terça-feira, 9 de setembro de 2014

É normal receber prendas…e eu não sabia!

O enunciado formulado em epígrafe vem ironicamente a propósito de testemunhos prestados por Jorge Sampaio e Eduardo Catroga no âmbito do processo “Face Oculta”, que seguiu os seus trâmites na comarca-piloto do Baixo Vouga (no quadro da pré-reforma judiciária). As referidas figuras públicas prestaram depoimento como testemunhas abonatórias de alguns gestores politicamente afetos ao Partido Socialista, em especial, Armando Vara, José Penedos e Paulo Penedos. Estes arguidos, bem como outros, foram acusados de crimes vários, como corrupção passiva e tráfico de influências, enquanto Manuel Godinho o fora por corrupção ativa, nomeadamente pela oferta de prendas aos eventualmente futuros ajudantes ou facilitadores de negócios através da concessão de benefícios, em razão dos cargos que desempenhavam. Socorro-me da leitura que sobre a matéria fiz no Jornal de Notícias, de 8 de setembro.
Antes de mais, cumpre-me manifestar o meu ceticismo quanto à alegada clara demonstração de que o desfecho do caso serve de exemplo para persuadir a opinião pública de que os grandes, pela política ou pela riqueza, não estão acima da lei e que também se faz justiça quando as consequências incidem sobre eles, se efetivamente se provarem ao tribunal os factos criminosos de que são acusados.
O ceticismo firma-se nas vicissitudes mediáticas por que passou o processo, com muita parra à vista e ao ouvido, inclusive com escutas destruídas, mas com uma cópia à guarda da dita comarca-piloto até há poucos dias, já depois de concluído o processo na primeira instância. Por outro lado, tal como noutros casos, ditos mediáticos, quem mais penalizado foi, foi o mais baixo socialmente, sem compromissos políticos explícitos – Manuel Godinho, que sai condenado a 17 anos e meio de prisão efetiva – quando os outros tiveram penas que não ultrapassam os cinco anos de prisão efetiva e a maior parte dos arguidos (ao todo, os arguidos eram 36) foram condenados, mas foi-lhes concedida a suspensão da pena.
Isto continua a remeter para aqueles casos de “tubarões” em que ou nada ficou provado em tribunal (por exemplo, o caso dos submarinos ou o do apito dourado) ou ficaram alguns condenados para que conste e o menos cotado socialmente ficou mais penalizado (lá vem a talho de foice o caso da casa Pia, em que o Carlos Silvino levou uma grande dose penal por mais de uma centena de crimes!) ou ainda aqueles casos em que os crimes prescreveram (caso de um processo do BCP). Já nem quero falar daqueles casos em que os que foram constituídos arguidos não ficaram em prisão preventiva (entre as tais medidas de coação enquanto aguardam o desenvolvimento do processo e, eventualmente, o julgamento), porque tiveram uns largos milhares de euros para entregar como caução ou, em sua vez, a correspondente garantia bancária. Quantos serão os que teriam 3 milhões de euros para comprar a liberdade para aguardar o julgamento como, por exemplo o antigo Presidente do Conselho de Administração do BES/GES?! Por outro lado, afirma-se que o montante de dinheiros e outros valores que o negócio terá movimentado fica muito aquém de casos que ficaram impunes ou quase e que jogaram no charco milhares e milhões de euros públicos e privados…
Mas, no caso vertente, a sentença/acórdão ainda não transitou em julgado. Os advogados, embora respeitem as decisões do tribunal (nem outra coisa podia suceder), discordam da leitura que o tribunal fez dos factos, bem como da aplicação da lei aos mesmos e, por consequência, manifestaram a intenção de interpor recurso. Por isso, ainda se presume a inocência dos arguidos.
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Porém, parece que me estou a esquecer do tema enunciado em epígrafe. Não, somente estou a evidenciar a excecionalidade que exorna estes processos mediáticos. Neste caso, até o tribunal comarcão concedeu um prazo de 60 dias para a interposição de recurso, em vez dos habituais 30 dias. Porquê?
