domingo, 28 de setembro de 2014

Hipocrisia na Política

Hesitei na escolha do título entre o referenciado em epígrafe e “hipocrisia da política”. Mas, pensando melhor, reconheço que a política em si não é hipócrita nem deixa de o ser, como não é boa nem é má. Os homens que a estudam, desenham e praticam é que a modelam. E a sua bondade ou maldade, sinceridade ou fingimento, transparência ou opacidade, esplendor ou hipocrisia são predicados que os seus agentes e atores lhe emprestam.
Vêm estas considerações e a subsequente reflexão a propósito dos recentes desenvolvimentos sobre as putativas transgressões de Passos Coelho num passado já nada recente. Hipocritamente, lançam-se para as pantalhas da comunicação social umas questões configuradoras de uma série de labéus – com ou sem razão, mas a destempo – sobre algumas figuras públicas. Aconteceu, por exemplo, a Cavaco Silva, quando chefe do Governo, por obras particulares; a Cadilhe, Braga de Macedo e António Vitorino, por alegado pagamento de sisa em não consonância com o valor de transações efetuadas; a Sócrates, por múltiplos casos; e, agora, a Passos Coelho.
Talvez falte em Portugal o mecanismo do escrutínio ou antes de as diversas figuras públicas se perfilarem como candidatas à ocupação de determinados cargos públicos – de ordem política ou de alto nível administrativo – ou, ao menos, antes da entrada em exercício, como acontece nalguns países e com os candidatos à Comissão Europeia. Não percebo mesmo como é que António Vitorino não pôde continuar Ministro da Defesa Nacional em Portugal, por alegado comportamento fiscal ao nível das sisas, e pôde ser empossado como comissário europeu, para mais em áreas relacionadas com a justiça. E não entendo como Sócrates foi incomodado, por motivos vários, quando já navegava no mar alto da liderança do Governo e o objeto do incómodo vinha dos tempos em que era Secretário de Estado e Ministro. Aliás, eu até entendo: Quando, em 2007, surgiu o caso do seu percurso académico, o responsável por um grande jornal declarou que já tinham o processo pronto desde havia dois anos, mas não havia sido encontrado o momento oportuno. E eu matutei e inferi que, em 2005, tinham ocorrido as eleições para a Assembleia da República; e, como Santana Lopes tinha caído em desgraça, teria sido “antipatriótico” criar problemas à candidatura do PS encabeçada por Sócrates. Porém, como a CMVM vetou, em 2007, uma OPA em que o interessado era alguém ligado ao pressuposto diário, chegara o momento oportuno ou o ponto de rebuçado. E o animal feroz, apesar de toda a campanha contra si deferida por setores diversos, incluindo o dos professores (que sugeriam se votasse em qualquer “um”, menos no PS) e a Presidência da República (com a narrativa das escutas), conseguiu a reeleição, embora sem maioria absoluta.
De Passos Coelho, em 2011, nada se disse. E já se sabia que pedira desculpa aos portugueses por ter colaborado com um PEC, que agravava a carga fiscal, ao invés do que garantira antes. Passado pouco tempo, já o associavam à Tecnoforma e a Relvas. Agora, vêm com a narrativa do exercício do cargo de deputado em regime de exclusividade ou não, de ter requerido e recebido o subsídio de reintegração por ter deixado o cargo em 1999 e de ter recebido dinheiros da ONG (o CPPC) tutelada pela Tecnoforma. E, segundo percebi, reina a confusão entre ajudas de custo, deslocações ao serviço da organização (as ajudas de custo eram e são tributáveis a partir de um determinado montante) – atribuíveis mesmo a pessoas que não integrem quadros da empresa – e despesas de representação (hoje tributáveis, mas não ao tempo) atribuíveis somente a altos dirigentes da empresa.
Quanto à postura de Passos Coelho em relação à matéria, teria preferido que ele dissesse de imediato: que tinha exercido o cargo de deputado em regime de exclusividade, que pedira e recebera o subsídio de representação; que, no atinente aos dinheiros da Tecnoforma e satélites, de momento, não sabia quantificar os eventuais montantes recebidos, mas definia um prazo relativamente curto para prestar informação precisa. E, no momento oportuno, explicar-se-ia e, fosse o caso, apresentava o clássico pedido de desculpa por eventual transgressão imponderada, prometendo e mostrando a repostura ético-política (é mais tolerável pedir desculpa por transgressão que pedi-la por erros de plataforma ou outros erros técnicos: estes corrigem-se). A sua gestão da matéria foi lamentável. Remetida para o Parlamento, os serviços responderam ao que puderam; por sua vez, a PGR, ao ser solicitada, respondeu o óbvio, que não iria investigar presumíveis infrações, que, a verificarem-se, teriam já prescrito. E, assim, a investigação seria, se não ilegal, ao menos inútil.
Posso não concordar que determinados crimes e dívidas prescrevam. Não obstante, tenho de confessar que o nosso ordenamento jurídico concede aos cidadãos e às empresas o benefício do tempo, ou seja, se deixarmos supinamente passar longo tempo sobre a prática de determinados crimes ou sobre determinados encargos, a justiça que se quisesse fazer não faria sentido por não reparar com sucesso o mal praticado, porventura já olvidado. A justiça, que não é cega, como dizem, mas imparcial e clarividente, também não é caprichosa e emotiva, mas racional. Por seu turno, a política tanto põe a pedra no passado como rememora caprichosamente certo passado, o de certas figuras públicas, sob o aforismo de que os erros políticos não prescrevem. Não é assim: prescrevem quando convém que prescrevam; não prescrevem, quando convém que não prescrevam – a hipocrisia na política, o capricho no seu esplendor ofuscante que gera opacidade.
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Ora, ao ouvir ler e ao reler o Evangelho da missa do XXVI domingo do tempo comum, relacionado com o de há oito dias, fiquei a enjoar a atividade política e a atentar mais na lucidez e justeza da religião, nomeadamente a que decorre da fé cristã, fundada na Sagrada Escritura.
Mateus, no cap. 20, insere o episódio parabólico do proprietário que saiu a contratar trabalhadores para a sua vinha em cinco momentos diferentes do dia (ao romper da manhã, às 9 horas, ao meio dia, às 15 horas e às 17 horas). Ajustou sempre o pagamento de um denário por dia a cada um. Na hora do pagamento, os do primeiro momento barafustaram pelo facto de o proprietário dar o mesmo denário a uns e a outros, quando a duração do trabalho foi tão diferente (cf Mt 20,1-16). No capítulo 21, vem a parábola dos dois filhos. O pai manda um dos filhos trabalhar na vinha, o qual responde, de imediato, que não quer ir, mas, passado algum tempo, arrependeu-se e foi. Ao dar a mesma indicação ao segundo, este respondeu prontamente que ia, mas não foi (cf Mt 21,28-32). Quanto ao primeiro caso, ficamos a saber que a justiça de Deus passa pelo cumprimento da palavra (aquele proprietário prometeu um denário e cumpriu), pela apreciação e recompensa pela disponibilidade independentemente do momento em que o trabalhador é chamado, pelo combate à ociosidade inútil, pela satisfação das necessidades dos homens – não pela aceitação acrítica das limitações da justiça e dos critérios humanos, sobretudo se não se cria a igualdade de oportunidades. Perspetiva-se que o que interessa não será o passado, o da inatividade / ociosidade, mas o momento da decisão de ir trabalhar no reino de Deus e o comportamento consequente com essa decisão. Segundo Deus, “os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos” (Mt 1,16). Quanto ao segundo caso, interpelados por Cristo, os ouvintes responderam que foi o primeiro filho (o que disse que não ia, mas foi), aquele que fez a vontade do pai (cf Mt 21,31a).
É claro que, para o Senhor, conta muito menos (ou nada mesmo, se as pessoas não arrepiarem caminho) a santidade de fachada, estribada nos comportamentos meramente exteriores, cristalizada numas pequenas obras, ditadas sobretudo pela soberba e pela vaidade, recusando invejosamente o ingresso dos “outros” na intimidade de Deus, no seio da comunidade. Conta, ao invés, para o Senhor, a reposta generosa à chamada para a conversão. O Mestre sentenciou:
Em verdade vos digo: Os cobradores de impostos e as meretrizes vão preceder-vos no Reino dos Céus. João Batista veio até vós, ensinando-vos o caminho da justiça e não acreditastes; mas os cobradores de impostos e as meretrizes acreditaram nele. E vós nem depois de verdes isto, vos arrependestes para acreditar nele (Mt 21,31b-32).

