O enunciado formulado em epígrafe
vem ironicamente a propósito de testemunhos prestados por Jorge Sampaio e
Eduardo Catroga no âmbito do processo “Face Oculta”, que seguiu os seus trâmites
na comarca-piloto do Baixo Vouga (no quadro da pré-reforma judiciária). As referidas
figuras públicas prestaram depoimento como testemunhas abonatórias de alguns
gestores politicamente afetos ao Partido Socialista, em especial, Armando Vara,
José Penedos e Paulo Penedos. Estes arguidos, bem como outros, foram acusados
de crimes vários, como corrupção passiva e tráfico de influências, enquanto Manuel
Godinho o fora por corrupção ativa, nomeadamente pela oferta de prendas aos
eventualmente futuros ajudantes ou facilitadores de negócios através da
concessão de benefícios, em razão dos cargos que desempenhavam. Socorro-me da
leitura que sobre a matéria fiz no Jornal
de Notícias, de 8 de setembro.
Antes de mais, cumpre-me manifestar
o meu ceticismo quanto à alegada clara demonstração de que o desfecho do caso
serve de exemplo para persuadir a opinião pública de que os grandes, pela
política ou pela riqueza, não estão acima da lei e que também se faz justiça
quando as consequências incidem sobre eles, se efetivamente se provarem ao tribunal
os factos criminosos de que são acusados.
O ceticismo firma-se nas vicissitudes
mediáticas por que passou o processo, com muita parra à vista e ao ouvido,
inclusive com escutas destruídas, mas com uma cópia à guarda da dita comarca-piloto
até há poucos dias, já depois de concluído o processo na primeira instância. Por
outro lado, tal como noutros casos, ditos mediáticos, quem mais penalizado foi,
foi o mais baixo socialmente, sem compromissos políticos explícitos – Manuel Godinho,
que sai condenado a 17 anos e meio de prisão efetiva – quando os outros tiveram
penas que não ultrapassam os cinco anos de prisão efetiva e a maior parte dos
arguidos (ao todo, os arguidos eram 36) foram condenados, mas foi-lhes concedida
a suspensão da pena.
Isto continua a remeter para
aqueles casos de “tubarões” em que ou nada ficou provado em tribunal (por exemplo,
o caso dos submarinos ou o do apito dourado) ou ficaram alguns condenados para
que conste e o menos cotado socialmente ficou mais penalizado (lá vem a talho de
foice o caso da casa Pia, em que o Carlos Silvino levou uma grande dose penal por
mais de uma centena de crimes!) ou ainda aqueles casos em que os crimes
prescreveram (caso de um processo do BCP). Já nem quero falar daqueles casos em
que os que foram constituídos arguidos não ficaram em prisão preventiva (entre
as tais medidas de coação enquanto aguardam o desenvolvimento do processo e, eventualmente,
o julgamento), porque tiveram uns largos milhares de euros para entregar como
caução ou, em sua vez, a correspondente garantia bancária. Quantos serão os que
teriam 3 milhões de euros para comprar a liberdade para aguardar o julgamento
como, por exemplo o antigo Presidente do Conselho de Administração do BES/GES?!
Por outro lado, afirma-se que o montante de dinheiros e outros valores que o
negócio terá movimentado fica muito aquém de casos que ficaram impunes ou quase
e que jogaram no charco milhares e milhões de euros públicos e privados…
Mas, no caso vertente, a
sentença/acórdão ainda não transitou em julgado. Os advogados, embora respeitem
as decisões do tribunal (nem outra coisa podia suceder), discordam da leitura
que o tribunal fez dos factos, bem como da aplicação da lei aos mesmos e, por consequência,
manifestaram a intenção de interpor recurso. Por isso, ainda se presume a
inocência dos arguidos.
***
Porém, parece que me estou a
esquecer do tema enunciado em epígrafe. Não, somente estou a evidenciar a
excecionalidade que exorna estes processos mediáticos. Neste caso, até o
tribunal comarcão concedeu um prazo de 60 dias para a interposição de recurso, em
vez dos habituais 30 dias. Porquê?
Mas o que pretendo pôr a claro é
a excecionalidade do depoimento das testemunhas de abonação acima mencionadas.
