O desconcerto do
mundo é tema recorrente na poesia camoniana. A sua própria vida é documento
desse desconcerto, como assegura o epitáfio que mandou colocar sobre a sua
sepultura D. Gonçalo Coutinho, o nobre que teve a fineza de custear o funeral
do vate: Aqui jaz Luís de Camões, príncipe
dos poetas do seu tempo. Viveu pobre e miseravelmente e assim morreu. Humanamente é de questionar como é que
o príncipe dos poetas (do seu tempo e não só) vive e morre pobre e miseravelmente e assim morre. Não deveria a
sorte e a sociedade compensá-lo pelo mérito?
A própria epopeia, que canta as glórias do povo português,
não deixa de salientar uma linha moral. O tempo de esforço e glória é uma herança
do passado, que os contemporâneos desdizem (como já denunciava Gil Vicente),
pois, amam mal: desprezam os artistas e perseguem-nos; entretêm-se no luxo e no
vício; são aduladores, corruptos e tiranos; e exploram o povo. Por isso, há que
acautelar o futuro contra a “austera, apagada e vil tristeza” (C. X, 145) em
que o reino mergulhou ou o “nevoeiro” em que Portugal se transformou, no dizer
de Fernando Pessoa.
Em especial, as estrofes finais do Canto VIII (96-99) escalpelizam
o poder perverso do dinheiro sobre toda a casta de pessoas. Até a Natureza se
arma contra o homem esforçado e voluntarioso, o qual dificilmente pode
encontrar um lugar que lhe seja propício, já que não passa de pequeno e
inseguro bicho da terra: “No mar, tanta tormenta e tanto dano, / Tantas vezes a
morte apercebida! / Na terra, tanta guerra, tanto engano, / Tanta necessidade avorrecida! / Onde pode acolher-se hum fraco humano, / Onde terá segura a
curta vida, / Que não se arme e se indigne o Céu sereno, / Contra hum bicho da terra tão pequeno?” (C. I,
106). Notem-se as antíteses!
Mas, entre os sofrimentos que
mais doem ao homem, destacam-se, não tanto os que a natureza caprichosamente
lhe proporciona, mas os que resultam da iniquidade ou da fraqueza do homem, quer
individualmente considerado, quer integrado no seu contexto social. É precisamente
no âmbito da iniquidade humana e da fraqueza do inseguro e frágil bicho da
terra que se evidencia o caráter flagrante da injustiça que origina o desacerto
como se o mundo não fizesse sentido. Isto mesmo nos diz o poeta em relação ao seu tempo na esparsa
seguinte, que hoje surge como que
saída do nosso quotidiano:
Ao desconcerto do mundo
Os
bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos;
E, para mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado:
Assim que, só para mim,
Anda o mundo concertado.
No mundo graves tormentos;
E, para mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado:
Assim que, só para mim,
Anda o mundo concertado.
Verificando
que o mundo andava desconcertado a ponto de contraditória e injustamente premiar
os maus e lesar os bons, o vate decide “conscientemente” enveredar pela via da
maldade. Porém, com amarga ironia, reconhece que para si (“só
para mim”) o mundo
está concertado.
Também, nos sonetos, Camões
aborda a temática do desconcerto. Assim, no soneto cujo primeiro verso é “Verdade,
Amor, Razão, Merecimento”, o emissor lírico entende que estes predicados tornarão
“segura e forte” qualquer “alma”, qualquer pessoa. No entanto, o regimento do
mundo fica desconcertado (“confuso”) por ação da “Fortuna, Caso, Tempo e Sorte”
e, nesta ordem de ideias, “Cousas i há que passam sem ser cridas / E cousas
cridas há sem ser passadas”.
Já, no soneto “Cá nesta
Babilónia, donde mana”, o poeta assinala o labirinto, “onde a nobreza, / Com
esforço e saber pedindo vão / Às portas da cobiça e da vileza”. E é “neste
escuro caos de confusão” que o poeta está “cumprindo o curso” na natureza.
E, no soneto “Vós outros, que
buscais repouso certo”, o eu poético
apela àqueles que apenas veem os bens deste mundo e não compreendem a ordem invisível
que a ele preside, que entendam que “o que a Deus é justo e evidente / Parece
injusto aos homens e profundo”.
O poeta aborda ainda o assunto
nas oitavas a Dom António de Noronha,
sobre o desconcerto do mundo, e começa por se interrogar:
I Quem pode ser do mundo tão
quieto,
Ou quem terá tão livre o pensamento, Quem tão experimentado e tão discreto, Tão fora, enfim, de humano entendimento Que, ou com público efeito, ou com secreto, Lhe não revolva e espante o sentimento, Deixando-lhe o juízo quase incerto, ver e notar do mundo o desconcerto? |
II Quem há que veja aquele que vivia
De latrocínios, mortes e adultérios, Que ao juízo das gentes merecia Perpétua pena, imensos vitupérios, Se a Fortuna em contrário o leva e guia, Mostrando, enfim, que tudo são mistérios, Em alteza de estados triunfante, Que, por livre que seja, não se espante? |
III Quem há que veja aquele que tão clara
Teve a vida que em tudo por perfeito O próprio Momo às gentes o julgara, Ainda que lhe vira aberto o peito, Se a má Fortuna, ao bem somente avara, O reprime e lhe nega seu direito, Que lhe não fique o peito congelado, Por mais e mais que seja experimentado? |
Numa
longa complexa e extensa exposição de perplexidades e juízos morais, formulados
na forma interrogada, se desenvolve o poema ao longo de trinta oitavas, ora
interpelando o mundo ora interrogando a circunstância pessoal do sujeito das
emoções e pensamentos na relação com a sociedade e, finalmente, encaminhando o
poema para os assuntos do amor com que termina:
XXIX Mas para onde me leva a fantasia?
