Segundo a Comunicação Social, um
grupo de 11 deputados do Partido Socialista, liderado pela deputada Elza Pais,
apresentou um projeto de lei que prevê que, no momento da condenação pelo crime
de homicídio por violência doméstica, seja declarado, como efeito da pena, o
impedimento de herdar. A sustentar e reforçar a importância do projeto de lei,
os parlamentares do PS estribam-se no relatório anual da segurança interna
referente a 2013, que regista um acréscimo de participações por violência
doméstica às autoridades policiais, nomeadamente a violência doméstica contra o
cônjuge. De acordo com predito relatório, houve, no ano de referência, mais 40
homicídios “conjugais / passionais” do que no ano anterior.
A deputada socialista Elza Pais
entende que “o homicida tem de ficar inibido da herança” e explica que, no
nosso ordenamento jurídico, quando da “sentença penal não é automaticamente
promovida a indignidade sucessória”. E, questionando “como é que uma pessoa que
mata outra pode ser a sua legítima herdeira” (o que julga manifestamente
injusto), acredita que “os partidos de esquerda serão mais sensíveis do que os
da maioria”, manifestando prudência sobre o sentido de voto do PSD e do CDS,
dado que “todas as propostas apresentadas pelo PS no âmbito da igualdade de
género têm sido inviabilizadas pela maioria. E, neste caso, aduz como exemplo a
regulação provisória da parentalidade e pensão de alimentos, que manifestamente
contribuem para a proteção das vítimas”.
Por sua vez, PSD e CDS já fizeram
saber que irão apresentar iniciativas legislativas sobre a mesma matéria no dia
24 de setembro. Sabe-se também que o sentido de voto dos sociais-democratas ao
projeto do PS poderá depender da forma como os socialistas votarem a iniciativa
sobre a mesma matéria apresentada pelos partidos da coligação. Ao que a cabeça
de lista dos autores do projeto socialista retruca, manifestando a
disponibilidade do PS para receber contributos nesta matéria: “Vamos ver qual
será o ovo de Colombo dos partidos da maioria”. Caso decidam inviabilizar o projeto
de lei, afirma a ilustre parlamentar, “os partidos da maioria ficarão com o
ónus social e cívico de terem chumbado esta proposta”.
***
A isto diga-se que, dada a
sensibilidade do assunto, já chegaram ao conhecimento dos deputados da comissão
parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Direitos, Liberdades e
Garantias (a 1.ª Comissão) dois pareceres contraditórios sobre o mesmo.
O Conselho Superior de
Magistratura reconhece que “a proposta representa um corte com o sistema
vigente”, que deixa de ficar refém do “impulso de interessados” na herança. No
entanto, advoga que “a solução proposta parece ser razoável e merece
concordância genérica”, dado que a ação civil (a matéria é do âmbito do código
civil no quadro do direito de família, designadamente no atinente ao direito
sucessório), que até agora tinha de ser interposta após sentença, “além do
desdobramento de custos, implica demoras e acaba por fazer revisitar
acontecimentos dolorosos e violentos, com um rebate emocional previsivelmente
intenso”.
Por seu turno, a Ordem dos
Advogados argumenta que o projeto de lei, ao introduzir “um efeito direto e
automático” da condenação pelo crime de homicídio, viola a Constituição e não é
admissível à luz dos princípios do Código Penal. Por isso, entende que “não é a
solução legislativa adequada e constitucional à resolução do problema”. A Ordem
não descarta o facto de que a moldura jurídica atual possa configurar uma
“situação injusta”. Porém, lembra o teor do artigo 30.º da Constituição, embora
parcelarmente.
Ora este artigo da CRP, no âmbito
dos “direitos, liberdades e garantias
pessoais”, estabelece os “limites
das penas e das medidas de segurança”. Assim, o seu n.º 1 determina que
“não pode haver penas nem medidas de segurança privativas ou
restritivas da liberdade com caráter perpétuo ou de duração ilimitada ou
indefinida”. E, embora o código Civil, no seu art.º 2038.º, preveja a possibilidade
da reabilitação do indigno, à partida, a declaração da indignidade assume uma
índole de perpetuidade. E a reabilitação do indigno não é possível quando o
titular da herança ou o testador já não seja vivo:
“1. O que tiver incorrido em indignidade, mesmo que esta já tenha sido
judicialmente declarada, readquire a capacidade sucessória, se o autor da
sucessão expressamente o reabilitar em testamento ou escritura pública.
2. Não havendo
reabilitação expressa, mas sendo o indigno contemplado em testamento quando o
testador já conhecia a causa da indignidade, pode ele suceder dentro dos
limites da disposição testamentária.”.
Prevendo a periculosidade
duradoura, o n.º 2 do art.º 30.º da CRP, estabelece que “em caso de
perigosidade baseada em grave anomalia psíquica, e na impossibilidade de
terapêutica em meio aberto, poderão as medidas de segurança privativas ou
restritivas da liberdade ser prorrogadas sucessivamente enquanto tal estado se
mantiver, mas sempre mediante decisão judicial”. Sendo assim, a alegação da
inconstitucionalidade que a Ordem refere no seu parecer, não será
incontornável, desde que se provoque uma decisão judicial explícita. Por outro
lado, o mesmo artigo da CRP estabelece:
4. Nenhuma pena envolve como efeito
necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos.