Em sintonia com esta economia salvífica perspetivada por Mateus, vem o texto de Lucas, o Evangelho dos pobres e da Misericórdia. Exemplifiquemos com duas passagens.
Quando na casa do fariseu, que convidara o Mestre para uma refeição, o anfitrião murmurava a crítica de que Ele não saberia que tipo de mulher era aquela – a (pecadora) que lhe banhava os pés com as lágrimas, lhos enxugava com os seus cabelos e os ungia com perfume – Jesus acusou o toque dado pela pedagogia da conversão. São-lhe perdoados os seus muitos pecados porque muito amou, mas aquele a quem pouco se perdoa pouco ama. E disse à mulher, Os teus pecados estão perdoados. (cf Lc 7,36-48). Efetivamente, se Deus nos ama, porque fugimos?
E o capítulo 15 faz a narrativa das três parábolas da misericórdia (a da ovelha perdida, a da dracma perdida e a do pai que tinha dois filhos, na qual tradicionalmente se destaca o filho pródigo que regressa à casa paterna) – vd Lc 15,1-32 – introduzidas por um segmento curioso: “Aproximavam-se d’Ele todos os cobradores de impostos e pecadores (os que estavam abertos ao dinamismo do Reino) para o ouvirem. Mas os fariseus e doutores da Lei (os supinamente e externamente justos) murmuravam entre si, Este acolhe os pecadores e come com eles”.
Quanto ao comentário final a cada uma destas parábolas, os segmentos são eloquentes. Para a da ovelha perdida, procurada e reencontrada: “Haverá mais alegria no Céu por um só pecador que se converte do que por 99 justos que não precisam de conversão” (Lc 15,7). Em relação à dracma perdida e achada, depois de tanta procura: “Assim haverá alegria entre os anjos de Deus por um só pecador que se converte” (Lc 15,10). Mas perante o reencontro do filho que regressou, o discurso do Pai é de ênfase reforçada, dirigindo-se ao filho mais velho: “Filho, tu está sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. Mas tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos (nós, aqui e já) porque este teu irmão estava morto e reviveu; estava perdido e foi encontrado” (Lc 15,31-32).
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Como é santa a sabedoria divina e reta a justiça de Deus, ao invés do ressabiamento daqueles políticos que, por interesses mesquinhos, pretendem fazer a folha a quem lhes faz sombra por passado que já não teria interesse, mas reabilitam aqueles cuja sombra lhes possa oferecer a sombra por que anseiam, mesmo que o chão esteja enlameado! Parece-me que Deus não acredita que haja homens irrecuperáveis, quer que a linguagem seja “sim” ou “não” e que quem erra seja corrigido (por etapas): a sós, com testemunhas, em Igreja (cf Mt 18,15-17)! 

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