O Vaticano anunciou, a 26 de
setembro, que Bento XVI aceitara o convite de Francisco para participar no
domingo, dia 28, no encontro de avós e idosos a decorrer na Praça de S. Pedro,
que se espera congregar cerca de 40 mil avós e idosos de 20 países e que
integrará uma série de testemunhos configuradores do diálogo entre avós e netos
e a que se seguirá a celebração eucarística presidida pelo Papa.
Esta “jornada mundial” dos avós é
da iniciativa do Pontifício Conselho para a Família, gravita em torno do tema “A bênção de uma vida longa” e vai levar
ao Vaticano um casal iraquiano, refugiado em Erbil. O arcebispo Vincenzo
Paglia, presidente daquele organismo da Santa Sé, explicou que a presença de
refugiados iraquianos, que vão cumprimentar o Papa, visa “fazer ressoar a voz
de tantos idosos que sofrem, em particular nas zonas de conflito”.
A abertura musical, à chegada do
Papa Francisco, está a cargo do tenor italiano Andrea Bocelli. E, no final das
cerimónias, é distribuído aos presentes um exemplar do Evangelho de Marcos, em
“carateres grandes”.
***
A referida distribuição de exemplares
do texto de Marcos, à beira do início de um novo ano litúrgico, o ano B (a 30
de novembro), em que será lido na liturgia de domingo este Evangelho, motiva-me
a uma reflexão sobre o escrito marcano.
A tradição que remonta ao século
II, ocasião em que foram reunidos os quatro Evangelhos, atribui a autoria do
2.º Evangelho a Marcos,
identificado com João Marcos, filho de Maria, em casa da qual os cristãos se
reuniam para orar (cf At 12,12). Segundo
Eusébio de Cesareia, Papias, pelo ano 130, terá sido o primeiro a referir
Marcos como o autor deste Evangelho. Com seu primo Barnabé, Marcos acompanha
Paulo durante algum tempo na primeira viagem missionária (cf At
13,5.13;15,37.39) e depois
aparece com ele, prisioneiro em Roma (cf Cl 4,10). Não obstante, liga-se mais a Pedro, que o trata por
“meu filho” na saudação final da sua 1.ª Carta (1Pe 5,13). Marcos, que não fora originariamente um dos
discípulos de Jesus, mas um intérprete de Pedro, terá escrito o Evangelho pouco
antes da destruição de Jerusalém, que ocorreu no ano 70 (provavelmente no ano
65, na sequência do martírio de Pedro movido pela perseguição de Nero no ano
64), relatando com precisão as palavras e obras do Mestre, conforme as recebeu
daquele Apóstolo, procurando que cada um perceba o significado de tudo aquilo
que Jesus faz.
***
O Evangelho de Marcos reflete a catequese que Pedro,
testemunha presencial privilegiada dos acontecimentos, espontâneo e atento,
ministrava à comunidade de Roma. É o mais breve dos quatro (são 16
capítulos contra os 28 de Mateus, os 24 de Lucas e os 21 de João) e situa-se no Cânone entre os dois mais extensos de Mateus
e de Lucas e a seguir a Mateus, o de maior uso na Igreja. Até ao séc. XIX,
Marcos foi pouco estudado e comentado, quase esquecido. Santo Agostinho
considerava-o como que um resumo do texto de Mateus. Marcos escreve a partir de
Roma a pagãos e a comunidades ligadas ao cristianismo da Galileia e de
Jerusalém, empenhado simultaneamente em fazer chegar aos gentios a mensagem evangélica
(vd Mc 5,41-42;
7,28.35-37).
A investigação mais aprofundada desde o século XIX
sobre a origem dos Evangelhos trouxe Marcos à luz da ribalta, que hoje é considerado
o mais antigo dos quatro. Na verdade, supõe uma fase mais primitiva da reflexão
da Igreja acerca do acontecimento “Cristo”, que lhe deu origem; e só ele
conserva o esquema da mais antiga pregação apostólica, sintetizada em Atos 1,22:
começa com o baptismo de João (cf Mc1,4ss) e termina
com a Ascensão do Senhor (cf Mc16,19). No
entanto, ter-se-á baseado numa larga tradição neotestamentária cuja síntese muito
em breve fora passada a escrito, em aramaico, sob o título Os Ditos do Senhor (em grego, Τα τοϋ
Κυρίου Λογία),
certamente por Mateus, aquele a quem se atribui o 1.º Evangelho do Cânone.