5. Os condenados a quem sejam aplicadas
pena ou medida de segurança privativas da liberdade mantêm a titularidade dos
direitos fundamentais, salvas as limitações inerentes ao sentido da condenação
e às exigências próprias da respetiva execução.
É exatamente no n.º 4 que se
apoia o parecer da Ordem dos Advogados, quando argumenta que a CRP impede
efeitos penais automáticos. Por isso, o parecer assinado pela bastonária Elina
Fraga propõe, em alternativa, como solução alterar a lei, mas, para conferir
legitimidade ao Ministério Público para instaurar a ação de indignidade nos
casos em que ninguém o faça. E assegura que esta será uma solução jurídica
“mais simples e não menos eficaz”. E, penso eu, não ofende o princípio de
demanda. Porém, é de ter em conta que o conceito de efeito necessário não
coincide com o de efeito simultâneo.
***
Segundo a nossa lei civil em
vigor, é necessário que alguém, após a sentença penal transitada em julgado,
demande a indignidade sucessória do condenado ou, por outros termos, a sua capacidade
para herdar do cônjuge, descendente, ascendente, adotante ou adotado.
Já, em 2012, no Dia Internacional
da Eliminação da Violência contra Mulheres, as Mulheres Socialistas (MS) defenderam
uma alteração legislativa “urgente” que impeça o homicida de ser herdeiro da
vítima e ainda receber uma pensão de sobrevivência da Segurança Social. E o
então bastonário da Ordem dos Advogados, Marinho e Pinto, esclareceu que a
exclusão de herdeiros por indignidade é uma forma de impedir que um cônjuge que
mata o outro venha ser herdeiro da vítima e que não está expressamente prevista
para os homicídios, “mas é uma forma de impedir que certos herdeiros recebam a
herança, por não serem dignos dela”.
A exclusão por indignidade é uma
pena civil aplicável ao sucessor legítimo ou legatário que tenha praticado atos
de ingratidão. Deve ser declarada por sentença judicial, em ação ordinária,
intentada por quem tenha interesse na sucessão, não podendo, segundo a lei vigente,
ser decretada, de ofício, pelo juiz, em processo de arrolamento sumário, sob
pena de ofensa ao princípio da demanda.
Mas a presidente das Mulheres Socialistas
já então declarava que o facto de o homicida receber a herança da vítima “é
perverso, quase imoral”. Por isso opinava que, quando a vítima não tem ninguém,
o Ministério Público (MP) devia avançar com a ação para declaração de
indignidade. “Só que a herança é processo civil e o crime um processo penal e
falta articulação”, lamentava-se. Ora o importante era que os tribunais passassem
a “ter de, obrigatoriamente, comunicar as sentenças” relacionadas com o
homicídio de cônjuges ao MP, para que este pudesse ativar a figura legal que
impede o direito do assassino à herança da vítima.
O problema prende-se com alguns
artigos do Código Civil. Um deles (o art.º 2034.º)
estipula a incapacidade sucessória, dizendo: a) carecem de capacidade
sucessória, por motivo de indignidade, o condenado como autor ou cúmplice de
homicídio doloso, mesmo não consumado, contra o autor da sucessão ou cônjuge,
descendente, ascendente, adotante ou adotado; b) o condenado por denúncia caluniosa ou falso
testemunho contra as mesmas pessoas, relativa a crime a que corresponda pena de
prisão superior a 2 anos, qualquer que seja a sua natureza; c) o que por dolo ou coação induziu o autor da
sucessão a fazer, revogar ou modificar o testamento, ou disso o impediu; e d) o que dolosamente subtraiu, ocultou,
inutilizou, falsificou ou suprimiu o testamento, antes ou depois da morte do
autor da sucessão, ou se aproveitou de algum desses factos.
Já o art.º 2035.º, referindo-se ao momento
da condenação e do crime, estabelece que “a condenação a que se referem
as alíneas a) e b) do artigo anterior pode ser posterior à abertura da
sucessão, mas só o crime anterior releva para o efeito; e que, estando
dependente de condição suspensiva a instituição de herdeiro ou a nomeação de
legatário, é relevante o crime cometido até à verificação da condição. Por seu
turno, o art.º 2036.º estabelece
que a ação destinada a obter a declaração de indignidade pode ser intentada
dentro do prazo de 2 anos após a abertura da sucessão, ou dentro de um ano a
contar, quer da condenação pelos crimes que a determinam, quer do conhecimento
das causas de indignidade. E, quanto aos efeitos da indignidade, o art.º 2037.º determina que, declarada a
indignidade, a devolução da sucessão ao indigno é havida como inexistente,
sendo ele considerado, para todos os efeitos, possuidor de má fé dos respetivos
bens; e que, na sucessão legal, a capacidade do indigno não prejudica o direito
de representação dos seus descendentes.
***
Como se disse já, a inconstitucionalidade apontada não
é absoluta, pelo que, a existir, pode ser colmatada respeitando o n.º 2 do art.º
30.º da CRP. Como o crime de homicídio e os de violência doméstica são públicos,
o MP não precisará de constatar a não existência de queixa. Por outro lado,
como muitas vezes o tribunal em sentença penal já decreta indemnizações, se o
MP, no processo penal, já demandar a sentença de índole cível simultânea (que
não necessária), penso não haver ofensa ao princípio de demanda.
E, sobretudo, há que impedir a situação abjeta de
injustiça reinante.
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