quinta-feira, 11 de setembro de 2014

O Presidente da República não tem poderes executivos (!)

A asserção é do Primeiro-Ministro Passos Coelho a propósito da informação disponibilizada (ou não) ao Presidente da República sobre o caso BES/GES. Eu pensava que ele teria dito “funções”. No entanto, ao verificar a “Página Global”, do Jornal I on line, li a palavra “poderes”, o que se me afigura mais esquisito.
Sem me armar em politólogo, parece-me, no mínimo, superficial afirmar com todo o à vontade que o Presidente não tenha poderes executivos e mesmo funções executivas, a menos que se confundam poderes e funções com competências operacionais.
E tudo depende da noção que se formule de poder e de função. Ninguém, por exemplo, concebe que o diretor de uma orquestra (o maestro ou a maestrina), só porque não tange qualquer instrumento, não tenha funções executivas, já que, embora não seja um executante, ele influencia a postura e o desempenho da orquestra. O seu primeiro executante (se quisermos, por analogia, o seu primeiro-ministro) será o contramestre ou o primeiro violino. Também ninguém dirá que o Presidente da Direção de uma associação humanitária de bombeiros, porque não detém o comando operacional do seu corpo ativo, não tenha pode executivo.
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É certo que o tipo de poderes que a Constituição da República (CRP) consigna ao Presidente da República não se enclausura literalmente na clássica tripartição dos poderes (executivo, legislativo e judicial). Aproxima-se mais da ideia do poder moderador inaugurado em Portugal pelo rei Dom Pedro IV, plasmado na Carta Constitucional. Hoje consubstancia-se sobretudo nas funções de controlo ou negativas, como o veto político, por exemplo. Não obstante, o Chefe de Estado dispõe também, para além destas funções, de verdadeiras competências de direção política, nomeadamente em casos de grave crise política, em tempos de estado de exceção ou em matérias de defesa e relações internacionais.
E, quando o Presidente promulga para valer como lei um decreto da Assembleia da República ou um decreto-lei do Governo, um decreto regulamentar ou um decreto simples do Governo, não está a exercer poder executivo, acabando por sancionar decisões de outros órgãos de soberania? E, quando veta um diploma da Assembleia da República ou do Governo, não está no exercício de poder executivo rejeitando politicamente uma decisão de outro órgão de soberania (art.º 136.º)? Mais: enquanto, no caso de diploma parlamentar, o seu poder de veto é relativo, tem um valor provisório, já que o Parlamento o pode confirmar por maioria absoluta ou qualificada, conforme as matérias, no caso de um diploma governamental, o poder de veto é absoluto, já que o Governo não o pode submeter de novo a promulgação, a não ser que o reelabore segundo as indicações do Presidente. Há aqui um verdadeiro poder de influência, mesmo em termos de conteúdo, em decisões do Governo, o executivo por excelência.
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Sendo assim, não será descaído atentar nas atribuições do Presidente da República, nos termos constitucionais.
Como Chefe do Estado, “representa a República Portuguesa, garante a independência nacional, a unidade do Estado e o regular funcionamento das instituições democráticas e é, por inerência, o Comandante Supremo das Forças Armadas (art.º 120.º).
Enquanto garante do regular funcionamento das instituições democráticas tem como suma incumbência a de, nos termos do juramento que presta no ato de posse, “defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa” (art.º 127.º/3).
A legitimidade que democraticamente lhe confere a eleição direta pelos portugueses é a base da justificação e da explicação dos poderes formais e informais que a Constituição, explícita ou implicitamente lhe reconhece (cf art.º 121.º/1).
Em relação com os outros órgãos de soberania, compete-lhe, no que diz respeito ao Governo, nomear o Primeiro-Ministro, “ouvidos os partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais” das eleições legislativas. E, seguidamente, nomear, ou exonerar, os restantes membros do Governo, “sob proposta do Primeiro-Ministro” (art.º 187.º), como o deve demitir, após a aprovação de moção de censura ”. (cf art.º 195.º/1; art.º 194.º) ou refeição de moção de confiança ” (cf art.º 195.º/1; art.º 193.º) ou de programa de governo ” (cf art.º 195.º/1; art.º 192.º/4). Trata-se de poderes verdadeiramente executivos.
