É o título de uma local do jornal
Público, de 24 de setembro, com a
chancela de Catarina Moura, e tem a ver com as “cinco peças mais importantes da
ourivesaria religiosa portuguesa do século XVIII” que se reúnem no Museu
Nacional de Arte Antiga (MNAA), em Lisboa, depois de investigações sobre a sua
história. E a colunista sublinha que “uma delas saiu pela primeira vez dos
Açores entre protestos”. O conteúdo da informação vem naturalmente replicado
noutros órgãos da comunicação social.
Com efeito, o MNAA organizou a
exposição Splendor et Gloria: Cinco Joias Setecentistas de Exceção,
que, inaugurada a 24 de setembro, se manterá até ao próximo dia 4 de janeiro.
São cinco peças de ourivesaria, quatro delas de arte sacra e a última também de
feição religiosa, que não sacra: a Custódia da Bemposta (MNAA), a Custódia da Sé Patriarcal (Sé
de Lisboa), o
Resplendor do Senhor dos Passos da Graça (Convento da Graça,
Lisboa), o
Resplendor do Senhor Santo Cristo dos Milagres (Convento da Esperança,
Ponta Delgada) e o
Hábito Grande das Três Ordens Militares (insígnia régia guardada
hoje pelo Palácio da Ajuda, em Lisboa).
Apesar de se tratar de uma
exposição pequena, o seu interesse, segundo as palavras do comissário da
exposição e diretor do MNAA, António Filipe Pimentel, reúne “as mais
importantes peças de ourivesaria produzidas em Portugal” na segunda metade do
século XVIII. Por outro lado, é a oportunidade inédita de conhecer as
conclusões da investigação sobre o modo de funcionamento da produção destas
peças e ver peças que nunca tinham sido expostas, mas que agora serão
contempladas pelos visitantes numa sala especial em que, ao contrário do
aforismo, “tudo o que reluz é ouro, prata dourada, diamantes, rubis, safiras,
esmeraldas”.
Ainda, de acordo com a informação
do mencionado comissário, estaremos perante uma “exposição zoom” ou “exposição laboratório”, já que esta peças se iluminam-se “entre
si e são suficientes para explicar o processo” de conceção de um espécime de
ourivesaria deste tipo “e os avanços científicos” que se fizeram até agora.
O comissariado da exposição
editou um catálogo que explica toda a investigação desenvolvida em torno destes
objetos, como compaginando a história do final do século de setecentos narrada
por estas peças. Iniciou-se a investigação com o restauro da Custódia da
Bemposta, no ano de 2013, e da Custódia da Patriarcal, já neste ano.
As três peças que pertencem à
Igreja, conforme explica Luísa Penalva, que cocomissaria a exposição com
Pimentel e Anísio Franco, não tinham estudos científicos laboratoriais e
históricos associados.
Com o desenvolvimento deste
trabalho, ficou perfeitamente claro que uma coisa é desenhar a peça de
ourivesaria e fazê-la é outra. E Pimentel exemplifica com o caso de João
Frederico Ludovice, o arquiteto do Convento de Mafra, que também seria ourives,
não no sentido de ter uma oficina de ourivesaria, mas no sentido de desenhar as
peças. Segundo, o comissário, a mão de Ludovice, que desenhou o Convento de
Mafra, está nos desenhos originais do Resplendor do Senhor dos Passos e da
Custódia da Patriarcal, a qual tem de facto a estrutura equilibrada e
harmoniosa de um edifício em miniatura: “os seus alicerces trabalhados abrem
espaço para as pequenas figuras simbólicas que estão no centro, como um
pelicano, que bica o seu próprio peito para sangrar e alimentar os filhos”. Mas
não é de sua mão o talhe da peça. A produção estava entregue a uma das oficinas
que proliferavam por Lisboa. Hoje, diríamos que eram designers sem produção própria, para além de Ludovice, Joaquim
Machado de Castro (escultura da Custódia da Patriarcal) e Mateus Vicente de
Oliveira (Custódia da Bemposta e resplendor açoriano) – figuras de topo no desenho
de ourivesaria. Todo o trabalho de projeto e execução da peça durava um tempo
considerável, que podia chegar aos sete anos – o que deu azo a que se disseminassem
as oficinas de ourivesaria em Lisboa, para satisfazer todas as encomendas da
corte.
