quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Obviamente, não sirvo!

Não estou a evocar, de momento, a rebelião do anjos que se recusaram aberta e frontalmente a servir na presença de Deus e no desempenho das missões que Ele lhes confiaria e que, por isso, foram precipitados no inferno, criado desde o princípio (vd Mt 25,41) para o demónio e seus anjos (mensageiros e/ou seguidores). Não estou a parafrasear Lúcifer (o portador da luz) nem a referenciar o combate singular que o arcanjo São Miguel, com seus anjos, travou contra o Dragão apocalíptico e seus anjos, os quais combateram mas não resistiram e nunca mais encontraram lugar no céu (Ap 12,7-8).
É exatamente no sentido de não dar para, de não servir de préstimo (e não de não prestar serviço útil), de combater, mas não resistir que pretendo avocar a semântica do “não servir”.
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Não sirvo, porque não sei assumir um passado político em que não me revejo, que recebi como herança, mas que não sei gerir.
Não sirvo, porque, em vez de assumir os projetos coletivos como pertença coletiva, os apresento como meus.
Não sirvo, porque, ao invés do debate de ideias e da aceitação dos desafios, acuso colegas meus de traição, de falta de respeito à palavra dada, de se apropriarem de ideias minhas, de se contradizerem.
Não sirvo, porque não disse tudo o que pensava para não criar problemas dentro do meu partido, para não fomentar divisões.
Não sirvo, porque não sei tirar ilações das vitórias eleitorais tangenciais.
Não sirvo, porque, para resolver um problema interno, demoro tempo imenso, crio outros problemas e faço alinhar a coletividade por experimentalismos cujo efeito se desconhece.
Não sirvo, porque acuso outrem de representar a fação do meu partido de corporizar a promiscuidade entre política e negócios ou de serem sempre “os mesmos” a decidir.
Não sirvo, porque tenho enorme dificuldade em ultrapassar as categorias de análise das jotas em que cresci e olhar para o país com todo o seu complexo de exigências, situações problemáticas e assimetrias geográficas, económicas e sociais.
Não sirvo, porque me passam ao lado situações graves como inscrições regularizadas de militantes por ressuscitar, emigrados ou integrados em listas adversas ao meu partido, bem como quotas pagas à chapelada e depois de meses e meses em atraso.
Não sirvo, porque almejo obter maioria absoluta em eleições legislativas e, se não a obtiver, estabelecerei acordo de incidência parlamentar para servir de suporte maioritário a um governo eficaz. Porém, declaro que não celebrarei qualquer acordo com partidos que ponham em causa as opções europeias e a permanência no Euro, viabilidade e a robustez do Estado Social, a contenção da dívida pública, o equilíbrio das contas e o crescimento da economia. Para tanto, convocarei um referendo interno para consulta dos militantes em relação à política de alianças.
Não sirvo, porque “ignoro” que cumprir o estipulado no parágrafo anterior é a mesma coisa que tentar meter a Betesga no Rossio ou fazer esperar inutilmente o país por aquilo que deve ser assumido por quem forma governo.
Não sirvo, porque, como toda a gente prefere, prometo solenemente não aumentar a carga fiscal, baixar o IVA da restauração, negociar o aumento do salário mínimo nacional e a reposição da massa salarial em contexto da concertação social. E, se, ao chegar ao Governo, verificar que não tenho condições para governar sem aumentar impostos, obviamente que apresento a minha demissão.
É óbvio que eu, que sou um crítico daqueles que não encaram com serenidade e coragem as situações difíceis, não sirvo para governar em circunstância adversas, até porque prometo o que nunca se deve prometer!
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E servirei, se me afaço aos cargos espreitando as situações de sucesso, criticando quem está agarrado ao lugar, quem se deixa enredar pelo aparelho partidário (que eu ajudei a criar), quem empola os resultados positivos, mas tangenciais, das eleições?
E servirei, se julgo que não é tempo de especificar promessas, como o atinente ao salário mínimo nacional, à carga fiscal ou à reposição da massa salarial?
E servirei, se me limito a enunciar três ou quatro eixos de atuação em termos europeus e outros tantos em termos nacionais?
E servirei, se me escudo nas possíveis surpresas que a comunidade internacional pode impor ao panorama nacional, para me dispensar de enunciar publicamente as principais medidas de governação, talvez para que o eleitorado não me castigue por antecipação?
E servirei, se não apresento ideias claras de operacionalização da renegociação das condições da dívida, do equilíbrio das contas, incluindo a leitura inteligente do tratado orçamental, e do crescimento da economia, incluindo o emprego?
E servirei, se não apresento diretrizes claras sobre a Segurança Social e sobre o sistema financeiro?
E servirei, se descuro aspetos formais importantes na gestão da coisa pública, que mexem com a dura legalidade e o apurado sentido de justiça e equidade ou se me escudo na promessa de que não ressuscitarei os mortos nem recorrerei à chapelada?
E servirei, se me divirto a criticar o líder que não lidera, não ganha, não une o partido?
E servirei, se me extasio com plúrimos apoios e de gente de prestígio, como se isso fosse significativo para uma governação equânime?
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E como servirei, se insisto na ideia de que estamos no rumo certo, depois de ter provocado o empobrecimento geral do país, fragilizado os aposentados e reformados, os funcionários do Estado (com cortes e mais cortes salariais e de pensões)?
E como servirei, se depauperei, a níveis nunca vistos, o serviço nacional de saúde, a escola pública, a Segurança Social, a relação intergeracional, mas ajudei a engrossar o pecúlio de uns poucos?
E como servirei, se promovo uma reforma administrativa calculada em termos sociais e economicistas e uma reforma da Justiça a régua e a esquadro?
E como servirei, se induzo a perfilhação da inevitabilidade da austeridade, mas deixo que as despesas públicas continuem a crescer, apesar de inventar todas as formas de esvaziar as carreiras na administração pública e levar o pessoal à inatividade?
E como servirei, se juro fidelidade cega a quem manda na Europa, sem uma atitude de sentido crítico e defesa dos cidadãos, indo além da troika, insinuando as vantagens da emigração e a erradicação da pieguice?
E como servirei, se apenas conheço uma forma de governar?
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Obviamente que não sirvo, mas eu, seja quem for, tenho de servir!

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