Eu pensava que as testemunhas arroladas pela defesa iriam pronunciar-se sobre o
perfil global do arguido ou dos arguidos e o seu anterior bom comportamento (ou
o facto de nada constar de errado na sua folha de serviço), bem como apresentar
situações conhecidas que viessem a contribuir eventualmente para anular algum
dos itens da acusação.
Nunca pensei que as testemunhas se
pronunciassem sobre o valor moral ou sobre a inocuidade dos atos aduzidos.
Pergunto-me até que ponto pode uma
testemunha dizer em tribunal que é normal mentir, roubar, insultar, etc. É óbvio
que ninguém aceitaria um depoimento desses. Então, porque é que o tribunal aceita
e até perora sobre a normalidade da receção de prendas? Será que algumas figuras
públicas gozam do regime de exceção no teor do depoimento sub iudice?
Ora, eu penso que é tentador a um
operador de negócios dispor de prendas para obter um benefício empresarial e/ou
político, quer se trate de um benefício lícito (ultrapassando barreiras
burocráticas) quer ilícito (por não lhe ser devido ou pelo emprego de meios
ilícitos). O que intenta tal atitude comportamental deve ser proporcionalmente
penalizado por ela, desde que os factos sejam inequivocamente provados (mais do
que só formalmente). Tal atitude, embora seja tentadora, nem por isso é normal,
porque a lei não a determina, não a permite nem a acha conforme com o razoável
humano.
Quanto aos arguidos acusados de corrupção
passiva, os que recebem as prendas (não é a mesma coisa que receber pedidos) – em
dinheiro ou em géneros – o castigo deve ser também proporcional, desde que os
factos aduzidos sejam inequivocamente provados. Assim, estranha-se como é que o
corrutor ativo sofrerá 17 anos e meio de prisão e os corrompidos (?) não vão
além dos cinco anos.
Ou será que o crime de tráfico de
influências consiste em prestar indevidamente o serviço solicitado, ficando
obnubilado o facto da fruição da prenda (dinheiro, robalos, automóveis…), que
por si é fruto de ato ilícito em razão do fim a que se destinava?
***
Também o tribunal não terá reconhecido
a “normalidade” das prendas, baseando-se até na diferenciação entre as prendas
que Sampaio recebia e as que aos administradores de empresas públicas eram
dirigidas.
Aqui, também é de refletir sobre
as diferenças ou semelhanças éticas. Um administrador de empresa pública não
pode receber prendas porque a ética da empresa não o permite. E pode o detentor
de cargo público / político (ministro, presidente da câmara, Presidente da
República) fazê-lo? Será que a ética republicana o permite? Se alguém me quer convencer
de que esses e outros detentores de cargos públicos recebem a prenda, usufruem
dela, mas não dispensam aos oferentes qualquer favor, desistam de tentar
convencer-me. Será que a ética empresarial privada permite a receção de prendas
para a concessão de favores com prejuízo para os agentes e os beneficiários do mercado?
A ética é a ética, meus senhores! Já agora, porque não se permitem as prendas aos
trabalhadores da administração pública em qualquer escalão, se é só para
fruição sem consequências beneficiárias?
Se é normal a entrega de prendas
e a respetiva receção, por onde andam as minhas?
***
Por fim, há que fazer a diferença
entre as prendas de que vimos falando e as prendas diplomáticas, ou seja, as
trocadas entre representantes de topo de entidades públicas e privadas (sem que
esta tenha de ir a tribunal para dirimir qualquer equívoco) e ainda as que se
recebem a título pessoal, por simpatia ou reconhecimento de mérito.
As prendas diplomáticas não são
propriedade do titular, mas da entidade que ele representa. Está, neste aspeto,
bem avisado Sampaio quando refere que as prendas que recebeu como Presidente da
República estão no Museu da Presidência da República (não havia era necessidade
de aumentar com isso as páginas de “Face Oculta”). E onde estão as que recebeu
como Presidente da Câmara de Lisboa? É óbvio que não o questiono sobre o
destino das prendas que recebeu a título pessoal, por simpatia ou reconhecimento
de mérito, que essas são dele e só dele!
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