Porque imagino em bem-aventuranças, Se tão longe a Fortuna me desvia Que inda me não consente as esperanças? Se um novo pensamento Amor me cria Onde o lugar, o tempo, as esquivanças Do bem me fazem tão desamparado Que não pode ser mais que imaginado? |
XXX Fortuna, enfim, co’o Amor se conjurou
Contra mim, porque mais me magoasse: Amor a um vão desejo me obrigou, Só para que a Fortuna me negasse. A este estado o tempo me achegou, E nele quis que a vida se acabasse; Se há em mim acabar-se, que eu não creio; Que até da muita vida me receio. |
Dirá alguém que o desconcerto não
é novidade, pelo que não há razão para espanto. Todavia, o desconcerto intensifica-se
e prolonga-se. Ora, à medida que o desgoverno cresce em injustiça, premiando os
maus e castigando os cumpridores, maior espanto se gera e parece que ninguém se
habitua a este estado de coisas. Por outro lado, espanta o facto de os homens correrem
atrás de valores que parecem imorredoiros e a morte ou a fortuna tornam efémeros.
E depois vem a desilusão.
A este respeito, o poeta dos sonetos,
das canções e da oitava rima escreve a ode IX, sobre a brevidade da vida, à
maneira do venusiano Caio Horácio Flaco, onde confessa que, “enfim, tudo passa;
/ não sabe o tempo ter firmeza em nada”, inferindo, em termos oximóricos, que “nossa
vida escassa / Foge tão apressada, / Que quando se começa é acabada”. Como diz João
de Deus, “a vida é ai que mal soa”.
As oitavas acima transcritas integram,
como se disse, um conjunto mais vasto de uma trintena de oitavas endereçadas a
um amigo, a partir de um lugar de desterro, por mor de um castigo a que fora
sujeito. E, não se conformando com, propõe como remédio ou escape, o refúgio na
vida rústica contemplativa, segundo os parâmetros da áurea mediania, tão ao
gosto dos clássicos.
***
Na atualidade, o desconcerto não é menor. Todos se vão
lamentando pelo facto de a vida ser injusta: o crime, aliado ao poder e à
riqueza, parece compensar, porquanto; os pobres ou os cumpridores, logo à primeira
prevaricação, são duramente castigados; os “espertos” governam-se em esquemas e
meandros que rodeiam as leis e as regras; os tubarões ficam impunes ou recebem
punições simbólicas e/ou mascarantes de outrem; os medíocres alcançam lugares de
relevo; e os dissidentes chutam para fora, ora com êxito, ora com sucesso
efémero.
Deixando de parte os casos daqueles para quem a
Justiça se torna benigna e carinhosa, fixemo-nos medíocres e dissidentes,
evocando alguns casos, meramente a título de exemplo.
Quem não se lembra daquele que, vendo o país de tanga,
a passou a ferro e partiu para a Europa, do que falhou rotundamente a regulação
e supervisão bancária e ascendeu à vice-presidência do BCE ou do que arquitetou
um programa de austeridade e empobrecimento e, não sendo capaz de levar a bom
termo a segunda fase, que postulava o crescimento da economia, alcançou lugar
de relevo no FMI? Recentemente, Carlos Moedas, que teve responsabilidades em 'dossiês'
de coordenação política, como um dos principais representantes do Governo nas
negociações com a 'troika', passou a comissário
responsável pela pasta da Investigação, Ciência e Inovação. E, segundo as suas
palavras, “a Inovação e a Investigação são a chave para o crescimento que
queremos na Europa: um crescimento sustentável que promova a qualidade de vida
dos Europeus. Estas áreas “são
a chave para aumentarmos a produtividade e dinamismo das nossas empresas, para
competirmos pela excelência e não pelos baixos custos”. Vai, neste âmbito, gerir duas das maiores
direções-gerais da Comissão Europeia, a Direção-geral da Investigação e
Inovação e o “Joint Research Centre”, com cerca de 3.000 funcionários, mercê da
experiência do ex-governante no mundo empresarial e na gestão financeira.
Quanto a
dissidentes, quem não recorda a gesta transitória do PRD, que, por via do
desgaste dos partidos clássicos, chegou a atingir 18% dos votos em legislativas?
E recentemente Rui Tavares, por desentendimento com o BE, não criou um Partido
Livre, cuja expressão eleitoral foi minúscula, pelo que já se encontra em fase
de liquidação? Agora, Marinho e Pinto, que levou a um score relativamente elevado o MPT nas europeias e que estava em
vias de ser feito seu presidente, criará um novo partido… A ver vamos: é certo
que os partidos estão desacreditados, o povo desconfia dos políticos. Mas, não estaremos
ante a tentação da “vã cobiça”?
E os dissidentes,
sob a capa de independentes, têm feito geralmente boa carreira nas eleições
autárquicas. É aliciante, em nome do serviço às populações, ganhar mais uns
trunfos económicos e sociais, bem o sabemos!
Em tempo de horizontes
bloqueados pela grande incerteza e pelo agravar de dificuldades, cresce, a par
das desigualdades, o desejo de Justiça, gerando entre as gentes, se não
revolta, a perplexidade. Deus adiuvet!
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