Compete-lhe ainda ouvir o Primeiro-Ministro no cumprimento do seu dever de informação periódica ao Presidente, perante quem aquele é responsável (cf art.º 191.º/1) “acerca dos assuntos respeitantes à condução da política interna e externa do país” (cf art.º 201.º/1 c). Pode ainda o Presidente presidir ao Conselho de Ministros, quando o Primeiro-Ministro lho solicitar (cf art.º 133.º, alínea i). Aqui, não se trata somente de exercício de poder executivo, mas também funções executivas. Porém, só pode demitir o Governo, ouvido o Conselho de Estado, quando tal se torne necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas, o que significa que não o pode fazer simplesmente por falta de confiança política (cf 195.º/2).
No plano das relações com a Assembleia, o Presidente pode dirigir-lhe mensagens, chamando-lhe assim a atenção para qualquer assunto que postule, a seu ver, uma intervenção parlamentar (cf art.º 133.º, alínea d). Pode convocá-la extraordinariamente para que esta reúna a fim de se ocupar de assuntos específicos, fora do seu período normal de funcionamento (art.º 133.º, alínea c). E pode dissolvê-la com respeito por certos limites temporais e circunstanciais e ouvidos os partidos representados nela e o Conselho de Estado –, marcando simultaneamente a data das novas eleições parlamentares (cf art.º 133, alínea e; art.º 172.º). A dissolução corresponde, assim, a uma solução para uma crise ou um impasse governativo e/ou parlamentar. É um exercício de um poder moderador ou de um poder executivo, não de decisão do órgão do poder legislativo, mas contra o estado daquele órgão, que não produz maioria que sustente o governo, que dele emana.
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Uma das atribuições mais significativas do Presidente da República no dia a dia da vida do País é a fiscalização política da atividade dos outros órgãos de soberania e exercer a sua magistratura de influência ou, como dizem alguns, usar o poder da palavra.
Ora, se ao Presidente não compete legislar, compete-lhe, no domínio dos atos próprios, promulgar (isto é, assinar, dar força coerciva), e mandar publicar, as leis da Assembleia da República e os decretos-lei ou decretos regulamentares do Governo (cf art.º 136.º; art.º 134.º, alínea b). E a falta da promulgação determina a inexistência jurídica dos atos (cf art.º 137.º). É a componente executiva do processo legislativo ou da legística.
Apesar de tudo e como já se deixou claro, o Presidente não é obrigado a promulgar (cf art.º 136.º), pelo que pode, em certos termos, ter uma verdadeira influência indireta sobre o conteúdo dos diplomas, exceto nas leis de revisão constitucional (cf art.º 286.º/3). Com efeito, recebido um diploma para promulgação, o Presidente pode, em vez de o promulgar, fazer outras duas coisas: se tiver dúvidas de constitucionalidade, pode, no prazo de 8 dias, suscitar ao TC-Tribunal Constitucional (que tem, em regra, 25 dias para se pronunciar) a fiscalização preventiva da constitucionalidade de alguma (s) das normas (exceto no caso de decreto regulamentar, por ser fruto da competência administrativa do Governo, órgão superior da administração Pública – vd art.º 182, in fine) – sendo certo que, se o TC vier a concluir pela inconstitucionalidade, o Presidente estará impedido de promulgar o diploma e terá de o devolver ao órgão que o aprovou. Ou pode – no prazo de 20 dias, no caso de diplomas da Assembleia, ou de 40 dias, no caso de diplomas do Governo, a contar, em ambos os casos, ou da receção do diploma na Presidência da República, ou da publicação de decisão do TC que eventualmente se tenha pronunciado, em fiscalização preventiva, pela não inconstitucionalidade – vetar politicamente o diploma, devolvendo-o, sem o promulgar, ao órgão que o aprovou, manifestando, assim, através de mensagem fundamentada, oposição política ao conteúdo ou oportunidade desse diploma.
