A
asserção é do Primeiro-Ministro Passos Coelho a propósito da informação
disponibilizada (ou não) ao Presidente da República sobre o caso BES/GES. Eu
pensava que ele teria dito “funções”. No entanto, ao verificar a “Página Global”,
do Jornal I on line, li a palavra
“poderes”, o que se me afigura mais esquisito.
Sem
me armar em politólogo, parece-me, no mínimo, superficial afirmar com todo o à
vontade que o Presidente não tenha poderes executivos e mesmo funções
executivas, a menos que se confundam poderes e funções com competências
operacionais.
E
tudo depende da noção que se formule de poder e de função. Ninguém, por
exemplo, concebe que o diretor de uma orquestra (o maestro ou a maestrina), só
porque não tange qualquer instrumento, não tenha funções executivas, já que,
embora não seja um executante, ele influencia a postura e o desempenho da
orquestra. O seu primeiro executante (se quisermos, por analogia, o seu
primeiro-ministro) será o contramestre ou o primeiro violino. Também ninguém
dirá que o Presidente da Direção de uma associação humanitária de bombeiros,
porque não detém o comando operacional do seu corpo ativo, não tenha pode
executivo.
***
É
certo que o tipo de poderes que a Constituição da República (CRP) consigna ao Presidente da República não se
enclausura literalmente na clássica tripartição dos poderes (executivo,
legislativo e judicial). Aproxima-se mais da ideia do poder moderador inaugurado
em Portugal pelo rei Dom Pedro IV, plasmado na Carta Constitucional. Hoje
consubstancia-se sobretudo nas funções de controlo ou negativas, como o veto
político, por exemplo. Não obstante, o Chefe de Estado dispõe também, para além
destas funções, de verdadeiras competências de direção política, nomeadamente
em casos de grave crise política, em tempos de estado de exceção ou em matérias
de defesa e relações internacionais.
E, quando
o Presidente promulga para valer como lei um decreto da Assembleia da República
ou um decreto-lei do Governo, um decreto regulamentar ou um decreto simples do
Governo, não está a exercer poder executivo, acabando por sancionar decisões de
outros órgãos de soberania? E, quando veta um diploma da Assembleia da
República ou do Governo, não está no exercício de poder executivo rejeitando
politicamente uma decisão de outro órgão de soberania (art.º 136.º)? Mais: enquanto, no caso de diploma parlamentar, o
seu poder de veto é relativo, tem um valor provisório, já que o Parlamento o
pode confirmar por maioria absoluta ou qualificada, conforme as matérias, no
caso de um diploma governamental, o poder de veto é absoluto, já que o Governo
não o pode submeter de novo a promulgação, a não ser que o reelabore segundo as
indicações do Presidente. Há aqui um verdadeiro poder de influência, mesmo em
termos de conteúdo, em decisões do Governo, o executivo por excelência.
***
Sendo assim,
não será descaído atentar nas atribuições do Presidente da República, nos
termos constitucionais.
Como
Chefe do Estado, “representa a República Portuguesa, garante a
independência nacional, a unidade do Estado e o regular funcionamento das
instituições democráticas e é,
por inerência, o Comandante Supremo das Forças Armadas (art.º 120.º).
Enquanto
garante do regular funcionamento das instituições democráticas tem como suma
incumbência a de, nos termos do juramento que presta no ato de posse, “defender,
cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa” (art.º 127.º/3).
A
legitimidade que democraticamente lhe confere a eleição direta pelos portugueses
é a base da justificação e da explicação dos poderes formais e informais que a
Constituição, explícita ou implicitamente lhe reconhece (cf art.º 121.º/1).
Em
relação com os outros órgãos de soberania, compete-lhe, no que diz respeito ao
Governo, nomear o Primeiro-Ministro, “ouvidos os partidos representados na
Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais” das eleições
legislativas. E, seguidamente, nomear, ou exonerar, os restantes membros do
Governo, “sob proposta do Primeiro-Ministro” (art.º 187.º), como o deve demitir, após a aprovação de moção de
censura ”. (cf art.º 195.º/1; art.º
194.º) ou refeição de moção de confiança ” (cf art.º 195.º/1; art.º 193.º) ou de programa de governo ” (cf art.º 195.º/1; art.º 192.º/4).
