autoridade ética, que desejava que o debate decorresse com elevação
– o que reiterou em várias ocasiões.
Não intento entrar na substância
do debate, porque, pelos vistos, a justiça em Portugal deixa de ser um valor
acessível a todos e gerida por pessoas comuns, quando eu, não sendo
especialista, entendia ser um daquele “todos” e lidar na administração da
justiça com pessoas de bom senso e que soubessem de direito e realidades, mas
não juízes que, à maneira dos especialistas médicos (o oftalmologista só sabe
de olhos, o pneumologista só trata de pulmões…) saibam só disto ou daquilo e
não daquilo nem daqueloutro.
Em todo o caso, gostaria de me
rir – o que não fiz nem faço por ser coisa muitíssimo séria – pela confusão
semântica estabelecida. Desapareceram ou não os processos da plataforma Citius com a migração dos processos para
as 23 novas comarcas ou respetivas secções de competência genérica e/ou de
competência específica? Secretário de Estado garantiu que nenhum processo
desapareceu, enquanto advogados ali presentes diziam a pé firma que
desapareceram. Depois, veio a saber-se que não terão efetivamente desaparecido,
mas que uns não estavam disponíveis para consulta e para utilização, outros
ninguém sabia onde estavam e de outros nem se sabia se existiam se não. Porém,
o ilustre membro do Governo não se esqueceu de acusar o Governo anterior de
fazer desaparecer peças processuais. Até retorquiu, a quem falava de um
tribunal ora encerrado e que fora objeto de avultadas quantias em construção de
raiz, que não foi ele quem fez essas obras. Quanto aos processos, chegou a
afirmar-se que não desapareceram, mas que não se encontram…
Ao longo da semana, a informação
prestada em vários meios de comunicação confirma o desaparecimento ou a
indisponibilidade dos processos na plataforma Citius, introduz o esclarecimento da Ministra sobre a existência de
vários backup dos processos e revela
que alguns processos foram parar a tribunais extintos. Trata-se de cerca de
três milhões e meio de processos, mais de oitenta milhões de documentos! A
justiça, segundo o que diz quem está por dentro do sistema, está nos serviços
mínimos, ou seja, como se dizia no mencionado programa televisivo, resolve os
casos de emergência e concretiza mais algumas diligências, poucas – e com
recurso ao papel e ao correio convencional. Não se circunscreve a um mero
percalço ou simples transtorno, como é voz governamental.
***
A reforma da justiça e, em
particular, o novo mapa judiciário acabam por desencantar os corifeus e
sequazes da ideia reformadora e parecem dar agora razão acrescida aos seus
contestatários. O caos não se verificaria, caso o sistema operativo, hoje
necessário para a sua aplicação, tivesse sido objeto de testagem mais abundante
(e não da de simples amostragem), a capacidade da plataforma informática fosse
suficientemente dimensionada e a migração dos processos dos anteriores
tribunais comarcãos e de tribunais especializados se processasse de modo
faseado, de modo a não engasgar o sistema. Mas esta é uma das pequenas máculas
que soem cair nas reformas portuguesas. Raramente as reformas passam por
experiências-piloto. Excetuam-se poucas como, por exemplo, a da justiça
delineada por Sócrates (devidamente anatematizada, mesmo no dito programa
televisivo) baseada nas NUTs; e a da autonomia e gestão das escolas,
determinada pelo decreto-lei n.º 172/91, de 10 de maio, que se aplicou em
algumas escolas em regime experimental, mas que não chegou a generalizar-se,
não tendo sido possível avaliar se as regras por aquele normativo estabelecidas
possuíam uma eficácia a elas inerente, dado que paralelamente foram concedidas
possibilidades de gestão parecida às escolas que seguiam as normas do
decreto-lei n.º 769-A/76, de 23 de outubro. Reformas aplicadas de forma faseada
também são poucas, entre as quais se contam aquelas que determinam aumento da
escolaridade obrigatória. De resto, as reformas entram em vigor já e de todo.
Algumas também se limitam a meia dúzia de palavras para justificar a passagem
de alguém por determinadas pastas, a menos que se traduzam no agravamento das
condições de vida do contribuinte. E a maior parte dos sistemas reformistas são
substituídos sem a necessária avaliação dos resultados.
***
Pelos vistos, a presente reforma
da justiça, para lá das alterações (e até revisão) dos diversos códigos,
configura um novo mapa judiciário. É claro que o comum dos cidadãos deixa habitualmente
para os entendidos no direito o ónus da apreciação dos instrumentos da
administração da justiça, como são as leis de enquadramento, os códigos e os regulamentos.
A provisão dos quadros dos operadores da justiça fica justamente para as respetivas
entidades representativas. Porém, a distribuição dos serviços de ministração da
justiça, designadamente os tribunais, isso já diz respeito também aos cidadãos,
sem diminuir em nada a responsabilidade de quem sabe de administração, gestão, direito
e economia – mormente em matéria de justiça.
Entretanto, atente-se nas grandes
palavras que determinaram o estabelecimento do novo mapa judiciário, ouvidas
que foram, diz o Governo (?!), todas as estruturas representativas interessadas
(que alguns autarcas desmentem): especialização, proximidade e avaliação.