É recorrente a asserção de que os outros Evangelhos,
sobretudo os sinóticos, supõem e seguiram o texto de Marcos, tal como o seu
esquema histórico-geográfico da vida pública e pregação de Jesus: Galileia,
Viagem para Jerusalém, Jerusalém – e como ele se fundam nas tradições orais sobre
a vida, palavras e obras de Jesus.
Suas caraterísticas
literárias
Denotando alguma pobreza vocabular e uma sintaxe pouco
cuidada, Marcos é parco em discursos; apresenta apenas dois: o discurso em
parábolas (Mc 4,1-34) e o
discurso escatológico (Mc 13,5-37). Mas é um
tanto abundante em narrações, em que é exímio. Utiliza a arte de contar com invejável
realismo e sentido do concreto, enriquece os relatos de pormenores,
emprestando-lhes vida e cor (visualismo descritivo). São típicos os casos do
possesso de Gerasa, da mulher com fluxo de sangue e da filha de Jairo, no cap.
5. Presta especial atenção às palavras textuais de Jesus em aramaico, por
exemplo, “Talitha qûm” (Mc 5,41) e “Eloí, Eloí,
lemá sabachtáni” (Mc 15,34). É de
referir também o dia-tipo da atividade de Jesus, descrito na assim chamada
“jornada de Cafarnaum” (cf Mc1,21-34). Entre as
perícopas e incisos peculiares de Marcos, indica-se o único texto bíblico em
que Jesus aparece como “o Filho de Maria” (Mc 6,3), enquanto os outros falam de Maria, mãe de Jesus.
Objetivos e
plano do segundo Evangelho
O objetivo principal de Marcos é dar a conhecer a Boa
Nova (Evangelho) de Jesus Cristo, o Filho de Deus (cf Mc 1,1), prescindido, ao invés de Mateus e de Lucas, do relato
atinente à infância de Jesus ou do altamente elaborado prólogo do Evangelho de
João sobre o Verbo. Na interiorização profunda do mistério de Deus que amou
tanto o mundo que lhe enviou o Seu Filho, que assumiu plenamente a vontade do
Pai – morreu e ressuscitou para nos salvar – e perspetivando-se esta como a boa
notícia a revelar por Marcos, o seu Evangelho inicia-se com estas palavras: “Princípio do Evangelho de Jesus Cristo,
filho de Deus” (Mc 1,1). E, depois
da sua morte, vem a confissão de fé do centurião Romano: “Verdadeiramente este homem era Filho de Deus” (Mc 15,39). Entre estas grandes balizas de confissão de fé no
Filho de Deus, Marcos regista outras bem significativas: a bem estranha dos
espíritos impuros (cf Mc 1,24; 3,11); a de
Pedro, a central no percurso evangélico (cf Mc 8,29, em Cesareia de Filipe); e a de Deus Pai (cf Mc 1,11, no Batismo de Jesus;
9,7, na Transfiguração; 12,5-6, na metáfora do Filho da parábola dos
vinhateiros homicidas). E é esta
irrupção da fé no mistério do Filho de Deus, ascenso aos Céus, que leva os
discípulos a partir a pregar por toda a parte (cf Mc 16,20), em conformidade com o preceito do Ressuscitado, “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a
toda a criatura” (cf Mc 16,15).
De certo modo, Marcos faz-se espectador com os seus
leitores. Como eles, acompanha e vive o drama de Jesus, desenrolado em dois
atos, coincidentes com as grandes duas partes constitutivas deste Evangelho. Ao
longo do 1.º, vai-se perguntando, “Quem é
Ele?”, ao que Pedro responderá por si e pelos outros, de forma direta e
categórica: “Tu és o Messias!” (Mc 8,29). O 2.º ato esquematiza-se na pergunta-resposta: Como se realiza Ele, como Messias? Morrendo
e ressuscitando (vd Mc 8,31; 9,31; 10,33-34). Inaugura-se assim o reino do serviço em vez do
poder, da partilha em vez do comércio, da escuta da palavra e da realidade em
vez da alienação.
