segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Festa da Santa Cruz

Celebra-se a 14 de setembro a festa da Exaltação da Santa Cruz. Em latim, o mistério celebrado neste dia denomina-se Exaltatio Sanctae Crucis (literalmente, Exaltação ou Triunfo da Santa Cruz) e, em grego, Ὕψωσις τοῦ Τιμίου Σταυροῦ (literalmente, Elevação ou Glorificação da Preciosa Cruz). Assim, há quem lhe chame Festa da Cruz Gloriosa ou, como em algumas partes da Comunhão Anglicana ou pelos luteranos, Santo Dia da Cruz.
Antes da reforma do calendário litúrgico em consonância com as determinações do concílio Vaticano II, celebrava-se, também a 3 de maio, a festa da Invenção (ou achamento) da Santa Cruz. Recordava, assim, a Liturgia os seguintes factos: a descoberta, segundo a tradição, da Vera Cruz, em 326, por Helena de Constantinopla, a mãe do imperador Constantino I, durante a sua peregrinação a Jerusalém; a recuperação, em 628, pelo imperador bizantino Heráclio, da Cruz, que estava em poder dos Persas, que tinham invadido a cidade de Jerusalém em 614 e tomaram a Cruz; o retorno da Cruz a Jerusalém depois de ter permanecido em Constantinopla durante um ano, após a recuperação operada por Heráclio.
Apesar de o calendário reformado pelo Vaticano II ter suprimido a festa da Invenção a 3 de maio, numa ótica de evitar a dispersão de festividades sobre o mesmo motivo religioso, restando com relevo acrescentado a festividade de 14 de setembro, não pode esquecer-se o facto de a Liturgia promover, em Sexta-feira Santa, no âmbito da celebração litúrgica da tarde depois da proclamação da Palavra, com destaque para o relato da Paixão segundo São João, e antes da Comunhão), o ritual da apresentação pública, adoração e osculação da Cruz, permanecendo a mesma exposta em lugar de destaque no templo durante o resto da tarde. E, tal como sucedeu com o evento protagonizado por Helena de Constantinopla ou Helena da Cruz (que promoveu, no sítio da descoberta, a construção da Igreja do Santo Sepulcro, a dedicação da mesma, a exposição da cruz, para que os fiéis pudessem orar e venerá-la), a aparição e exibição da Cruz leva ao seu levantamento, exposição e adoração. A Sexta-feira Santa realiza estas dimensões no quadro do ciclo temporal do ano litúrgico e o 14 de setembro satisfá-las no quadro do santoral.
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Porém, mais do que a nomenclatura, importa o significado da Cruz para o cristianismo. Nos primeiros tempos, o símbolo identificador dos discípulos de Cristo não era a Cruz. Suponho que há, pelo menos, dois motivos para o justificar.
No contexto civilizacional e cultural que envolve o mundo dos judeus no tempo de Cristo, o suplício da Cruz era infligido a criminosos que não tivessem o estatuto de homens livres e era um castigo exemplar de proveniência estrangeira dominante, neste caso, do Império Romano, que incluía a Palestina como uma das suas províncias. Os judeus, para aqueles que infringiam a Torah (adultério, apostasia, heresia…), tinham a lapidação ou o apedrejamento (cf Jo 8,5; At 7,58.59); os romanos puniam os criminosos com a flagelação e a pena capital determinada para os escravos era a crucifixão, mas para os homens livres, cidadãos romanos (como Paulo de Tarso – civis sum romanus, clamava), era a decapitação. Assim, numa primeira fase, tentaram o apedrejamento ou, melhor, a precipitação do alto do monte sob o qual estava edificada a cidade de Nazaré (cf Lc 4,28-30) para Jesus, mas Ele passou à vontade pelo meio deles. Depois, quando deram conta de que os motivos religiosos como causa de morte de Jesus poderiam enfurecer o povo, que O escutava e admirava, era necessário encontrar um motivo político que levasse a autoridade imperial a decidir pela crucifixão: “Se libertas esse homem; não és amigo de César! Todo aquele que se faz rei declara-se contra César.” (Jo 19,12) – replicavam os judeus a Pilatos.