O veto é absoluto, no caso de diplomas do Governo, mas é relativo, no caso de diplomas da Assembleia da República. Isto é: o Governo é obrigado a acatar o veto, tendo, assim, de abandonar o diploma ou de lhe introduzir alterações no sentido proposto pelo Presidente, mas a Assembleia pode ultrapassar o veto – ficando o Presidente obrigado a promulgar, no prazo de 8 dias se reaprovar o diploma, sem alterações, com uma maioria reforçada: a maioria absoluta dos deputados, em regra, ou, a maioria da 2/3 dos deputados, no caso de diplomas mais importantes (leis orgânicas, outras leis eleitorais, diplomas que digam respeito às relações externas e outros). Ou seja, nos diplomas estruturantes do sistema político – leis orgânicas, que têm como objeto as seguintes matérias: eleições dos titulares dos órgãos de soberania, dos órgãos das regiões autónomas ou do poder local; referendos; organização, funcionamento e processo do TC; organização da defesa nacional, definição dos deveres dela decorrentes e bases gerais da organização, do funcionamento, do reequipamento e da disciplina das Forças Armadas; estado de sítio e de emergência; aquisição, perda e reaquisição da cidadania portuguesa; associações e partidos políticos; sistema de informações da República e do segredo de Estado; finanças das regiões autónomas; criação e regime das regiões administrativas – o veto presidencial força necessariamente a existência de um consenso entre as principais forças políticas representadas na Assembleia da República. Para algumas matérias já a própria CRP exige, à partida, esse consenso, por reclamar a maioria de 2/3 para a sua aprovação: entidade de regulação da comunicação social; limites à renovação de mandatos dos titulares de cargos políticos; exercício do direito de voto dos emigrantes nas eleições presidenciais; número de deputados da Assembleia da República e definição dos círculos eleitorais; sistema e método de eleição dos órgãos do poder local; restrições ao exercício de direitos por militares, agentes militarizados e agentes dos serviços e forças de segurança; definição, nos respetivos estatutos político-administrativos, das matérias que integram o poder legislativo das regiões autónomas.
Ainda relativamente aos diplomas normativos, o Presidente pode também, em qualquer momento, pedir ao TC que declare a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de qualquer norma jurídica em vigor (fiscalização sucessiva abstrata) – com a consequência da sua eliminação da ordem jurídica interna – ou solicitar-lhe que a verificação da existência de inconstitucionalidade por omissão (ou seja, do não cumprimento da CRP por omissão de medida legislativa necessária para tornar exequível uma norma constitucional).
Cabe também ao Presidente decidir da convocação dos referendos nacionais que a Assembleia ou o Governo lhe proponham, no âmbito das respetivas competências (ou dos referendos regionais que as assembleias legislativas regionais lhe apresentem). No caso de pretender convocar o referendo, o Presidente terá obrigatoriamente de requerer ao TC a fiscalização preventiva da sua constitucionalidade e legalidade.