Por nos falarem de avaliação dos
magistrados, diga-se que se trata de uma estranha moda a criação de sistemas de
avaliação, como se muita dela não fosse preparada e manipulada (segundo perspetivas
de chefias na administração pública e na gestão empresarial), sem ter em conta
um objeto de avaliação preciso. Um Primeiro-Ministro, ao menos neste aspeto, de
má memória vociferou, em 2005, que há mais de 30 anos os professores não eram
avaliados. Quanto aos senhores juízes e procuradores, parece que aquilo que não
falta é a avaliação de desempenho e não sei se, por consequência, teremos tido melhores
juízes e uma justiça cada vez mais isenta, célere e eficaz. Agora, parece que pretendem
entregar a tarefa da avaliação a nova entidade e de acordo com novos parâmetros
(por objetivos, como se de um banco se tratasse!). O importante, como em outras
áreas, devia ser o melhor apuramento do perfil dos candidatos ao CEJ e a formação
dos magistrados (inicial e contínua) por parâmetros cognitivos, sim, mas sobretudo
de humanismo, contenção, bom senso e capacidade de ouvir para bem decidir (Repare-se
que a nota académica não é o mais importante). Quanto ao mais, o desempenho
obtuso seria colmatado com as medidas disciplinares adequadas e, em casos
graves (de negligência e dolo), com as decisões judiciais previstas na lei; e o
mérito relevante, com prémios de desempenho significativos. E poderiam poupar
as populações a estas desnecessárias encenações.
Quanto à proximidade, não me
obriguem a alinhar com o piropo político de que secção de proximidade é este
governo em relação à troika e ao alinhamento europeu. Algumas decisões também são
tomadas em Lisboa. Mas o território, senhores? Já sabemos que os advogados se deslocam
com toda a facilidade ao sítio onde se faz o tribunal tal como a casa do
cliente: o cliente tudo paga. Porém, o cidadão, se tiver de se deslocar ou de
fazer deslocar as suas testemunhas, ou se inibe ou paga mais. Depois, vêm as deslocações
para sítios diferentes conforme a especificidade das secções, o que gera
despesas e confusões, com despesas em duplicado ou em triplicado. O apoio
jurídico prestado pelo Estado é tremendamente limitado. E o acesso a uma justiça
de base é um direito de todos os cidadãos.
Sim, que haja tribunais de competência
específica em matérias de alta complexidade criminal (corrupção, fiscalidade, colarinho
branco, etc.) e cível (ao nível empresarial, comercial) em comarcas de grandes
dimensões (por exemplo as atuais 23) com o respetivo departamento de
investigação e ação penal e o juízo de instrução criminal, tudo bem. Porém,
para o crime comum e para as médias ações cíveis, a comarca deveria quanto
possível coincidir com as áreas municipais (se há demasiados municípios, que se
opere a sua reorganização). Todavia, nunca o número pode constituir um critério
absoluto ou quase. Imaginem que a uma localidade, por não ter um número mínimo
de pessoas convencionalmente estabelecido, se lhe corta o direito à justiça, à
saúde, ao ensino, ao vestuário, à alimentação, ao policiamento, à segurança
social. Será justo? Porque não pensam, antes, num reordenamento do território e
da população mais simétrico, com os devidos incentivos ao povoamento e com as
necessárias medidas de suscitação de emprego e empreendedorismo?
Finalmente, uma palavra sobre a
especialização. É óbvio que a especialização será sempre bem-vinda nas diversas
áreas, mas mantendo sempre a atenção à perspetiva holística das matérias. Já basta
a corrida a especialistas que a medicina exige. Ninguém acredita que qualquer médico
especialista tenha perdido a formação de base, mas a circunscrição a miniespecialização
é cada vez mais frequente e nem sempre de forma razoável. Quem paga e sofre é o
utente, cliente ou paciente.
Quanto à justiça, Deus nos livre
que o país enverede por uma especialização dos juízes no sentido estrito. Não
será necessária e terá efeitos perversos, por obrigar os cidadãos a ficar sujeitos
à lei da oferta e da procura. Especializem-se, sim, os advogados, as entidades
encarregadas da investigação e outros operadores, como funcionários e assessores.
Quanto aos juízes, proporcione-se-lhes sólida formação em direito e outras ciências
sociais e humanas, leitura das realidades, gestão das conflitualidades, capacidade
de escutar peritos, especialistas e assessores – e sobretudo bom senso. Compete-lhes
não tanto revelar erudição, mas sentido de apreciação e capacidade de decisão. Não
lhes cabe a produção da prova, mas verificar se ela chegou a ser produzida e em
que medida o foi. Ninguém pensa especializar os jurados, mas tão somente
exigir-lhes capacidade de ouvir e bom senso para construir a decisão.
Evidentemente que, se não é por
termos juízes especializados que teremos melhor justiça, também não será por
termos secções, gabinetes e salas de audiências com “placas” (rótulo sou
letreiros) de matérias especificadas que teremos juízes especializados. Mas é de
todo conveniente que os juízes rodem por diversos lugares, serviços e juízos
para adquirirem maleabilidade e evitarem a cristalização.
Quanto ao mais, há quem diga que
a justiça é cega. Não sei se concorde com isso em toda a linha, mas sei que ela
deve ser imparcial. Porém, o que não se tolera é que os seus reformadores e os
seus administradores sejam cegos e sobretudo que façam cegos dos outros.
A justiça merece todo o cuidado e
os cidadãos exigem todo o respeito pelos seus direitos!
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