Depois que Jesus ressuscitou e deu aos apóstolos o mandato de irem por toda a parte e fazerem discípulos entre todas as gentes, era necessário, sem ignorar o valor da crucifixão, evidenciar, como essencial ao anúncio querigmático, que Aquele que os chefes pregaram no madeiro, ressuscitou e foi constituído como Senhor e Messias (cf At 2,36), que foi a Ele que Deus elevou, com a sua direita, como Chefe e Salvador, a fim de conceder a Israel o arrependimento e a remissão dos pecados; e que os apóstolos eram testemunhas destas coisas juntamente com o Espírito Santo, que Deus tem concedido àqueles que Lhe obedecem (cf At 5,31-32).
Por outro lado, não seria eficaz, até que se estabelecesse e consolidasse a doutrina, apresentar como emblema da nova religião um instrumento que era considerado símbolo da ignomínia e da escravidão. Entretanto, Paulo vai já fazendo o caminho doutrinal, quando clama: “Toda a nossa glória está na Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. N’ Ele está a nossa salvação, vida e ressurreição; por Ele formos salvos resgatados.” (cf Gl 6,14). Ou quando, com todo o desassombro, proclama: “Nós pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os gentios; mas para os que são chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é poder de Deus e sabedoria de Deus.” (1Co 1,23-24). E, ao falar de Cristo e sua humilhação, coloca a razão de ser do seu poderio e exaltação em ter obedecido até à morte e morte de Cruz (cf Fl 2,8).
Também, em ambiente de perseguição, quer entre os judeus, no princípio, quer entre os romanos, depois, sobretudo em regime catacumbal, seria complicado avançar com a cruz como distintivo da nova religião, perante a qual todas as outras tinham de cessar.
Todavia, os discípulos, cada vez em maior número, encontraram um símbolo identitário que lhes servia muito bem e de acordo com o núcleo querigmático da Boa Nova. Bastaria a recordação dos episódios da multiplicação dos pães (o elemento fundamental da alimentação dos povos) e dos peixes (o elemento conotado com a multiplicação – veja-se o caso da pesca milagrosa ou a promessa de fazer dos discípulos pescadores de homens). Por outro lado, o designativo de peixe em grego – língua da cultura e língua franca através da qual se difundiu a Bíblia Hebraica pelos judeus da diáspora e, depois, o cristianismo pelo império romano, culturalmente helenizado – era a palavra ’ΙΧΘ´ΥΣ (ichthus), que funcionava como acrónimo de ’Ιησους (Iesoϋs) Χριστòς (Christos) Θεοϋ (theou) ´Υιòς (huios) Σωτήρ (soter), que significa Jesus Cristo Filho de Deus Salvador. Cá estão os aspetos fundamentais do anúncio: Jesus, o que liberta dos pecados; Cristo, o ungido, o Messias; Filho de Deus, a divindade; e Salvador, a marca soteriológica da missão redentora de Jesus.
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Entretanto, em 313, com o édito de Milão, por Constantino I, foi dada a paz à Igreja. Assim, abertamente começou a apresentar-se, como símbolo pessoal do cristianismo, o monograma de Cristo, o Fundador e Mestre, constituído pelas duas letras maiúsculas gregas iniciais da palavra Χριστός – Χ e Ρ – cruzadas. E instaurou-se o culto devoto da cruz como símbolo público e crescentemente pessoal.
Efetivamente, no ano 312, Constantino, que dominava o território hoje conhecido como França e Grã-Bretanha, partiu para fazer guerra a Maxêncio, seu cunhado, na Itália. A caminho, diz-se haver tido uma visão ao anoitecer de 27 de outubro, junto à ponte Milvius, quando os exércitos se preparavam para a batalha. Ao olhar para o sol que se escondia no ocaso, viam-se as letras gregas Χ Ρ (Chi-Rho) entrelaçadas com uma cruz.
