No sábado, dia 6 de fevereiro, na
celebração eucarística, reparei que na parte frontal da toalha do altar da
celebração se podia ler o segmento textual Meu
Senhor e meu Deus. E logo o pensamento se me dirigiu para a passagem pascal
do Evangelho de João em que Tomé – que garantira aos companheiros que, se não
visse nas mãos e nos pés do Ressuscitado o lugar dos cravos e se não metesse a
mão no lado do peito onde estava a chaga da lança, não acreditaria – se
prostrou quando Cristo, na segunda aparição aos discípulos, se lhe apresentou
como ele parece ter exigido. E com a prostração o apóstolo pronunciou aquelas
palavras que exprimem uma fé de indizível pasmo contemplativo (cf
Jo 20,19-29).
Porém, o pensamento, que não tem
muito que fazer, interrogou-se-me sobre a razão que transportou para a memória
coletiva Tomé como o homem que duvida, que se recusa a crer sem ter visto,
quando, com base na jaculatória Meu
Senhor e meu Deus, ele deveria ser festejado como o homem da fé profunda e
adorante. Mais: não percebo como a onda da modernidade já entende que Judas, o
Iscariotes, com o seu ato de traição, estava a servir de instrumento
providencial, provavelmente sem o pretender, para que se cumprisse no Mestre o
desígnio redentor. Mas o Dídimo continua como o homem tardo em acreditar,
quando todos sabemos ou podemos saber que Ele foi de extrema utilidade para que
o Mestre pudesse dispor da pedagogia da sua identificação de ressuscitado com
Aquele mesmo que fora crucificado e sepultado, mostrando-se tal qual era. E a
Ressurreição estava na linha do anunciado por Ele próprio na sequência da
Crucifixão, Morte e Sepultura, tanto depois da transfiguração (cf
Mt 17,9; Mc, 9,9-10; Lc 9,43-45)
como já depois da confissão de fé petrina (cf Mt 16,21-23; Mc,
8,31-33; Lc 9,21-22).
***
Entretanto, escutei pela TVI a homilia
do sacerdote que, do santuário de Nossa Senhora de Nazaré, clamava que a fé não é
para ser vivida individualmente, mas para ser comunitariamente celebrada,
chegando mesmo a insinuar que não fazia sentido as pessoas procurarem um templo
para se recolherem longe do bulício da multidão. E lembrei-me da confissão de
fé de Tomé Meu Senhor e meu Deus, em
que o determinante possessivo “meu” remete para a 1.ª pessoa do singular, a
qual identifica o indivíduo, a pessoa que fala. E lá pensei que a fé é pessoal.
Aliás, a maior parte dos símbolos
da fé adotam a forma singular “creio” (no latim, “credo”; e, no grego,
“πιστεύω”). E, quando, na profissão de fé, se utiliza o diálogo (pergunta do
oficiante-resposta do profitente), a pergunta inicia-se com a forma verbal no
singular da 2.ª pessoa, aquela para quem se fala e que há de responder ao
“crês?” (no latim, “credis?”; e, no grego, “πιστεύεις;”). Também por esta via
se reforça a componente individual e pessoal do ato de fé.
No entanto, reparei que, compulsando
os diversos símbolos referidos por J. Kelly (Primitivos
Credos Cristianos – Salamanca: Secretariado Trinitário, 1980) e transcritos por
Denzinger-Scönmetzer (Enchiridion
Symbolorum Definitionum et Declarationis… Ed XXXIV. Barcelona: Herder,
1964), que alguns
formulam a profissão de fé na 1.ª pessoa do plural, o que remete para a
dimensão comunitária do ato e da profissão de fé. Adotam a forma verbal “cremos”
(no latim, “credimus”; e, no grego, “πιστεύομεν”). E, quando, na profissão de fé,
se utiliza o diálogo, a pergunta inicia-se com a forma verbal no plural da 2.ª
pessoa, aquela para quem se fala e que há de responder ao “credes?” (no latim,
“creditis?”; e, no grego, “πιστεύετε;”). Tais são, por exemplo: os símbolos
batismais da Igrejas da Arménia e de Antioquia, o de Santo Agostinho, o de
Eusébio de Cesareia, o de São Cirilo de Jerusalém, o de Santo Epifânio de
Salamina, o símbolo maior da Igreja da Arménia, o pseudoatanasiano, o símbolo
de Teodoro de Mopsuéstia, o de São Dâmaso ou de São Jerónimo, a profissão de fé
de Justino e algumas versões do niceno-constantinoplitano. Atualmente, a
profissão de fé dialogada, muitas vezes, tem a pergunta com o plural e a resposta
com o singular, segundo o esquema: Credes? Sim, creio!