Trata-se de poderes verdadeiramente executivos.
Compete-lhe
ainda ouvir o Primeiro-Ministro no cumprimento do seu dever de informação
periódica ao Presidente, perante quem aquele é responsável (cf art.º 191.º/1) “acerca dos assuntos respeitantes à condução da política
interna e externa do país” (cf art.º
201.º/1 c). Pode
ainda o Presidente presidir ao Conselho de Ministros, quando o
Primeiro-Ministro lho solicitar (cf art.º 133.º, alínea i). Aqui,
não se trata somente de exercício de poder executivo, mas também funções
executivas. Porém, só pode demitir o Governo, ouvido o Conselho de Estado,
quando tal se torne necessário para assegurar o regular funcionamento das
instituições democráticas, o que significa que não o pode fazer simplesmente por
falta de confiança política (cf 195.º/2).
No plano
das relações com a Assembleia, o Presidente pode dirigir-lhe mensagens,
chamando-lhe assim a atenção para qualquer assunto que postule, a seu ver, uma
intervenção parlamentar (cf art.º 133.º,
alínea d). Pode convocá-la
extraordinariamente para que esta reúna a fim de se ocupar de assuntos
específicos, fora do seu período normal de funcionamento (art.º 133.º, alínea c). E pode dissolvê-la com respeito por certos limites
temporais e circunstanciais e ouvidos os partidos representados nela e o Conselho
de Estado –, marcando simultaneamente a data das novas eleições parlamentares (cf art.º 133, alínea e; art.º 172.º). A dissolução corresponde, assim, a uma solução para
uma crise ou um impasse governativo e/ou parlamentar. É um exercício de um
poder moderador ou de um poder executivo, não de decisão do órgão do poder
legislativo, mas contra o estado daquele órgão, que não produz maioria que
sustente o governo, que dele emana.
***
Uma das
atribuições mais significativas do Presidente da República no dia a dia da vida
do País é a fiscalização política da atividade dos outros órgãos de soberania e
exercer a sua magistratura de influência ou, como dizem alguns, usar o poder da
palavra.
Ora, se
ao Presidente não compete legislar, compete-lhe, no domínio dos atos próprios,
promulgar (isto é, assinar, dar força coerciva), e mandar publicar, as leis da
Assembleia da República e os decretos-lei ou decretos regulamentares do Governo
(cf art.º 136.º; art.º 134.º, alínea b). E a falta da promulgação determina a inexistência
jurídica dos atos (cf art.º 137.º). É a
componente executiva do processo legislativo ou da legística.
Apesar de
tudo e como já se deixou claro, o Presidente não é obrigado a promulgar (cf art.º 136.º), pelo que pode, em certos termos, ter uma verdadeira
influência indireta sobre o conteúdo dos diplomas, exceto nas leis de revisão
constitucional (cf art.º 286.º/3). Com efeito, recebido um diploma para promulgação, o
Presidente pode, em vez de o promulgar, fazer outras duas coisas: se tiver
dúvidas de constitucionalidade, pode, no prazo de 8 dias, suscitar ao TC-Tribunal
Constitucional (que tem, em regra, 25 dias para se pronunciar) a fiscalização
preventiva da constitucionalidade de alguma (s) das normas (exceto no caso de
decreto regulamentar, por ser fruto da competência administrativa do Governo,
órgão superior da administração Pública – vd art.º 182, in fine) – sendo certo que, se o TC vier a concluir pela
inconstitucionalidade, o Presidente estará impedido de promulgar o diploma e
terá de o devolver ao órgão que o aprovou. Ou pode – no prazo de 20 dias, no
caso de diplomas da Assembleia, ou de 40 dias, no caso de diplomas do Governo,
a contar, em ambos os casos, ou da receção do diploma na Presidência da
República, ou da publicação de decisão do TC que eventualmente se tenha
pronunciado, em fiscalização preventiva, pela não inconstitucionalidade – vetar
politicamente o diploma, devolvendo-o, sem o promulgar, ao órgão que o aprovou,
manifestando, assim, através de mensagem fundamentada, oposição política ao
conteúdo ou oportunidade desse diploma.