Com vista à aproximação do leitor à verdadeira
identidade do Mestre, o autor humano do 2.º Evangelho (Não esqueçamos que o
verdadeiro autor dos livros sagrados é o próprio Deus!) recorre ao segredo
messiânico (cf Mc 1,34 -“os demónios sabiam quem Ele era”; 3,12 –“intimava os demónios
a que não O dessem a conhecer”; 8,30 –“intimou os discípulos a não dizerem nada
a ninguém”) para nos desvendar
progressivamente o segredo que é Cristo em toda a sua verdade e realeza (cf Mc 15,2.26.39) e nós podermos obter a resposta à questão, “E vós quem
dizeis que Eu sou?” (Mc 8,29).
O Evangelho marcano oferece-nos, pois, uma Cristologia
simples e acessível: Jesus de Nazaré é verdadeiramente o Messias que, pela Sua
Paixão, Morte e Ressurreição, demonstrou ser verdadeiramente o Filho de Deus (cf Mc15,39) que a todos possibilita a salvação. “Também o Filho do Homem não veio para ser
servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por todos” (Mc 10,45).
Por detrás
deste Evangelho parece estar subjacente um plano que é concretizado através de
uma estrutura partível em 4 secções precedidas por um prólogo, que enquadra a preparação do ministério de Jesus – início
do Evangelho a concretizar a profecia de Isaías, ministério do Batista, Batismo
de Jesus e passagem de Jesus pelo deserto (1,1-13).
I secção – Ministério na Galileia e arredores (1,14 – 7,23), com: primeira
pregação da Boa Nova (1,14 – 3,6); adesão e rejeição (3,7 – 6-29); e Jesus,
pastor universal e incompreensão dos discípulos (6,30 – 7,23).
II secção – Viagens por Tiro, Sídon e Decápole e a caminho de Jerusalém (7,24 – 10,52), com: 1.º anúncio da Paixão
e Ressurreição (7,24 – 9,29); 2.º anúncio (9,30 – 10,31); e 3.º anúncio (10,32-52).
III secção – Ministério em Jerusalém (11,1 – 13,37), com; superação do
Templo (11,1 – 12,27); e futuro dos discípulos (12,21 – 13,37).
IV secção – Paixão e Ressurreição de Jesus (14,1 – 16,20), com: a Paixão do
Senhor (14,1 – 15,47); e Ressurreição, Ascensão e mandato (16,1-28).
A perspetiva
teológica do 2.º Evangelho
Como os outros evangelistas, Marcos apresenta-nos a
pessoa de Jesus e, como primeiro modelo da Igreja, o grupo dos discípulos. Constituem
eles um modelo de caminheiros num processo que nos leva, através de vários escolhos
e dificuldades, à verdadeira compreensão de Jesus. Na convicção de que apenas apresenta
o início do Evangelho, atém-se ao essencial da primitiva catequese e revela-nos
a preocupação fundamental de Pedro espelhada nos Atos dos Apóstolos:
“É
necessário que escolhamos um dos homens que estiveram connosco durante todo o
tempo em que o Senhor Jesus viveu entre nós, desde o batismo de João até ao dia
em que Jesus foi elevado de entre nós às alturas. É preciso que um deles venha
a ser connosco testemunha da sua ressurreição” (At 1, 21-22).
Efetivamente o núcleo do quérigma
era:
“Deus ungiu com a força do Espírito Santo a Jesus de Nazaré,
que passou fazendo o bem e curando a todos os oprimidos pelo Demónio,
porque Deus estava com Ele. Nós somos testemunhas de tudo o que Ele fez
no país dos judeus e em Jerusalém;
e eles mataram-n’O, suspendendo-O na cruz.
Mas Deus ressuscitou-O ao terceiro dia.”
(At 10, 38-40).
Quanto ao Jesus de Marcos, mais do que nos outros Evangelhos, o Jesus, “Filho
de Deus” (1,1.11; 9,7; 15,39), revela-se
profundamente humano, de contrastes bem desconcertantes: é tão acessível (8,1-3) como distante (4,38-39); tanto acarinha (10,16) como repele (8,12-13); tanto impõe
“segredo” acerca de Si e do bem que faz como manda apregoar o benefício
recebido; o Messias chega a manifestar
limitações e até aparentar ignorância (13,22). É verdadeiramente o “Filho do Homem”, seu título preferencial. Assim, a
pessoa de Jesus torna-se misteriosa: encerra em si, em perfeita síntese, o
homem verdadeiro e o Deus verdadeiro. Reside, pois, aqui a dificuldade da
aceitação de Si por parte das multidões que O seguem e mesmo por parte dos
discípulos.