Também é de notar que, mesmo que
a fórmula seja proferida no singular, a profissão de fé pessoal é emitida (ou pressupõe-se
que o é) perante a comunidade – o que não invalida que o crente, em certos e
muitos momentos, necessite e goste de estar sozinho recolhido em casa ou no
interior do templo e até pretenda e deva fazer o ato de fé a sós com Deus e exercitar a oração mental. Não pode,
porém, excluir a profissão pessoal e pública da fé sempre que lho seja solicitado,
quando participa na celebração comunitária e quando assume um compromisso de
caráter comunitário ou de vinculação à comunidade ou a um serviço a prestar em
nome dela.
A fé possui as duas dimensões – pessoal
e comunitária – sem que uma possa excluir a outra, devendo, antes, contar com
ela numa linha de intercorrelação e interatividade. Tanto assim é que Pedro, quando
os irmãos, depois da pregação do Pentecostes, perguntavam o que haviam de
fazer, respondeu: “Convertei-vos e peça cada
um o batismo em nome de Jesus Cristo” (At 2,38-39). Quero dizer que todos, em
conjunto (“Saiba toda
a Casa de Israel” – At 2,36),
ouviram a pregação, mas cada um teria de pedir o batismo em nome de Cristo. É a
componente comunitária em perfeita aliança com o empenho pessoal, individual (não
individualista).
Por seu turno, o Catecismo da
Igreja Católica (1992) assegura a síntese entre as duas dimensões da fé, a pessoal
e a comunitária. Nunca a fé pode ser reduzida à esfera privada ou só da consciência!
A dimensão pessoal, que implica
totalidade, consciência, compromisso, obediência, na liberdade e na dignidade de quem se
sente pessoa humana na verdadeira aceção da palavra:
A fé é uma adesão pessoal, do homem todo, a Deus
que Se revela. Comporta uma adesão da inteligência e da vontade à Revelação que
Deus fez de Si mesmo, pelas suas ações e palavras. (n.º 176). «Crer» é um ato
humano, consciente e livre, que está de acordo com a dignidade da pessoa
humana. (n.º 180).
Implica
solidariedade, reciprocidade (recetividade de alguém para comunicar a outrem),
encadeamento:
A
fé é um ato pessoal, uma resposta livre do homem à proposta de Deus que Se
revela. Mas não é um ato isolado. Ninguém pode acreditar sozinho, tal como
ninguém pode viver só. Ninguém se deu a fé a si mesmo, como ninguém a si mesmo
se deu a vida. Foi de outrem que o crente recebeu a fé; a outrem a deve
transmitir. O nosso amor a Jesus e aos homens impele-nos a falar aos outros da
nossa fé. Cada crente é, assim, um elo na grande cadeia dos crentes. Não posso
crer sem ser amparado pela fé dos outros, e pela minha fé contribuo também para
amparar os outros na fé. (n.º 166).
Mas a fé é comunitária, eclesial:
«Crer» é um ato eclesial. A fé da Igreja precede,
gera, suporta e nutre a nossa fé. A Igreja é a Mãe de todos os crentes.
«Ninguém pode ter a Deus por Pai, se não tiver a Igreja por Mãe». (n.º 181).
Tão
pertinente é dizer “eu creio”, para formar a vinculação pessoal a Deus e ao seu
povo, como “nós cremos”, para assegurar a ligação íntima à comunidade, a
integração na comunidade dos crentes que são capazes de professar, quer no
singular quer no plural, a mesma fé, a fé da Igreja.
«Eu
creio»: é a fé da Igreja, professada pessoalmente por cada crente,
principalmente por ocasião do Baptismo. «Nós cremos»: é a fé da Igreja,
confessada pelos bispos reunidos em Concílio ou, de modo mais geral, pela
assembleia litúrgica dos crentes. «Eu creio»: é também a Igreja, nossa Mãe, que
responde a Deus pela sua fé e nos ensina a dizer: «Eu creio», «Nós cremos». (n.º
167).
Rezamos comunitariamente. E a
maneira como rezamos espelha a índole da nossa fé: «Olhai, Senhor, para a fé da vossa Igreja».