Juntamente com aquele monograma, lia-se a inscrição latina “IN HOC SIGNO VINCES”, sob este sinal vencerás. Constantino, que era pagão nessa altura (apesar de sua mãe ter sido muito provavelmente cristã desde muito cedo), colocou, como símbolo nos escudos dos seus soldados, uma cruz, sobre a qual se liam estas palavras “HOC VINCE”, Vence (imperativo) com isto. Após a vitória, Constantino fez da cruz o estandarte de seus exércitos, o novo lábaro (do latim, labarum; e, do grego antigo, λάβαρον. Lábaron, era um vexilo ou estandarte militar romano: etimologicamente do latim /labāre/ 'balançar, oscilar' – no sentido de “oscilar” uma bandeira ao vento; ou laureum [vexillum], “estandarte de glória”). Quando, mais tarde, o cristianismo se tornou, com Teodósio, a religião oficial do Império Romano, a cruz tornou-se o símbolo da Igreja.
A cruz, que era símbolo de indignidade, por crime e/ou escravidão, passou a significar redenção, vitória. E, como retém a teologia paulina, se em Adão todos pecaram, em Cristo todos foram salvos. E os teólogos hoje ensinam que “na árvore da cruz”, Deus estabeleceu “a salvação da Humanidade”, de modo que “donde viera a morte” (a árvore do conhecimento do bem e do mal no paraíso terreal), “daí” (da árvore da cruz de Cristo) “ressurgisse a vida” e “aquele que vencera na árvore do paraíso” (o demónio na figura de serpente enganadora) fosse vencido na Cruz por Cristo Nosso Senhor” (vd prefácio da Santa Cruz).
E a liturgia, enquanto lex orandi lex credendi, exalta a nova Cruz como estandarte que proclama ao mundo a morte e a glória de Jesus; a “árvore fecunda e refulgente, ornada com a túnica real”, que é, para “o corpo chagado e glorioso” de Cristo, o tálamo, o trono e o altar; e, para os crentes, única esperança, insígnia triunfal, chave do céu, penhor de eterna glória, sinal de bênção, instrumento de redenção (cf hinos do ofício da Exaltação da Santa Cruz). E, “pelo sinal da Santa Cruz, livre-nos Deus Nosso Senhor de nossos e inimigos” (fórmula habitual da persignação).
A cruz e o Cristo nela suspenso já vêm prefigurados no livro dos Números. Quando o povo perdeu a paciência no deserto e vociferou contra Deus e contra Moisés, recebeu como castigo o ataque de serpentes de fogo, que mordiam as pessoas. Quem fosse mordido morria. E morreu muita gente. Perante, o fenómeno, o povo caiu em si e reconheceu o pecado. Deus deu indicações a Moisés para que fizesse uma serpente de fogo e a prendesse num poste. Quem, depois de mordido, olhasse para ela, teria a vida salva. E assim aconteceu (cf Nm 21,4c-9). E Jesus, no Evangelho de João, diz a Nicodemos prenuncia: “Da mesma forma que Moisés elevou a serpente no deserto, assim o Filho do Homem deve ser elevado para que todo aquele que acredita tenha n’ Ele a vida eterna”…,pois “Deus não enviou o Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que este seja salvo por seu intermedio” (cf Jo 3,14-15.17). E, quando um dos soldados abriu, com a lança, o peito do Crucificado, logo jorrou sangue e água, o apóstolo e evangelista João conclui que se cumpria a profecia de Zacarias (12,10): “Hão de olhar para aquele que trespassaram” (cf Jo 19, 34.37). Por seu turno, o livro do Apocalipse, evocando a visão futura da vinda de Cristo, afirma: “Ele vem no meio das nuvens. Todos os olhos O verão, até aqueles que O trespassaram. Todas as nações da Terra se lamentarão por causa d’ Ele” (Ap 1,7).