O veto é
absoluto, no caso de diplomas do Governo, mas é relativo, no caso de diplomas
da Assembleia da República. Isto é: o Governo é obrigado a acatar o veto,
tendo, assim, de abandonar o diploma ou de lhe introduzir alterações no sentido
proposto pelo Presidente, mas a Assembleia pode ultrapassar o veto – ficando o
Presidente obrigado a promulgar, no prazo de 8 dias se reaprovar o diploma, sem
alterações, com uma maioria reforçada: a maioria absoluta dos deputados, em
regra, ou, a maioria da 2/3 dos deputados, no caso de diplomas mais importantes
(leis orgânicas, outras leis eleitorais, diplomas que digam respeito às
relações externas e outros). Ou seja, nos diplomas estruturantes do sistema
político – leis orgânicas, que têm como objeto as seguintes matérias: eleições
dos titulares dos órgãos de soberania, dos órgãos das regiões autónomas ou do
poder local; referendos; organização, funcionamento e processo do TC;
organização da defesa nacional, definição dos deveres dela decorrentes e bases
gerais da organização, do funcionamento, do reequipamento e da disciplina das
Forças Armadas; estado de sítio e de emergência; aquisição, perda e reaquisição
da cidadania portuguesa; associações e partidos políticos; sistema de
informações da República e do segredo de Estado; finanças das regiões
autónomas; criação e regime das regiões administrativas – o veto presidencial
força necessariamente a existência de um consenso entre as principais forças
políticas representadas na Assembleia da República. Para algumas matérias já a
própria CRP exige, à partida, esse consenso, por reclamar a maioria de 2/3 para
a sua aprovação: entidade de regulação da comunicação social; limites à
renovação de mandatos dos titulares de cargos políticos; exercício do direito
de voto dos emigrantes nas eleições presidenciais; número de deputados da
Assembleia da República e definição dos círculos eleitorais; sistema e método
de eleição dos órgãos do poder local; restrições ao exercício de direitos por
militares, agentes militarizados e agentes dos serviços e forças de segurança;
definição, nos respetivos estatutos político-administrativos, das matérias que
integram o poder legislativo das regiões autónomas.
Ainda
relativamente aos diplomas normativos, o Presidente pode também, em qualquer
momento, pedir ao TC que declare a inconstitucionalidade, com força obrigatória
geral, de qualquer norma jurídica em vigor (fiscalização sucessiva abstrata) –
com a consequência da sua eliminação da ordem jurídica interna – ou
solicitar-lhe que a verificação da existência de inconstitucionalidade por
omissão (ou seja, do não cumprimento da CRP por omissão de medida legislativa
necessária para tornar exequível uma norma constitucional).
Cabe também
ao Presidente decidir da convocação dos referendos nacionais que a Assembleia
ou o Governo lhe proponham, no âmbito das respetivas competências (ou dos
referendos regionais que as assembleias legislativas regionais lhe apresentem).
No caso de pretender convocar o referendo, o Presidente terá obrigatoriamente
de requerer ao TC a fiscalização preventiva da sua constitucionalidade e
legalidade.