É,
antes de mais, a Igreja que crê, e que assim suporta, nutre e sustenta a minha
fé. É primeiro a Igreja que, por toda a parte, confessa o Senhor (A Santa Igreja anuncia
por toda a terra a glória do vosso nome» – como cantamos no Te Deum). Com ela e nela, também nós somos
atraídos e levados a confessar: «Eu creio», «Nós cremos». É da Igreja que
recebemos a fé e a vida nova em Cristo, pelo Baptismo. No Ritual Romano, o ministro do Baptismo pergunta ao
catecúmeno: «Que vens pedir à Igreja de Deus?» E ele responde: – «A fé». – «Para
que te serve a fé?» – «Para alcançar a vida eterna» (n.º 168).
A salvação vem pela fé. Mas a salvação
e a fé vêm de Deus, o dispensador dos seus dons. E a mãe e educadora da fé rumo
à salvação é a Igreja
A
salvação vem só de Deus. Mas porque é através da Igreja que recebemos a vida da
fé, a Igreja é nossa Mãe. «Cremos que a Igreja é como que a mãe do nosso novo
nascimento, mas não cremos na Igreja como se ela fosse a autora da nossa
salvação. E porque é nossa Mãe, é também a educadora da nossa fé.» (n.º 169).
O ritual do batismo, que nos
propõe um compromisso de fé pessoal (Crês?
Creio! ou Credes? Creio!), garantira-nos que é a comunidade cristã, a Igreja,
que nos recebe. E, depois da profissão da fé batismal, estabelece a seguinte proclamação:
“Esta é a nossa fé, esta é a fé da Igreja,
que todos nos orgulhamos de professar em Jesus Cristo Nosso Senhor”. E o compêndio
do Catecismo da Igreja Católica (2005), responde à questão “Porque
é que a fé é um ato pessoal e ao mesmo tempo eclesial?”, nos seguintes termos:
A
fé é um ato pessoal, enquanto resposta livre do homem a Deus que se revela. Mas
é ao mesmo tempo um ato eclesial, que se exprime na confissão: «Nós cremos». De
facto, é a Igreja que crê: deste modo, ela, com a graça do Espírito Santo,
precede, gera e nutre a fé do indivíduo. Por isso a Igreja é Mãe e Mestra.
(n.º 30).
E o Papa Francisco, na sua
catequese de 15 de janeiro, ensinou que a dimensão comunitária da fé não é só uma
moldura, mas faz parte integrante da vida cristã:
Existe
uma ligação indissolúvel entre a dimensão mística e a missionária da vocação
cristã, ambas enraizadas no Batismo. “Recebendo a fé e o Batismo, nós cristãos
acolhemos a ação do Espírito Santo, que leva a confessar Jesus Cristo como
Filho de Deus e a chamar Deus ‘Abba’, Pai. Todos os batizados e batizadas…somos
chamados a viver e a transmitir a comunhão com a Trindade, porque a
evangelização é um apelo à participação na comunhão trinitária”. Ninguém se
salva sozinho. Somos comunidade de crentes, somos Povo de Deus e nesta
comunidade experimentamos a beleza de partilhar a experiência dum amor que
precede a todos, mas que, ao mesmo tempo, nos pede para sermos canais da graça
uns para os outros, apesar dos nossos limites e pecados. A dimensão comunitária
não é só uma “moldura”, um “contorno”, mas é parte integrante da vida cristã,
do testemunho e da evangelização. A fé cristã nasce e vive na Igreja e no
Batismo as famílias e as paróquias celebram a incorporação de um novo membro a
Cristo e ao seu corpo, que é a Igreja.
E apresenta um caso prático e histórico
da dimensão comunitária e familiar da educação na fé:
A
propósito da importância do Batismo para o Povo de Deus, é exemplar a história
da comunidade cristã do Japão. Ela sofreu dura perseguição no início do século
XVII. Foram numerosos mártires, os membros do clero foram expulsos e milhares
de fiéis foram mortos. Não ficou no Japão nenhum padre, todos foram
expulsos. Mas a comunidade retirou-se na clandestinidade conservando a fé e a
oração em reclusão. E, quando nascia uma criança, o pai ou a mãe batizavam-na (todos
os fiéis podem batizar em particulares circunstâncias”. Quando, depois de dois
séculos e meio, 250 anos depois, os missionários retornaram ao Japão, milhares
de cristãos saíram da clandestinidade e a Igreja pôde reflorescer. Tinham
sobrevivido com a graça do Batismo! Isto é grandioso: o Povo de Deus transmite
a fé, batiza os seus filhos e segue adiante. E mantiveram, mesmo em segredo, um
forte espírito comunitário, porque o Batismo os tornou um só corpo em Cristo:
foram isolados e escondidos, mas foram sempre membros do Povo de Deus, membros
da Igreja. Podemos aprender tanto com esta história!
Sem comentários:
Enviar um comentário