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Assim se torna pertinente o comentário que o organizador do Missal Romano, no âmbito da reforma litúrgica, faz da festa da Exaltação Santa Cruz, em sintomia com a declaração Nostra Aetate e a constituição Gaudium et Spes, do Vaticano II:
Foi na Cruz que Jesus Cristo ofereceu ao Pai o Seu Sacrifício, em expiação dos pecados de todos os homens. Por isso, é justo que veneremos o sinal e o instrumento da nossa libertação. Objeto de desprezo, patíbulo de infâmia, até ao momento em que Jesus “obediente até à morte” nela foi suspenso, a Cruz tornou-se, desde então, motivo de glória, polo de atração para todos os homens. Ao celebrarmos esta festa, nós queremos proclamar que é da cruz, “sinal do amor universal de Deus, fonte de toda a graça” (NA,4) que deriva toda a vida de Igreja. Queremos também manifestar o nosso desejo de colaborar com Cristo na salvação dos homens, aceitando a Cruz, que a carne e o mundo fizeram pesar sobre nós (GS,38).

E, com o bispo Santo André de Creta, os cristãos celebram a Santa Cruz, “que dissipou as trevas e nos restituiu a luz”. E, juntamente com o Crucificado, são “elevados para o alto, para que, deixando a terra do pecado”, alcancem “os bens celestes”. Quem possui a cruz, “possui um tesouro”, porque ela “é na verdade, de nome e de facto, o mais precioso de todos os bens. Nela está a plenitude da nossa salvação e por ela regressamos à dignidade original”.
Efetivamente sem a cruz não haveria o edificante espetáculo do Crucificado e a Sua Morte. E, “sem a cruz, a Vida não teria sido cravada no madeiro”. Ora, “se a Vida não tivesse sido crucificada, não teriam brotado do seu lado” (de Cristo, o novo Adão adormecido) como fontes de imortalidade, o sangue e a água, “que purificam o mundo; não teria sido rasgada a sentença de condenação escrita pelo nosso pecado”, não teríamos alcançado a liberdade e podido saborear o fruto da árvore da vida, “não estaria aberto para nós o Paraíso”, não teria sido vencida a morte, nem espoliado o inferno.
Grande e preciosa realidade é a Santa Cruz! – exclama o santo bispo. É “grande, porque é a origem de bens inumeráveis, tanto mais excelentes quanto maior é o mérito que lhes advém dos milagres e dos sofrimentos de Cristo”. É “preciosa, porque a cruz é simultaneamente o patíbulo e o troféu de Deus: patíbulo, porque nela sofreu a morte voluntariamente; e troféu, porque nela foi mortalmente ferido o demónio, e com ele foi vencida a morte. E, deste modo, destruídas as portas do inferno, a cruz converteu-se em fonte de salvação para todo o mundo. A cruz é a glória e a exaltação de Cristo, o cálice precioso da Paixão de Cristo, a síntese de tudo quanto Ele sofreu por nós”.
Para o cristão interiorizar que a Cruz é a glória de Cristo, deve escutar o que Ele mesmo diz:
Agora foi glorificado o Filho do homem e Deus foi glorificado n’Ele e em breve O glorificará (cf Jo 13,31). Glorifica-me, ó Pai, com a glória que tinha junto de Ti, antes de o mundo existir (Jo 17,5). Pai, glorifica o teu nome. Veio então uma voz do Céu: ‘Eu O glorifiquei e de novo O glorificarei’ (Jo 12,28).
E para saber que a ela é também a exaltação de Cristo, há de o cristão escutar o que o próprio Mestre diz: Quando Eu for exaltado, então atrairei todos a Mim (Jo 12,32).
– Cf “Dos Sermões”, de Santo André de Creta, bispo – Sermão 10, na Exaltação da Santa Cruz: PG 97, 1018-1019.1022-1023 – Sec. VIII – In Liturgia das horas, IV)

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