Mas o que pretendo pôr a claro é a excecionalidade do depoimento das testemunhas de abonação acima mencionadas. Eu pensava que as testemunhas arroladas pela defesa iriam pronunciar-se sobre o perfil global do arguido ou dos arguidos e o seu anterior bom comportamento (ou o facto de nada constar de errado na sua folha de serviço), bem como apresentar situações conhecidas que viessem a contribuir eventualmente para anular algum dos itens da acusação.
Nunca pensei que as testemunhas se pronunciassem sobre o valor moral ou sobre a inocuidade dos atos aduzidos.
Pergunto-me até que ponto pode uma testemunha dizer em tribunal que é normal mentir, roubar, insultar, etc. É óbvio que ninguém aceitaria um depoimento desses. Então, porque é que o tribunal aceita e até perora sobre a normalidade da receção de prendas? Será que algumas figuras públicas gozam do regime de exceção no teor do depoimento sub iudice?
Ora, eu penso que é tentador a um operador de negócios dispor de prendas para obter um benefício empresarial e/ou político, quer se trate de um benefício lícito (ultrapassando barreiras burocráticas) quer ilícito (por não lhe ser devido ou pelo emprego de meios ilícitos). O que intenta tal atitude comportamental deve ser proporcionalmente penalizado por ela, desde que os factos sejam inequivocamente provados (mais do que só formalmente). Tal atitude, embora seja tentadora, nem por isso é normal, porque a lei não a determina, não a permite nem a acha conforme com o razoável humano.
Quanto aos arguidos acusados de corrupção passiva, os que recebem as prendas (não é a mesma coisa que receber pedidos) – em dinheiro ou em géneros – o castigo deve ser também proporcional, desde que os factos aduzidos sejam inequivocamente provados. Assim, estranha-se como é que o corrutor ativo sofrerá 17 anos e meio de prisão e os corrompidos (?) não vão além dos cinco anos.
Ou será que o crime de tráfico de influências consiste em prestar indevidamente o serviço solicitado, ficando obnubilado o facto da fruição da prenda (dinheiro, robalos, automóveis…), que por si é fruto de ato ilícito em razão do fim a que se destinava?
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Também o tribunal não terá reconhecido a “normalidade” das prendas, baseando-se até na diferenciação entre as prendas que Sampaio recebia e as que aos administradores de empresas públicas eram dirigidas.
Aqui, também é de refletir sobre as diferenças ou semelhanças éticas. Um administrador de empresa pública não pode receber prendas porque a ética da empresa não o permite. E pode o detentor de cargo público / político (ministro, presidente da câmara, Presidente da República) fazê-lo? Será que a ética republicana o permite? Se alguém me quer convencer de que esses e outros detentores de cargos públicos recebem a prenda, usufruem dela, mas não dispensam aos oferentes qualquer favor, desistam de tentar convencer-me. Será que a ética empresarial privada permite a receção de prendas para a concessão de favores com prejuízo para os agentes e os beneficiários do mercado? A ética é a ética, meus senhores! Já agora, porque não se permitem as prendas aos trabalhadores da administração pública em qualquer escalão, se é só para fruição sem consequências beneficiárias?
Se é normal a entrega de prendas e a respetiva receção, por onde andam as minhas?
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Por fim, há que fazer a diferença entre as prendas de que vimos falando e as prendas diplomáticas, ou seja, as trocadas entre representantes de topo de entidades públicas e privadas (sem que esta tenha de ir a tribunal para dirimir qualquer equívoco) e ainda as que se recebem a título pessoal, por simpatia ou reconhecimento de mérito.

As prendas diplomáticas não são propriedade do titular, mas da entidade que ele representa. Está, neste aspeto, bem avisado Sampaio quando refere que as prendas que recebeu como Presidente da República estão no Museu da Presidência da República (não havia era necessidade de aumentar com isso as páginas de “Face Oculta”). E onde estão as que recebeu como Presidente da Câmara de Lisboa? É óbvio que não o questiono sobre o destino das prendas que recebeu a título pessoal, por simpatia ou reconhecimento de mérito, que essas são dele e só dele!

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