Celebra-se a 14 de setembro a
festa da Exaltação da Santa Cruz. Em latim, o mistério celebrado neste dia
denomina-se Exaltatio Sanctae
Crucis (literalmente, Exaltação ou Triunfo da Santa Cruz) e, em grego, Ὕψωσις τοῦ Τιμίου Σταυροῦ (literalmente, Elevação ou Glorificação da
Preciosa Cruz). Assim, há quem lhe chame Festa da Cruz Gloriosa ou,
como em algumas partes da Comunhão Anglicana ou pelos luteranos, Santo Dia da Cruz.
Antes
da reforma do calendário litúrgico em consonância com as determinações do
concílio Vaticano II, celebrava-se, também a 3 de maio, a festa da Invenção (ou
achamento) da Santa Cruz. Recordava, assim, a Liturgia os seguintes factos: a
descoberta, segundo a tradição, da Vera Cruz, em 326, por Helena de Constantinopla,
a mãe do imperador Constantino I, durante a sua peregrinação a Jerusalém; a
recuperação, em 628, pelo imperador bizantino Heráclio, da Cruz, que estava em
poder dos Persas, que tinham invadido a cidade de Jerusalém em 614 e tomaram a
Cruz; o retorno da Cruz a Jerusalém depois de ter permanecido em Constantinopla
durante um ano, após a recuperação operada por Heráclio.
Apesar
de o calendário reformado pelo Vaticano II ter suprimido a festa da Invenção a
3 de maio, numa ótica de evitar a dispersão de festividades sobre o mesmo
motivo religioso, restando com relevo acrescentado a festividade de 14 de
setembro, não pode esquecer-se o facto de a Liturgia promover, em Sexta-feira
Santa, no âmbito da celebração litúrgica da tarde depois da proclamação da Palavra,
com destaque para o relato da Paixão segundo São João, e antes da Comunhão), o
ritual da apresentação pública, adoração e osculação da Cruz, permanecendo a
mesma exposta em lugar de destaque no templo durante o resto da tarde. E, tal
como sucedeu com o evento protagonizado por Helena
de Constantinopla ou Helena da Cruz (que
promoveu, no sítio da descoberta, a construção da Igreja do Santo Sepulcro, a
dedicação da mesma, a exposição da cruz, para que os fiéis pudessem orar e venerá-la),
a aparição e exibição da Cruz leva ao seu levantamento, exposição e adoração. A
Sexta-feira Santa realiza estas dimensões no quadro do ciclo temporal do ano
litúrgico e o 14 de setembro satisfá-las no quadro do santoral.
***
Porém,
mais do que a nomenclatura, importa o significado da Cruz para o cristianismo.
Nos primeiros tempos, o símbolo identificador dos discípulos de Cristo não era
a Cruz. Suponho que há, pelo menos, dois motivos para o justificar.
No
contexto civilizacional e cultural que envolve o mundo dos judeus no tempo de
Cristo, o suplício da Cruz era infligido a criminosos que não tivessem o
estatuto de homens livres e era um castigo exemplar de proveniência estrangeira
dominante, neste caso, do Império Romano, que incluía a Palestina como uma das
suas províncias. Os judeus, para aqueles que infringiam a Torah (adultério,
apostasia, heresia…), tinham a lapidação ou o apedrejamento (cf Jo 8,5; At 7,58.59);
os romanos puniam os criminosos com a flagelação e a pena capital determinada
para os escravos era a crucifixão, mas para os homens livres, cidadãos romanos
(como Paulo de Tarso – civis sum romanus,
clamava), era a decapitação. Assim, numa primeira fase, tentaram o
apedrejamento ou, melhor, a precipitação do alto do monte sob o qual estava
edificada a cidade de Nazaré (cf
Lc 4,28-30) para Jesus, mas Ele passou à vontade pelo meio deles.
Depois, quando deram conta de que os motivos religiosos como causa de morte de
Jesus poderiam enfurecer o povo, que O escutava e admirava, era necessário
encontrar um motivo político que levasse a autoridade imperial a decidir pela
crucifixão: “Se libertas esse homem; não és amigo de César! Todo aquele que se
faz rei declara-se contra César.” (Jo 19,12) – replicavam os judeus a Pilatos.
