terça-feira, 16 de setembro de 2014

Não somos consumidores, pois não!

Regressaram à RTP1 os debates no âmbito do programa “Prós e Contras”, sob a moderação de Fátima Campos Ferreira. Vi o mais recente, que abordou a proposta de Lei cujo objeto é a taxação sobre a cópia privada, no âmbito do material digital, já aprovada pelo Conselho de Ministros e em fase de discussão na Assembleia da República.
Esteve presente, com as suas intervenções e encerramento do debate, o Secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier. Na sua perspetiva, trata-se de transpor para a ordem jurídica interna uma diretiva europeia já não recente e que se limita a atualizar a lei em vigor sobre a matéria, em consonância com 22 países europeus.
Segundo a perceção que retirei do debate, o que estará em causa é uma taxa adicional (que variará entre 5 cêntimos e os vinte euros), além do IVA, conexa com a aquisição de aparelhos (computador, telemóvel, leitor de MP3, CD, tablet, Ipad, Iped, Ipod…) ou cartão de memória onde se podem ler e guardar peças (texto, música, vídeo, etc.), como utilizar materiais produzidos pelo próprio utilizador no desempenho de atividade profissional e /ou hobby.
Como é natural, a posição do Governo tem defensores, com relevo para a Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) e os autores e artistas. Mas também tem inúmeros opositores, como por exemplo, bloguistas, académicos, peritos em software e outros.
Os defensores são de opinião que a lei peca pelo atraso inexplicável e deve, sem se confundir com ela, ser complementada por uma lei contra a pirataria digital.
Os opositores argumentam que a proposta de lei da cópia privada, apresentada pelo Governo, é um “imposto encapotado” (pois os adquirentes não recebem em troca nenhum benefício direto), que não segue a legislação que está a ser aplicada na União Europeia, conforme afirmou já hoje, dia 16 de setembro, Paul Meller, o responsável da organização internacional Digital Europe. Por isso, alertam para o impacto negativo da aplicação daquela lei no mercado da eletrónica de consumo e para a injustiça para o consumidor final.
Todos entendem que em causa está uma proposta de lei, apresentada em agosto pelo governo, que tem como objetivo compensar financeiramente autores e artistas pelo facto de um consumidor adquirir equipamento e dispositivos que armazenem obras como músicas e filmes.
No entanto, dividem-se nas motivações e nos efeitos. Enquanto uns argumentam com a compensação equitativa, outros aduzem o facto de se tratar de dupla tributação pelo mesmo objeto e esclarecem que “fazer uma cópia ilegal não é o mesmo que fazer uma cópia legal privada”. Por outro lado, o consumidor final não saberá o que está a pagar.
Houve quem alvitrasse a hipótese, desde logo rejeitada, de as indústrias se encarregarem de assumir o encargo desta nova taxa, alegadamente à semelhança do que se passou com muitas unidades da restauração que assumiram cobrir o aumento do IVA de 13% para 23%, não fazendo repercutir esse aumento no consumidor. Claro, apesar de vaiado, o proponente de tal solução, denunciava a cartelização que muitas empresas fazem no país, obstando à perceção dos benefícios resultantes da livre concorrência, e deu como exemplo os casos das fornecedoras de eletricidade, combustíveis e telecomunicações, quando sem razão aparente são pródigas em promoções de novos produtos.
O Secretário de Estado, a isto esclareceu que a lei não determinará quem assumirá os encargos da taxa em causa, declarando que não tem se ser o consumidor a pagar.
Segundo a proposta de lei, a cobrança, gestão e distribuição das verbas arrecadas será feita pela AGECOP (Associação para a Gestão da Cópia Privada). A SPA canaliza 40% destas verbas para o seu Fundo Cultural, que se destina ao apoio de projetos editoriais, que dizem não ter hipótese de viabilização sem tal ajuda.
Toda a gente entende que os autores e artistas devem ser acarinhados e ser pagos pelo seu trabalho criativo. No entanto, houve quem opinasse que, para tanto, não deveria ser utilizada a via de um pagamento duplo ou triplo por uma mesma atividade criativa, por exemplo, a mesma música. E é óbvio que a crise que atingiu toda a sociedade portuguesa, com a exceção de muito poucos, também incidiu sobre os produtores criativos. A este respeito, foi recordado o exemplo da vizinha Espanha, que preferiu resolver o problema por via orçamental.
Hoje, num encontro promovido em Lisboa pela Digital Europe, o seu responsável Paul Meller deu como exemplo o Reino Unido, que este ano aprovou uma exceção na lei, precisamente para proteger os consumidores que pretendem adquirir equipamentos para fazer cópias privadas – por exemplo, guardar fotografias ou copiar um CD para uso privado. E, referindo-se à Espanha, reafirmou que a compensação equitativa aos autores e artistas é feita através de um fundo suportado pelos impostos.
Sobre a União Europeia, o mesmo responsável referiu que a União anda há 13 anos a braços com uma diretiva sobre direitos de autor e cópia privada, que está a ser adotada de modo diferente por cada um dos seus Estados-Membros.
Note-se, à laia de parêntesis, que a Digital Europe é uma organização que representa 56 empresas do setor das tecnologias de informação e 36 associações europeias. Sobre o tema, a organização considera que a aprovação desta proposta de lei portuguesa é um retrocesso em que relação ao que está a ser feito na generalidade dos países da União Europeia.
Por seu turno, José Valverde, diretor da Associação Empresarial do Sectores Elétrico, Eletrodoméstico, Fotográfico e Eletrónico (AGEFE), reafirmou a oposição à proposta de lei do Governo e acredita que “a maioria dos deputados” votará contra.
Também Ana Isabel Trigo Morais, diretora-geral da Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição (APED), foi contundente, ao declarar que “Portugal vai legislar no sentido contrário à União Europeia e a prazo vai ter que alterar a lei e vai ser obrigado a harmonizar a legislação”. Esta responsável informou que o mercado da eletrónica de consumo sofreu uma quebra de 30 por cento desde 2010, mas o consumidor português vai continuar a consumir e “vai encontrar alternativas”, sobretudo no retalho online.