Como
Comandante Supremo das Forças Armadas, sem dispor de atribuições no domínio
operacional, o Presidente ocupa o primeiro lugar na hierarquia das Forças
Armadas e compete-lhe, assim, em matéria de defesa nacional: presidir ao
Conselho Superior de Defesa Nacional; nomear e exonerar, sob proposta do
Governo, o Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, e os Chefes de
Estado-Maior dos três ramos das Forças Armadas, ouvido, neste caso, o Chefe do
Estado-Maior General das Forças Armadas; assegurar a fidelidade das Forças
Armadas à Constituição e às instituições democráticas e exprimir publicamente,
em nome das Forças Armadas, essa fidelidade; aconselhar em privado o Governo
acerca da condução da política de defesa nacional, devendo ser por este
informado acerca da situação das Forças Armadas e dos seus elementos, e
consultar o Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas e os chefes de
Estado-Maior dos ramos; declarar a guerra em caso de agressão efetiva ou
iminente e fazer a paz, em ambos os casos, sob proposta do Governo, ouvido o
Conselho de Estado e mediante autorização da Assembleia da República; declarada
a guerra, assumir a sua direção superior em conjunto com o Governo e contribuir
para a manutenção do espírito de defesa e da prontidão das Forças Armadas para
o combate; declarar o estado de sítio ou o de emergência, ouvido o Governo e
sob autorização da Assembleia da República, nos casos de agressão efetiva ou
iminente por forças estrangeiras, de grave ameaça ou perturbação da ordem
constitucional democrática ou de calamidade pública. São funções executivas,
não?!
No âmbito
das relações internacionais e como representante máximo da República,
compete-lhe, além da declaração de guerra ou de paz: a nomeação, sob proposta
do Governo, dos embaixadores e enviados extraordinários e a acreditação dos
representantes diplomáticos estrangeiros; e a ratificação dos tratados internacionais
e a assinatura dos acordos internacionais, depois de aprovados pelos competentes
órgãos. Ou seja, cabe-lhe vincular internacionalmente Portugal aos tratados e
acordos internacionais que o Governo negoceie e a Assembleia ou o Governo
aprovem – só após a ratificação é que vigoram na ordem interna as normas das
convenções internacionais que Portugal tenha assinado (e também relativamente
aos tratados e acordos internacionais existe a possibilidade de o Presidente
requerer a fiscalização preventiva de constitucionalidade, como nos outros
diplomas já referidos).
Como
garante da unidade do Estado, o Presidente nomeia e exonera, ouvido o Governo,
os Representantes da República para as regiões autónomas; pode dissolver as assembleias
legislativas das regionais, ouvidos o Conselho de Estado e os partidos
representados nelas; pode dirigir mensagens às respetivas assembleias legislativas.
São também funções executivas, não?!
Compete
ainda ao Presidente, como Chefe do Estado, indultar e comutar penas, ouvido o
Governo; conferir condecorações e exercer a função de grão-mestre das ordens
honoríficas portuguesas; marcar, de harmonia com as leis eleitorais, o dia das
eleições para os órgãos de soberania, para o Parlamento Europeu e para as
Assembleias Legislativas das regiões autónomas; nomear e exonerar, sob proposta
do Governo, o presidente do Tribunal de Contas e o Procurador-Geral da
República; nomear dois vogais do Conselho Superior da Magistratura e cinco
membros do Conselho de Estado (que é o seu órgão político de consulta, e ao
qual também preside). São também funções executivas, não?!
Entretanto,
muito para lá disso, o Presidente faz um uso político particularmente intenso
dos atributos simbólicos do seu cargo e dos importantes poderes informais que
detém. Nos termos da CRP cabe-lhe, por exemplo, pronunciar-se “sobre todas as
emergências graves para a vida da República”, dirigir mensagens à Assembleia da
República sobre qualquer assunto, ou ser informado pelo Primeiro-Ministro “acerca
dos assuntos respeitantes à condução da política interna e externa do país”. E as
cerimónias a que preside, os discursos, as comunicações ao País, as deslocações
em Portugal e ao estrangeiro, as entrevistas, as audiências ou os contactos com
a população, tudo constitui oportunidades políticas de extraordinário alcance
para mobilizar o País e os cidadãos. É pena que empreendimentos simbólicos de
regime não constem da agenda inaugural da agenda do Presidente, mas da de membros
do Governo (vg: ponte de São João, no Porto-Gaia).
A qualificação
do Presidente como máximo “representante da República” e “garante da
independência nacional” fazem com que o Presidente, não exercendo funções
executivas operacionais, possa ter, mesmo assim, um papel político ativo e
conformador, que ele não pode autodiminuir ou permitir que alguém o diminua.
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