Depois
que Jesus ressuscitou e deu aos apóstolos o mandato de irem por toda a parte e
fazerem discípulos entre todas as gentes, era necessário, sem ignorar o valor da
crucifixão, evidenciar, como essencial ao anúncio querigmático, que Aquele que
os chefes pregaram no madeiro, ressuscitou e foi constituído como Senhor e Messias (cf At 2,36), que foi
a Ele que Deus elevou, com a sua direita, como Chefe e Salvador, a fim de
conceder a Israel o arrependimento e a remissão dos pecados; e que os
apóstolos eram testemunhas destas coisas
juntamente com o Espírito Santo, que Deus tem concedido àqueles que Lhe
obedecem (cf At 5,31-32).
Por
outro lado, não seria eficaz, até que se estabelecesse e consolidasse a doutrina,
apresentar como emblema da nova religião um instrumento que era considerado
símbolo da ignomínia e da escravidão. Entretanto, Paulo vai já fazendo o
caminho doutrinal, quando clama: “Toda a nossa glória está na Cruz de Nosso
Senhor Jesus Cristo. N’ Ele está a nossa salvação, vida e ressurreição; por Ele
formos salvos resgatados.” (cf Gl
6,14). Ou quando, com todo o desassombro, proclama: “Nós pregamos
Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os gentios; mas
para os que são chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é poder de Deus e
sabedoria de Deus.” (1Co
1,23-24). E, ao falar de Cristo e sua humilhação, coloca a razão de
ser do seu poderio e exaltação em ter obedecido
até à morte e morte de Cruz (cf Fl 2,8).
Também,
em ambiente de perseguição, quer entre os judeus, no princípio, quer entre os
romanos, depois, sobretudo em regime catacumbal, seria complicado avançar com a
cruz como distintivo da nova religião, perante a qual todas as outras tinham de
cessar.
Todavia,
os discípulos, cada vez em maior número, encontraram um símbolo identitário que
lhes servia muito bem e de acordo com o núcleo querigmático da Boa Nova.
Bastaria a recordação dos episódios da multiplicação dos pães (o elemento
fundamental da alimentação dos povos) e dos peixes (o elemento conotado com a
multiplicação – veja-se o caso da pesca milagrosa ou a promessa de fazer dos
discípulos pescadores de homens). Por outro lado, o designativo de peixe em
grego – língua da cultura e língua franca através da qual se difundiu a Bíblia
Hebraica pelos judeus da diáspora e, depois, o cristianismo pelo império
romano, culturalmente helenizado – era a palavra ’ΙΧΘ´ΥΣ (ichthus), que funcionava como acrónimo de ’Ιησους (Iesoϋs) Χριστòς
(Christos) Θεοϋ (theou) ´Υιòς (huios) Σωτήρ (soter), que significa Jesus Cristo
Filho de Deus Salvador. Cá estão os aspetos fundamentais do anúncio: Jesus, o
que liberta dos pecados; Cristo, o ungido, o Messias; Filho de Deus, a
divindade; e Salvador, a marca soteriológica da missão redentora de Jesus.
***
Entretanto,
em 313, com o édito de Milão, por Constantino I, foi dada a paz à Igreja.
Assim, abertamente começou a apresentar-se, como símbolo pessoal do cristianismo,
o monograma de Cristo, o Fundador e Mestre, constituído pelas duas letras
maiúsculas gregas iniciais da palavra Χριστός – Χ e Ρ – cruzadas. E instaurou-se
o culto devoto da cruz como símbolo público e crescentemente pessoal.
Efetivamente,
no ano 312, Constantino, que dominava o território hoje conhecido como França e
Grã-Bretanha, partiu para fazer guerra a Maxêncio, seu cunhado, na Itália. A
caminho, diz-se haver tido uma visão ao anoitecer de 27 de outubro, junto à
ponte Milvius, quando os exércitos se
preparavam para a batalha. Ao olhar para o sol que se escondia no ocaso,
viam-se as letras gregas Χ Ρ (Chi-Rho) entrelaçadas com uma cruz.
