quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Exclusão de herdeiros por indignidade sucessória

Segundo a Comunicação Social, um grupo de 11 deputados do Partido Socialista, liderado pela deputada Elza Pais, apresentou um projeto de lei que prevê que, no momento da condenação pelo crime de homicídio por violência doméstica, seja declarado, como efeito da pena, o impedimento de herdar. A sustentar e reforçar a importância do projeto de lei, os parlamentares do PS estribam-se no relatório anual da segurança interna referente a 2013, que regista um acréscimo de participações por violência doméstica às autoridades policiais, nomeadamente a violência doméstica contra o cônjuge. De acordo com predito relatório, houve, no ano de referência, mais 40 homicídios “conjugais / passionais” do que no ano anterior.
A deputada socialista Elza Pais entende que “o homicida tem de ficar inibido da herança” e explica que, no nosso ordenamento jurídico, quando da “sentença penal não é automaticamente promovida a indignidade sucessória”. E, questionando “como é que uma pessoa que mata outra pode ser a sua legítima herdeira” (o que julga manifestamente injusto), acredita que “os partidos de esquerda serão mais sensíveis do que os da maioria”, manifestando prudência sobre o sentido de voto do PSD e do CDS, dado que “todas as propostas apresentadas pelo PS no âmbito da igualdade de género têm sido inviabilizadas pela maioria. E, neste caso, aduz como exemplo a regulação provisória da parentalidade e pensão de alimentos, que manifestamente contribuem para a proteção das vítimas”.
Por sua vez, PSD e CDS já fizeram saber que irão apresentar iniciativas legislativas sobre a mesma matéria no dia 24 de setembro. Sabe-se também que o sentido de voto dos sociais-democratas ao projeto do PS poderá depender da forma como os socialistas votarem a iniciativa sobre a mesma matéria apresentada pelos partidos da coligação. Ao que a cabeça de lista dos autores do projeto socialista retruca, manifestando a disponibilidade do PS para receber contributos nesta matéria: “Vamos ver qual será o ovo de Colombo dos partidos da maioria”. Caso decidam inviabilizar o projeto de lei, afirma a ilustre parlamentar, “os partidos da maioria ficarão com o ónus social e cívico de terem chumbado esta proposta”.
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A isto diga-se que, dada a sensibilidade do assunto, já chegaram ao conhecimento dos deputados da comissão parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Direitos, Liberdades e Garantias (a 1.ª Comissão) dois pareceres contraditórios sobre o mesmo.
O Conselho Superior de Magistratura reconhece que “a proposta representa um corte com o sistema vigente”, que deixa de ficar refém do “impulso de interessados” na herança. No entanto, advoga que “a solução proposta parece ser razoável e merece concordância genérica”, dado que a ação civil (a matéria é do âmbito do código civil no quadro do direito de família, designadamente no atinente ao direito sucessório), que até agora tinha de ser interposta após sentença, “além do desdobramento de custos, implica demoras e acaba por fazer revisitar acontecimentos dolorosos e violentos, com um rebate emocional previsivelmente intenso”.
Por seu turno, a Ordem dos Advogados argumenta que o projeto de lei, ao introduzir “um efeito direto e automático” da condenação pelo crime de homicídio, viola a Constituição e não é admissível à luz dos princípios do Código Penal. Por isso, entende que “não é a solução legislativa adequada e constitucional à resolução do problema”. A Ordem não descarta o facto de que a moldura jurídica atual possa configurar uma “situação injusta”. Porém, lembra o teor do artigo 30.º da Constituição, embora parcelarmente.
Ora este artigo da CRP, no âmbito dos “direitos, liberdades e garantias pessoais”, estabelece os “limites das penas e das medidas de segurança”. Assim, o seu n.º 1 determina que “não pode haver penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com caráter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida”. E, embora o código Civil, no seu art.º 2038.º, preveja a possibilidade da reabilitação do indigno, à partida, a declaração da indignidade assume uma índole de perpetuidade. E a reabilitação do indigno não é possível quando o titular da herança ou o testador já não seja vivo:
1. O que tiver incorrido em indignidade, mesmo que esta já tenha sido judicialmente declarada, readquire a capacidade sucessória, se o autor da sucessão expressamente o reabilitar em testamento ou escritura pública.
2. Não havendo reabilitação expressa, mas sendo o indigno contemplado em testamento quando o testador já conhecia a causa da indignidade, pode ele suceder dentro dos limites da disposição testamentária.”.

Prevendo a periculosidade duradoura, o n.º 2 do art.º 30.º da CRP, estabelece que “em caso de perigosidade baseada em grave anomalia psíquica, e na impossibilidade de terapêutica em meio aberto, poderão as medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade ser prorrogadas sucessivamente enquanto tal estado se mantiver, mas sempre mediante decisão judicial”. Sendo assim, a alegação da inconstitucionalidade que a Ordem refere no seu parecer, não será incontornável, desde que se provoque uma decisão judicial explícita. Por outro lado, o mesmo artigo da CRP estabelece:
4. Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos.
5. Os condenados a quem sejam aplicadas pena ou medida de segurança privativas da liberdade mantêm a titularidade dos direitos fundamentais, salvas as limitações inerentes ao sentido da condenação e às exigências próprias da respetiva execução.