A 1.ª parte deste Evangelho (1,14-8,30) mostra-nos um Jesus mais preocupado com o
acolhimento ao povo, a cujas necessidades atende e em cujo ensino se empenha; a
segunda parte (8,31-13,36), por seu
turno, volta-se mais especialmente para os Apóstolos que Ele escolheu (3,13-19). Vai-os formando com sábia pedagogia e tacto, mostrando-lhes
progressivamente o plano e a economia da salvação (10,29-30.42-45) e fazendo-os ingressar na intimidade do Pai (11,22-26).
No atinente ao discípulo de Jesus, é de referir que sente um elevado grau de exigência
neste Jesus, simples e humano, em relação aos seus discípulos. Desde o início
da sua pregação (1,14), arrasta
as multidões e alguns discípulos seguem-no de perto (1,16-22). Após a eleição dos Doze (3,13-19), começa a haver uma certa separação entre este grupo
mais íntimo, a quem Ele tudo explica, e as multidões a quem fala por parábolas
e edifica pelos milagres. Todos seguem Jesus, mas de modo diverso. É um
seguimento que exige esforço e capacidade de abertura ao divino, que se
manifesta em Jesus de forma velada e indireta através dos milagres que Ele realiza
a pedido. É pelos milagres que o discípulo descobre no Mestre e Filho do Homem
a presença inefável de Deus, vendo em Jesus de Nazaré o Filho de Deus. Para O
seguir e porque a pessoa de Jesus é essencialmente misteriosa, o discípulo precisa
de fé a toda a prova. Se vir nele apenas o carpinteiro de Nazaré, sente-se tentado
a abandoná-lo. Por isso, Jesus é também um incompreendido: os seus familiares
pensam que Ele os abandonou e trocou por uma outra família (3,20-21.31-35); os doutores da Lei, os fariseus, saduceus e os
escribas não aceitam a sua interpretação da Lei (2,23-28; 3,22-30); os sacerdotes e os chefes do povo veem-no como um perigoso
revolucionário para o seu “status quo”
e um blasfemo (11,27-33; 15,64). Daí que,
desde o início, se perspetive como destino de Jesus a morte (3,1-6;
14,1-2).
Mas, os discípulos “de dentro” não são muito melhores
do que “os que estão de fora” (4,11). Todos
sentem, embora em momentos e graus diferentes, dificuldade em compreender o
mistério de Jesus: assemelham-se aos cegos (8,22-26; 10,46-53). A incompreensão e a desilusão, aliadas ao medo, são
então as caraterísticas mais negativas do discípulo no Evangelho de Marcos. É
esse o motivo por que, ao confessar sincera e desassombradamente o messianismo
de Jesus (8,29), Pedro pensava num messias (termo
hebraico que significa “Cristo”) mais
político que religioso, que libertasse o povo do jugo dos romanos dominadores.
Isso aparece claro quando Jesus desvia o assunto e anuncia pela primeira vez a
sua Paixão dolorosa e Morte (8,31); Pedro,
não aceitando um tal messianismo, começa a barafustar e a repreender o Mestre (8,31-33). O que ele queria era, como todos os discípulos de
todos os tempos (ontem e hoje), um cristianismo sem esforço e sem grandes
compromissos – um Cristo sem cruz.
Apesar da incompreensão dos discípulos ante seus
ensinamentos, Jesus não desanima desistindo, antes continua pacientemente a
ensiná-los (8,31-38; 9,30-37; 10,32-45). O efeito
não foi lá muito positivo e grato: no termo da caminhada para Jerusalém e após
Ele lhes ter lembrado as dificuldades por que iria passar a fé deles(14,26-31), ao verem-no traído por um dos Doze e preso como um
malfeitor pelos inimigos a soldo dos chefes (14,42-45), “deixando-o, fugiram todos” (14,50). Este é, certamente, o Evangelho onde qualquer cristão
se verá mais retratado, mas que, se se dispuser à abertura ao divino, pode partir
ao encontro do Ressuscitado.
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