Juntamente
com aquele monograma, lia-se a inscrição latina “IN HOC SIGNO VINCES”, sob este
sinal vencerás. Constantino, que era pagão nessa altura (apesar de sua mãe ter
sido muito provavelmente cristã desde muito cedo), colocou, como símbolo nos
escudos dos seus soldados, uma cruz, sobre a qual se liam estas palavras “HOC
VINCE”, Vence (imperativo) com isto. Após a vitória, Constantino fez da cruz o
estandarte de seus exércitos, o novo lábaro (do latim, labarum;
e, do grego antigo, λάβαρον. Lábaron, era um vexilo ou
estandarte militar romano: etimologicamente do latim /labāre/ 'balançar, oscilar'
– no sentido de “oscilar” uma bandeira ao vento; ou laureum [vexillum], “estandarte de glória”).
Quando, mais tarde, o cristianismo se tornou, com Teodósio, a religião oficial
do Império Romano, a cruz tornou-se o símbolo da Igreja.
A
cruz, que era símbolo de indignidade, por crime e/ou escravidão, passou a
significar redenção, vitória. E, como retém a teologia paulina, se em Adão
todos pecaram, em Cristo todos foram salvos. E os teólogos hoje ensinam que “na
árvore da cruz”, Deus estabeleceu “a salvação da Humanidade”, de modo que
“donde viera a morte” (a árvore do conhecimento do bem e do mal no paraíso
terreal), “daí” (da árvore da cruz de Cristo) “ressurgisse a vida” e “aquele
que vencera na árvore do paraíso” (o demónio na figura de serpente enganadora)
fosse vencido na Cruz por Cristo Nosso Senhor” (vd prefácio da Santa Cruz).
E
a liturgia, enquanto lex orandi lex
credendi, exalta a nova Cruz como estandarte que proclama ao mundo a morte
e a glória de Jesus; a “árvore fecunda e refulgente, ornada com a túnica real”,
que é, para “o corpo chagado e glorioso” de Cristo, o tálamo, o trono e o
altar; e, para os crentes, única esperança, insígnia triunfal, chave do céu,
penhor de eterna glória, sinal de bênção, instrumento de redenção (cf hinos do ofício da Exaltação da Santa Cruz).
E, “pelo sinal da Santa Cruz, livre-nos Deus Nosso Senhor de nossos e inimigos”
(fórmula habitual da persignação).
A
cruz e o Cristo nela suspenso já vêm prefigurados no livro dos Números. Quando
o povo perdeu a paciência no deserto e vociferou contra Deus e contra Moisés,
recebeu como castigo o ataque de serpentes de fogo, que mordiam as pessoas.
Quem fosse mordido morria. E morreu muita gente. Perante, o fenómeno, o povo
caiu em si e reconheceu o pecado. Deus deu indicações a Moisés para que fizesse
uma serpente de fogo e a prendesse num poste. Quem, depois de mordido, olhasse
para ela, teria a vida salva. E assim aconteceu (cf Nm 21,4c-9). E Jesus, no Evangelho de João, diz a
Nicodemos prenuncia: “Da mesma forma que Moisés elevou a serpente no deserto,
assim o Filho do Homem deve ser elevado para que todo aquele que acredita tenha
n’ Ele a vida eterna”…,pois “Deus não enviou o Filho ao mundo para condenar o
mundo, mas para que este seja salvo por seu intermedio” (cf Jo 3,14-15.17). E, quando um dos
soldados abriu, com a lança, o peito do Crucificado, logo jorrou sangue e água,
o apóstolo e evangelista João conclui que se cumpria a profecia de Zacarias (12,10): “Hão de olhar para aquele que trespassaram”
(cf Jo 19, 34.37). Por seu turno, o
livro do Apocalipse, evocando a visão futura da vinda de Cristo, afirma: “Ele
vem no meio das nuvens. Todos os olhos O verão, até aqueles que O trespassaram.