***
Naturalmente, a plateia de “Prós e Contras” ia batendo palmas, por segmentos, conforme o sentido das intervenções agradava. A propósito dos aplausos, um dos intervenientes ironizou como é que um Secretário de Estado que tolheu gravemente toda a produção cultural recebia palmas precisamente dos autores e artistas. E outro, a propósito da memória futura, sentenciou que o atual Secretário de Estado da Cultura tinha já motivos para ficar na História, mas a atual proposta de lei fornecer-lhe-á um lugar ainda de maior relevo.
No debate havia intervenientes que ali estavam em nome de associações várias com interesse na matéria (ex.: SPA, AGECOP, AGEFE, APEDE…) e também alguns em nome próprio. Eis quando a jornalista e escritora Leonor Xavier se lembra de pedir intempestivamente a palavra para questionar a representatividade de alguns intervenientes, que estavam ali a título singular. A moderadora reagiu bem: uns estavam ali em representação de coletividades, outros pela experiência no setor e outros pela competência científica e técnica. E interviriam porque ela os tinha convidado. Como também, perante o facto de alguém questionar o uso frequente da palavra pelo senhor José Valverde, Fátima Campos Ferreira ripostou declarando que o senhor Valverde interviria sempre que ela o solicitasse para os devidos esclarecimentos.
Porém, o que mais me escandalizou foi o facto de o Senhor Secretário de Estado, lá do alto da sua autoritária inocência, simulando ignorar o contexto, se abespinhou por ali se falar recorrentemente de autores e consumidores interrogando hipocritamente o auditório se efetivamente os portugueses eram somente consumidores, se não eram mais nada.
É claro que o governante sabe melhor do que eu que, quando falamos de máquinas e aparelhos, temos necessariamente a produção (neste caso a indústria), a distribuição (vendedores e revendedores) e naturalmente o consumo – os consumidores, Senhor Secretário de Estado, Excelência! Mais: foi dito no debate moderado por Campos Ferreira, que neste ponto, também o Estado como consumidor iria pagar uma fatura gravada, sempre que precisasse de proceder a aquisições destes materiais. E, quando se fala de transações, é mais que normal que se evidencie, por um lado, o produtor (neste caso, o produtor criativo e o produtor instrumental) e, por outro, o consumidor, a razão de existência dos produtores, ficando os outros no seu importante papel de mediadores. Todavia, quem costuma pagar tudo é o consumidor final, não será?!
Mas eu quero dizer, já que Sua Excelência me puxou pela pena, que efetivamente este Governo agravou imensamente as condições que tornaram os portugueses quase somente contribuintes e quase nada consumidores. Porque alegadamente os portugueses viveram acima das suas possibilidades, tiveram que sofrer aumentos brutais de impostos até se atingir a hiperfadiga fiscal e brutais cortes nas suas pensões (de reforma, aposentação, de sobrevivência…), bem como a forte oneração do sistema contributivo e, se funcionários públicos, muito piores condições de trabalho e drásticos cortes salariais. Se nos lembrarmos do desemprego e do emagrecimento do respetivos subsídios, se… Ai, assim os portugueses, sem poder de compra, como é que podem consumir? São contribuintes e basta-lhes! E para que se não esqueçam de ser contribuintes, sorteia-se-lhes periodicamente uma automóvel “Audi”. Se não conseguirem ter estatuto de consumidor, encostam o veículo… E, já agora, onde para a cidadania, por onde anda ela?

Muito obrigado, Senhores Ministros e Senhores Secretários de Estado, por terem livrado Portugal de um nefasto vício: o consumismo. Deus os compense na mesma medida!

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