Não estou a evocar, de momento, a
rebelião do anjos que se recusaram aberta e frontalmente a servir na presença
de Deus e no desempenho das missões que Ele lhes confiaria e que, por isso, foram
precipitados no inferno, criado desde o princípio (vd
Mt 25,41) para o
demónio e seus anjos (mensageiros e/ou seguidores). Não estou a parafrasear Lúcifer
(o portador da luz) nem a referenciar o combate singular que o arcanjo São
Miguel, com seus anjos, travou contra o Dragão apocalíptico e seus anjos, os
quais combateram mas não resistiram e nunca mais encontraram lugar no céu (Ap
12,7-8).
É exatamente no sentido de não
dar para, de não servir de préstimo (e não de não prestar serviço útil), de
combater, mas não resistir que pretendo avocar a semântica do “não servir”.
***
Não sirvo, porque não sei assumir
um passado político em que não me revejo, que recebi como herança, mas que não
sei gerir.
Não sirvo, porque, em vez de
assumir os projetos coletivos como pertença coletiva, os apresento como meus.
Não sirvo, porque, ao invés do
debate de ideias e da aceitação dos desafios, acuso colegas meus de traição, de
falta de respeito à palavra dada, de se apropriarem de ideias minhas, de se
contradizerem.
Não sirvo, porque não disse tudo
o que pensava para não criar problemas dentro do meu partido, para não fomentar
divisões.
Não sirvo, porque não sei tirar
ilações das vitórias eleitorais tangenciais.
Não sirvo, porque, para resolver
um problema interno, demoro tempo imenso, crio outros problemas e faço alinhar
a coletividade por experimentalismos cujo efeito se desconhece.
Não sirvo, porque acuso outrem de
representar a fação do meu partido de corporizar a promiscuidade entre política
e negócios ou de serem sempre “os mesmos” a decidir.
Não sirvo, porque tenho enorme
dificuldade em ultrapassar as categorias de análise das jotas em que cresci e olhar para o país com todo o seu complexo de
exigências, situações problemáticas e assimetrias geográficas, económicas e
sociais.
Não sirvo, porque me passam ao
lado situações graves como inscrições regularizadas de militantes por ressuscitar,
emigrados ou integrados em listas adversas ao meu partido, bem como quotas
pagas à chapelada e depois de meses e meses em atraso.
Não sirvo, porque almejo obter maioria
absoluta em eleições legislativas e, se não a obtiver, estabelecerei acordo de incidência
parlamentar para servir de suporte maioritário a um governo eficaz. Porém, declaro
que não celebrarei qualquer acordo com partidos que ponham em causa as opções
europeias e a permanência no Euro, viabilidade e a robustez do Estado Social, a
contenção da dívida pública, o equilíbrio das contas e o crescimento da
economia. Para tanto, convocarei um referendo interno para consulta dos
militantes em relação à política de alianças.
Não sirvo, porque “ignoro” que
cumprir o estipulado no parágrafo anterior é a mesma coisa que tentar meter a Betesga
no Rossio ou fazer esperar inutilmente o país por aquilo que deve ser assumido
por quem forma governo.
Não sirvo, porque, como toda a
gente prefere, prometo solenemente não aumentar a carga fiscal, baixar o IVA da
restauração, negociar o aumento do salário mínimo nacional e a reposição da
massa salarial em contexto da concertação social. E, se, ao chegar ao Governo,
verificar que não tenho condições para governar sem aumentar impostos, obviamente
que apresento a minha demissão.
É óbvio que eu, que sou um
crítico daqueles que não encaram com serenidade e coragem as situações
difíceis, não sirvo para governar em circunstância adversas, até porque prometo
o que nunca se deve prometer!
***
E servirei, se me afaço aos
cargos espreitando as situações de sucesso, criticando quem está agarrado ao
lugar, quem se deixa enredar pelo aparelho partidário (que eu ajudei a criar),
quem empola os resultados positivos, mas tangenciais, das eleições?
E servirei, se julgo que não é
tempo de especificar promessas, como o atinente ao salário mínimo nacional, à carga
fiscal ou à reposição da massa salarial?
E servirei, se me limito a enunciar
três ou quatro eixos de atuação em termos europeus e outros tantos em termos
nacionais?
E servirei, se me escudo nas
possíveis surpresas que a comunidade internacional pode impor ao panorama
nacional, para me dispensar de enunciar publicamente as principais medidas de
governação, talvez para que o eleitorado não me castigue por antecipação?
E servirei, se não apresento ideias
claras de operacionalização da renegociação das condições da dívida, do equilíbrio
das contas, incluindo a leitura inteligente do tratado orçamental, e do
crescimento da economia, incluindo o emprego?
E servirei, se não apresento diretrizes
claras sobre a Segurança Social e sobre o sistema financeiro?
E servirei, se descuro aspetos
formais importantes na gestão da coisa pública, que mexem com a dura legalidade
e o apurado sentido de justiça e equidade ou se me escudo na promessa de que
não ressuscitarei os mortos nem recorrerei à chapelada?
E servirei, se me divirto a criticar
o líder que não lidera, não ganha, não une o partido?
E servirei, se me extasio com plúrimos
apoios e de gente de prestígio, como se isso fosse significativo para uma governação
equânime?
***
E como servirei, se insisto na
ideia de que estamos no rumo certo, depois de ter provocado o empobrecimento
geral do país, fragilizado os aposentados e reformados, os funcionários do Estado
(com cortes e mais cortes salariais e de pensões)?
E como servirei, se depauperei, a
níveis nunca vistos, o serviço nacional de saúde, a escola pública, a Segurança
Social, a relação intergeracional, mas ajudei a engrossar o pecúlio de uns
poucos?
E como servirei, se promovo uma
reforma administrativa calculada em termos sociais e economicistas e uma
reforma da Justiça a régua e a esquadro?
E como servirei, se induzo a perfilhação
da inevitabilidade da austeridade, mas deixo que as despesas públicas continuem
a crescer, apesar de inventar todas as formas de esvaziar as carreiras na administração
pública e levar o pessoal à inatividade?
E como servirei, se juro
fidelidade cega a quem manda na Europa, sem uma atitude de sentido crítico e
defesa dos cidadãos, indo além da troika, insinuando as vantagens da emigração
e a erradicação da pieguice?
E como servirei, se apenas
conheço uma forma de governar?
***
Obviamente que não sirvo, mas eu,
seja quem for, tenho de servir!
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