Todas as nações da Terra se lamentarão por causa d’ Ele” (Ap 1,7).
***
Assim se torna pertinente
o comentário que o organizador do Missal Romano, no âmbito da reforma
litúrgica, faz da festa da Exaltação Santa Cruz, em sintomia com a declaração Nostra Aetate e a constituição Gaudium et Spes, do Vaticano II:
Foi
na Cruz que Jesus Cristo ofereceu ao Pai o Seu Sacrifício, em expiação dos
pecados de todos os homens. Por isso, é justo que veneremos o sinal e o
instrumento da nossa libertação. Objeto de desprezo, patíbulo de infâmia, até
ao momento em que Jesus “obediente até à morte” nela foi suspenso, a Cruz
tornou-se, desde então, motivo de glória, polo de atração para todos os homens.
Ao celebrarmos esta festa, nós queremos proclamar que é da cruz, “sinal do amor
universal de Deus, fonte de toda a graça” (NA,4) que deriva toda a vida de Igreja.
Queremos também manifestar o nosso desejo de colaborar com Cristo na salvação
dos homens, aceitando a Cruz, que a carne e o mundo fizeram pesar sobre nós
(GS,38).
E, com o bispo
Santo André de Creta, os cristãos celebram a Santa Cruz,
“que dissipou as trevas e nos restituiu a luz”. E, juntamente com o Crucificado,
são “elevados para o alto, para que, deixando a terra do pecado”, alcancem “os
bens celestes”. Quem possui a cruz, “possui um tesouro”, porque ela “é na
verdade, de nome e de facto, o mais precioso de todos os bens. Nela está a
plenitude da nossa salvação e por ela regressamos à dignidade original”.
Efetivamente sem a cruz não haveria o edificante
espetáculo do Crucificado e a Sua Morte. E, “sem a cruz, a
Vida não teria sido cravada no madeiro”. Ora, “se a Vida não tivesse sido
crucificada, não teriam brotado do seu lado” (de Cristo, o novo Adão adormecido)
como fontes de imortalidade, o sangue e a água, “que purificam o mundo; não
teria sido rasgada a sentença de condenação escrita pelo nosso pecado”, não
teríamos alcançado a liberdade e podido saborear o fruto da árvore da vida, “não
estaria aberto para nós o Paraíso”, não teria sido vencida a morte, nem
espoliado o inferno.
Grande e preciosa realidade é a Santa Cruz! – exclama
o santo bispo. É “grande, porque é a
origem de bens inumeráveis, tanto mais excelentes quanto maior é o mérito que
lhes advém dos milagres e dos sofrimentos de Cristo”. É “preciosa, porque a
cruz é simultaneamente o patíbulo e o troféu de Deus: patíbulo, porque nela sofreu
a morte voluntariamente; e troféu, porque nela foi mortalmente ferido o
demónio, e com ele foi vencida a morte. E, deste modo, destruídas as portas do
inferno, a cruz converteu-se em fonte de salvação para todo o mundo. A cruz é a
glória e a exaltação de Cristo, o cálice precioso da Paixão de Cristo, a
síntese de tudo quanto Ele sofreu por nós”.
Para o cristão interiorizar que a Cruz é a glória de
Cristo, deve escutar o que Ele mesmo diz:
Agora foi
glorificado o Filho do homem e Deus foi glorificado n’Ele e em breve O glorificará
(cf Jo 13,31). Glorifica-me, ó Pai, com a glória que tinha junto de Ti, antes
de o mundo existir (Jo 17,5). Pai, glorifica o teu nome. Veio então uma voz do
Céu: ‘Eu O glorifiquei e de novo O glorificarei’ (Jo 12,28).
E para saber que a ela é também a exaltação de Cristo,
há de o cristão escutar o que o próprio Mestre diz: Quando Eu for exaltado,
então atrairei todos a Mim (Jo 12,32).
– Cf “Dos
Sermões”, de Santo André de Creta, bispo – Sermão 10, na Exaltação da Santa
Cruz: PG 97, 1018-1019.1022-1023 – Sec. VIII – In Liturgia das horas, IV).
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