***
Porém, o diretor do MNAA confessa
que fora particularmente difícil reunir estas peças — apesar de serem apenas
cinco —, porque três delas servem ainda hoje o culto: a Custódia da Patriarcal
e os dois resplendores estão “ligados a imagens de grande devoção”.
De entre as cinco peças que integram
a exposição em exclusivo, o ex-líbris desta dificuldade foi o resplendor
açoriano. Não que isso tenha afetado as negociações com o MNAA, mas pelo facto
de a imprensa regional se ter desdobrado em artigos, textos de opinião, cartas
de leitores contra e a favor do empréstimo da mais valiosa peça dos tesouros do
Senhor Santo Cristo — movimento liderado pela Irmandade do Senhor Santo Cristo
dos Milagres e pela Congregação de Maria Imaculada, a qual tem a guarda daquele
tesouro. Argumentavam com a valia do resplendor e com o facto de sair do
Convento da Esperança apenas três vezes por ano e ser “parte integrante de um
conjunto de culto, que não se pode sujeitar a critérios e visões estritamente
técnicas” (vd Joaquim Machado, cronista do Açoriano Oriental). Também o presidente da
Irmandade o classificava como “um peso na nossa fé incalculável” e invocava o
facto de não estarem asseguradas as condições de segurança. E a reverenda madre
superiora do Convento advogava que “o que guarda o tesouro do Senhor Santo
Cristo dos Milagres é a fé do povo açoriano” e que, por isso, a viagem até
Lisboa equivaleria a deixá-lo desprotegido.
O certo é que, no final do mês de
maio, se juntaram 500 pessoas num cordão humano no Santuário da Esperança, em
Ponta Delgada, para se afirmarem contra a decisão do bispo de Angra, António Sousa
Braga, depois de terem tomado conhecimento do anúncio que a diocese tinha feito
de que o Resplendor do Senhor Santo Cristo dos Milagres ia viajar para Lisboa
para uma exposição no Museu Nacional de Arte Antiga. E, só quatro meses depois,
este resplendor saiu de facto pela primeira vez dos Açores.
***
Podendo não ser este o caso da
gente dos Açores, é frequente os residentes de uma localidade – considerados
individualmente, em mole popular ou mesmo enquadrados por organizações
representativas das instituições religiosas – oferecerem resistência à saída
dos seus tesouros artísticos conexos com a religião, independentemente do valor
artístico que lhes possa ser atribuído. E há boas razões históricas. Os nossos
templos foram em determinadas épocas esventrados dos seus tesouros. Também hoje
é recorrente o assalto e consequente danificação, destruição ou roubo de
imagens, peças de ourivesaria, objetos em material caro. E as peças de museu
nem sempre foram adquiridas por meios lícitos. Assim, teme-se pela segurança
das peças em transferência e invoca-se a fé. Porém, muitas das vezes, a
segurança é um dado adquirido, como no caso do MNAA, e a fé nem sempre é muita.
E os mais aguerridos opositores são tantas vezes os que menos zelam pela
segurança dos tesouros e os que menos fé demonstram em suas vidas, configurando
suas atitudes mais teimosia que zelo ou fé.
Por outro lado, é esquecida uma
das vertentes que levam à produção de muitas obras de arte: além do culto de
dulia (veneração), a catequese. Se a fé vem ex auditu (do
e pelo ouvido), ou
seja, se para suscitar o ato de fé é necessária a pregação, a leitura de texto
e a visualização da imagem constituem um alimento não dispensável para a fé. E
o culto particular, que resulta do afeto que é concomitante com a fé, e o culto
público, que manifesta a fé e a reforça comunitariamente, são facilitados com a
contemplação da imagem. E, em tempo de menor alfabetização e de menores
recursos disponíveis para todos, a hermenêutica do espaço sagrado, das pinturas
e dos vitrais bem funcionavam como a Biblia
Pauperum (a Bíblia dos Pobres), assim como compendiam períodos da história das
mentalidades e das culturas. E a leitura que estas peças do património
artístico e cultural não pode circunscrever-se aos utentes habituais; tem de
servir de informação e formação alargada ao maior número possível de cidadãos
cultos e/ou devotos.