 É exatamente no n.º 4 que se apoia o parecer da Ordem dos Advogados, quando argumenta que a CRP impede efeitos penais automáticos. Por isso, o parecer assinado pela bastonária Elina Fraga propõe, em alternativa, como solução alterar a lei, mas, para conferir legitimidade ao Ministério Público para instaurar a ação de indignidade nos casos em que ninguém o faça. E assegura que esta será uma solução jurídica “mais simples e não menos eficaz”. E, penso eu, não ofende o princípio de demanda. Porém, é de ter em conta que o conceito de efeito necessário não coincide com o de efeito simultâneo.
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Segundo a nossa lei civil em vigor, é necessário que alguém, após a sentença penal transitada em julgado, demande a indignidade sucessória do condenado ou, por outros termos, a sua capacidade para herdar do cônjuge, descendente, ascendente, adotante ou adotado.
Já, em 2012, no Dia Internacional da Eliminação da Violência contra Mulheres, as Mulheres Socialistas (MS) defenderam uma alteração legislativa “urgente” que impeça o homicida de ser herdeiro da vítima e ainda receber uma pensão de sobrevivência da Segurança Social. E o então bastonário da Ordem dos Advogados, Marinho e Pinto, esclareceu que a exclusão de herdeiros por indignidade é uma forma de impedir que um cônjuge que mata o outro venha ser herdeiro da vítima e que não está expressamente prevista para os homicídios, “mas é uma forma de impedir que certos herdeiros recebam a herança, por não serem dignos dela”.
A exclusão por indignidade é uma pena civil aplicável ao sucessor legítimo ou legatário que tenha praticado atos de ingratidão. Deve ser declarada por sentença judicial, em ação ordinária, intentada por quem tenha interesse na sucessão, não podendo, segundo a lei vigente, ser decretada, de ofício, pelo juiz, em processo de arrolamento sumário, sob pena de ofensa ao princípio da demanda.
Mas a presidente das Mulheres Socialistas já então declarava que o facto de o homicida receber a herança da vítima “é perverso, quase imoral”. Por isso opinava que, quando a vítima não tem ninguém, o Ministério Público (MP) devia avançar com a ação para declaração de indignidade. “Só que a herança é processo civil e o crime um processo penal e falta articulação”, lamentava-se. Ora o importante era que os tribunais passassem a “ter de, obrigatoriamente, comunicar as sentenças” relacionadas com o homicídio de cônjuges ao MP, para que este pudesse ativar a figura legal que impede o direito do assassino à herança da vítima.
O problema prende-se com alguns artigos do Código Civil. Um deles (o art.º 2034.º) estipula a incapacidade sucessória, dizendo: a) carecem de capacidade sucessória, por motivo de indignidade, o condenado como autor ou cúmplice de homicídio doloso, mesmo não consumado, contra o autor da sucessão ou cônjuge, descendente, ascendente, adotante ou adotado; b) o condenado por denúncia caluniosa ou falso testemunho contra as mesmas pessoas, relativa a crime a que corresponda pena de prisão superior a 2 anos, qualquer que seja a sua natureza; c) o que por dolo ou coação induziu o autor da sucessão a fazer, revogar ou modificar o testamento, ou disso o impediu; e d) o que dolosamente subtraiu, ocultou, inutilizou, falsificou ou suprimiu o testamento, antes ou depois da morte do autor da sucessão, ou se aproveitou de algum desses factos.
Já o art.º 2035.º, referindo-se ao momento da condenação e do crime, estabelece que “a condenação a que se referem as alíneas a) e b) do artigo anterior pode ser posterior à abertura da sucessão, mas só o crime anterior releva para o efeito; e que, estando dependente de condição suspensiva a instituição de herdeiro ou a nomeação de legatário, é relevante o crime cometido até à verificação da condição. Por seu turno, o art.º 2036.º estabelece que a ação destinada a obter a declaração de indignidade pode ser intentada dentro do prazo de 2 anos após a abertura da sucessão, ou dentro de um ano a contar, quer da condenação pelos crimes que a determinam, quer do conhecimento das causas de indignidade. E, quanto aos efeitos da indignidade, o art.º 2037.º determina que, declarada a indignidade, a devolução da sucessão ao indigno é havida como inexistente, sendo ele considerado, para todos os efeitos, possuidor de má fé dos respetivos bens; e que, na sucessão legal, a capacidade do indigno não prejudica o direito de representação dos seus descendentes.
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Como se disse já, a inconstitucionalidade apontada não é absoluta, pelo que, a existir, pode ser colmatada respeitando o n.º 2 do art.º 30.º da CRP. Como o crime de homicídio e os de violência doméstica são públicos, o MP não precisará de constatar a não existência de queixa. Por outro lado, como muitas vezes o tribunal em sentença penal já decreta indemnizações, se o MP, no processo penal, já demandar a sentença de índole cível simultânea (que não necessária), penso não haver ofensa ao princípio de demanda.

E, sobretudo, há que impedir a situação abjeta de injustiça reinante.

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