Como Comandante Supremo das Forças Armadas, sem dispor de atribuições no domínio operacional, o Presidente ocupa o primeiro lugar na hierarquia das Forças Armadas e compete-lhe, assim, em matéria de defesa nacional: presidir ao Conselho Superior de Defesa Nacional; nomear e exonerar, sob proposta do Governo, o Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, e os Chefes de Estado-Maior dos três ramos das Forças Armadas, ouvido, neste caso, o Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas; assegurar a fidelidade das Forças Armadas à Constituição e às instituições democráticas e exprimir publicamente, em nome das Forças Armadas, essa fidelidade; aconselhar em privado o Governo acerca da condução da política de defesa nacional, devendo ser por este informado acerca da situação das Forças Armadas e dos seus elementos, e consultar o Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas e os chefes de Estado-Maior dos ramos; declarar a guerra em caso de agressão efetiva ou iminente e fazer a paz, em ambos os casos, sob proposta do Governo, ouvido o Conselho de Estado e mediante autorização da Assembleia da República; declarada a guerra, assumir a sua direção superior em conjunto com o Governo e contribuir para a manutenção do espírito de defesa e da prontidão das Forças Armadas para o combate; declarar o estado de sítio ou o de emergência, ouvido o Governo e sob autorização da Assembleia da República, nos casos de agressão efetiva ou iminente por forças estrangeiras, de grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática ou de calamidade pública. São funções executivas, não?!
No âmbito das relações internacionais e como representante máximo da República, compete-lhe, além da declaração de guerra ou de paz: a nomeação, sob proposta do Governo, dos embaixadores e enviados extraordinários e a acreditação dos representantes diplomáticos estrangeiros; e a ratificação dos tratados internacionais e a assinatura dos acordos internacionais, depois de aprovados pelos competentes órgãos. Ou seja, cabe-lhe vincular internacionalmente Portugal aos tratados e acordos internacionais que o Governo negoceie e a Assembleia ou o Governo aprovem – só após a ratificação é que vigoram na ordem interna as normas das convenções internacionais que Portugal tenha assinado (e também relativamente aos tratados e acordos internacionais existe a possibilidade de o Presidente requerer a fiscalização preventiva de constitucionalidade, como nos outros diplomas já referidos).
Como garante da unidade do Estado, o Presidente nomeia e exonera, ouvido o Governo, os Representantes da República para as regiões autónomas; pode dissolver as assembleias legislativas das regionais, ouvidos o Conselho de Estado e os partidos representados nelas; pode dirigir mensagens às respetivas assembleias legislativas. São também funções executivas, não?!
Compete ainda ao Presidente, como Chefe do Estado, indultar e comutar penas, ouvido o Governo; conferir condecorações e exercer a função de grão-mestre das ordens honoríficas portuguesas; marcar, de harmonia com as leis eleitorais, o dia das eleições para os órgãos de soberania, para o Parlamento Europeu e para as Assembleias Legislativas das regiões autónomas; nomear e exonerar, sob proposta do Governo, o presidente do Tribunal de Contas e o Procurador-Geral da República; nomear dois vogais do Conselho Superior da Magistratura e cinco membros do Conselho de Estado (que é o seu órgão político de consulta, e ao qual também preside). São também funções executivas, não?!
Entretanto, muito para lá disso, o Presidente faz um uso político particularmente intenso dos atributos simbólicos do seu cargo e dos importantes poderes informais que detém. Nos termos da CRP cabe-lhe, por exemplo, pronunciar-se “sobre todas as emergências graves para a vida da República”, dirigir mensagens à Assembleia da República sobre qualquer assunto, ou ser informado pelo Primeiro-Ministro “acerca dos assuntos respeitantes à condução da política interna e externa do país”. E as cerimónias a que preside, os discursos, as comunicações ao País, as deslocações em Portugal e ao estrangeiro, as entrevistas, as audiências ou os contactos com a população, tudo constitui oportunidades políticas de extraordinário alcance para mobilizar o País e os cidadãos. É pena que empreendimentos simbólicos de regime não constem da agenda inaugural da agenda do Presidente, mas da de membros do Governo (vg: ponte de São João, no Porto-Gaia).
A qualificação do Presidente como máximo “representante da República” e “garante da independência nacional” fazem com que o Presidente, não exercendo funções executivas operacionais, possa ter, mesmo assim, um papel político ativo e conformador, que ele não pode autodiminuir ou permitir que alguém o diminua.

(cf Funções do Presidente, in “site da Presidência da República” [em linha]. http://www.presidencia.pt/?idc=1, ac setembro de 2014)

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