É óbvio que, por exemplo, o São
Pedro que Grão Vasco pintou não representa o rude pescador da Galileia, mas
figura um papa do renascimento, majestaticamente sentado no trono renascentista
como se o novo Pedro fosse o imperador do mundo ou o representante sumptuoso do
Cristo “Pantocrator”. E, no quadro da adoração dos magos, algumas versões
apresentam, para um deles, uma figura humana conotada com a negritude; noutras,
um índio – o que só testemunha a ideia da revelação de Cristo aos gentios ou a
universalidade da Salvação.
Neste contexto, é conveniente
atentar naquilo que nos diz José Tolentino Mendonça, padre e poeta, que foi
convidado a escrever o texto de abertura do catálogo acima referido, onde
explica que estas peças sumptuosas “sussurram-nos uma prece, colocam-nos uma
questão inapagável”: a “interrogação de Deus”.
Resta-me criticar o enunciado
exarado em epígrafe, transcrito do citado diário. Para adorar a Deus não é
preciso fazer despesas. Basta, mas é necessário, que Ele seja adorado em
espírito e verdade (cf Jo 4,23.24). Porém, para facilitar o culto
a Deus e para promover o ato de fé, para concretizar a evangelização, celebrar comunitariamente
Fé e a Vida e para disponibilizar meios para que a Igreja esteja em saída para
socorro de quem mais precisa, é bom que não se olhe a despesas. É certo que o Evangelho
de Lucas testemunha de forma eloquente a compaixão do Mestre e configura o
verdadeiro Evangelho dos pobres, bem como a carta de Tiago. Não obstante, Cristo
não deixa de ensinar no Templo (cf Jo 7,14-25; 8,2) e de expulsar de lá os vendilhões,
porque o zelo da cada do Pai O devora e a casa do Pai é casa de oração (cf
Jo 3,13-17).
Não se devem criticar os reis por
terem encomendado tesouros artísticos, erigido templos e promovido solenes atos
de culto. Critiquem-se por terem acreditado demasiado tempo que o poder lhes
advinha diretamente de Deus, sentindo-se, por isso, legitimados para dele
usarem e abusarem, oprimindo os súbditos, escravizando as populações, fazendo
demasiadas vezes a guerra e cerrarem os ouvidos ao clamor das gentes.
É óbvio que iniquamente muito do
que fazia falta aos pobres foi canalizado para o culto e para os templos e
joias religiosas, para exponenciar a imagem da magnanimidade régia. Todavia,
não se pode pautar a ação da Igreja maniqueisticamente por dois princípios como
se fossem antagónicos: ou o esplendor do culto ou os pobres. Tem de haver
equilíbrio na distribuição dos recursos. Não se pode roubar aos pobres, aos
doentes, à família, à educação para atribuir perdulariamente os recursos ao
culto e aos espaços religiosos, como não se pode esvaziar a terra de sinais
religiosos e manifestações de fé pessoal e pública à custa imponderada da
existência de necessidades, muitas vezes a encobrir uma funda dimensão
hedonística. Há valores do espírito – cultura, memória, solidariedade e
transcendência – que também não podem esperar. Há valores do progresso e da
civilização, da ciência, da investigação e da inovação que bem podem ajudar na
resolução dos problemas da pobreza. E esta é a batalha de todos os dias (Pobres
sempre os tereis, mas a Mim não me tendes sempre – cf Jo 12,8) ou, se quisermos, a mãe de
todas as batalhas.
Não há, pois, um tempo em que
para adorar a Deus não se olhe a despesas. Tem de haver sempre a
disponibilidade para a mobilização e distribuição equitativa dos recursos e
definição justa das prioridades!
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