Pouco apreciado por alguns, que o
veem exclusivamente ligado ao Concílio de Trento, à Contrarreforma e ao caso
Galileu, importa recordá-lo como humanista e reformador, não contra a Igreja ou
fora dela, mas bem por dentro, sentindo-lhe as dificuldades, as contradições
epocais e as verdadeiras pulsações. Viajou, rezou, ensinou, aconselhou e
escreveu como poucos.
Roberto Francesco Romolo
Bellarmino, nome italiano de São Roberto Belarmino, foi um jesuíta italiano
e cardeal da Santa Igreja Romana. Foi efetivamente uma das mais importantes
figuras da Contrarreforma, que, por suas obras e intensa piedade, foi
canonizado em 1930, por Pio XI e, no ano seguinte, proclamado Doutor da igreja
Universal pelo mesmo Sumo Pontífice.
Os seus
restos, ainda com o traje purpúreo dos cardeais, estão em exposição protegidos
por um vidro num altar lateral da Igreja de Santo Inácio de Loyola, a capela do
Colégio Romano, perto do corpo do seu aluno, São Luís Gonzaga, como ele
mesmo pediu. No Calendário dos Santos da Igreja Católica, comemora-se São Roberto
Belarmino a 17 de setembro, o dia de sua morte.
*** A
vida e atividade de Belarmino
Filho dos
nobres empobrecidos Vincenzo Bellarmino e Cinzia Cervini, que era irmã do Papa
Marcelo II (que governou a
Igreja durante apenas 22 dias, em abril de 1555), nasceu
no ano de 1542, a 4 de outubro, em Montepulciano, na Toscana. Ainda menino,
conhecia Vergílio de cor e compôs diversos poemas em latim e italiano. Um
de seus hinos sobre Maria Madalena era parte do Breviário Romano.
Entrou na
Companhia de Jesus em Roma, tornando-se noviço em 1560, o que o obrigou a
permanecer na Cidade por três anos. Logo em seguida, seguiu para o convento
jesuíta de Mondovi, no Piemonte, onde estudou grego. Lá, ele chamou a
atenção do superior provincial jesuíta local Francisco Adorno, que o enviou
para a Universidade de Pádua. Foi aí que, entre 1567 e 1568, iniciou o seu
sistemático estudo de Teologia sob supervisão dos seus professores,
que eram apaniguados do tomismo. Em 1569, foi enviado para
a Universidade de Leuven (Lovaina), na Flandres, para terminar os estudos.
Aí foi ordenado sacerdote e ganhou reputação como professor e
pregador, tendo sido o primeiro jesuíta a ensinar naquela universidade. O
objeto de seu ensino era fundamentalmente a matéria da Suma Teológica, de Tomás de Aquino.
Belarmino
ficou em Leuven durante sete anos e, em 1576, com a saúde debilitada,
viajou para a Itália onde permaneceu na Cidade Eterna encarregado pelo Papa
Gregório XIII de ensinar Teologia Apologética no novo Colégio
Romano, mais tarde e atualmente conhecido como Pontifícia Universidade Gregoriana,
onde se ocupou como professor até 1589.
Nesse ano, após o assassinato de Henrique III, de
França, acompanhou como teólogo designado para o efeito a Enrico Caetani, que o
Papa Sisto V enviou a Paris como legado para negociar com a
Liga Católica de França. Durante a sua permanência na capital francesa ocorreu
o cerco de Henrique de Navarra.
Clemente VIII, o papa seguinte, dada a confiança que
depositava em Belarmino, nomeou-o reitor do Colégio Romano em 1592,
examinador de bispos em 1598 e cardeal no ano seguinte. E, mais tarde,
fê-lo cardeal-inquisidor, função em que Belarmino serviu como um dos
juízes de Giordano Bruno, concordando com a decisão de queimá-lo como herege na
estaca.
Nomeado, em 1602, arcebispo de Cápua, ele, que antes escrevera
contra o pluralismo e a favor da não obrigação de residência dos bispos nas
suas dioceses, como bispo, colocou em prática todos os decretos reformistas do
Concílio de Trento, sempre perto dos sacerdotes e dos pobres.
Revestido
de enorme sentido de simplicidade e naturalidade, entregava-se a todas as
ocupações de que era encarregado como se cada uma delas fosse da sua
especialidade. Como cardeal, foi consultor das principais Congregações e de
outros dicastérios da Cúria Romana, ajudando-os na resolução de muitos
problemas.
Já idoso, Belarmino foi nomeado bispo de
Montepulciano por quatro anos, após o que, por dispensa do Papa Gregório
XV, se aposentou no Colégio Jesuíta de Santo André, em Roma, onde faleceu em 17
de setembro de 1621, aos setenta e oito anos.
***
Por ordem de Paulo V, Belarmino convocou Galileu
Galilei, em 1616, notificando-o sobre um vindouro decreto da Congregação do Index, que formulava a condenação da
doutrina de Nicolau Copérnico segundo a qual que a Terra se
movia e o Sol era imóvel, pelo que lhe ordenava que a esquecesse.
Os arquivos do Vaticano guardam uma cópia, não assinada, de injunção formal
mais dura, que teria sido entregue a Galileu logo após a admoestação de
Belarmino, obrigando-o a “não
manter, ensinar ou defender” a doutrina condenada “de
forma nenhuma, seja oralmente ou por escrito” e ameaçando-o com a prisão se ele se recusasse a
obedecer. Porém, é tema de muitos debates académicos se esta injunção foi em
algum momento entregue a Galileu. O certo é que Galileu obedeceu, muito embora,
ao virar costas, tenha clamado: “Terra
tamen movetur”.
Porém, quando Galileu reclamou sobre rumores de que
teria sido forçado a abjurar e a penitenciar-se, o cardeal Belarmino escreveu
um certificado negando-os e afirmando que Galileu fora apenas notificado do
decreto e informado de que, por conta dele, a doutrina coperniciana não poderia
ser “defendida ou mantida”,
pois, segundo ele, a sua demonstração jamais poderia ser dada como comprovada
por contradizer o consenso unânime da exegese bíblica dos Padres da
Igreja, que o Concílio Tridentino tinha sancionado.
Também,
em termos semelhantes, o cardeal Belarmino escreveu a outro heliocentrista Paolo
Antonio Foscarini:
O concílio [de
Trento] proíbe interpretar as escrituras contra o consenso unânime
dos Santos Padres; e, se Sua Paternidade se incomodar em ler não apenas os
Santos Padres, mas também comentários modernos sobre o Génesis,
os Salmos, Eclesiastes e Josué, verá que todos concordam
com a interpretação literal que o sol está no céu e gira à volta da terra em
grande velocidade e que a terra está muito distante do céu e está imóvel no
centro do mundo. (…). Eu diria que, se existisse uma verdadeira demonstração de
que o sol está no centro do mundo e que a terra está no terceiro céu e que o
sol não circunda a terra, mas é a terra que circunda o sol, então teríamos que
proceder com grande cuidado ao explicar as Escrituras que parecem dizer o
contrário afirmando ao invés disso que nós não as entendemos e não que o que
elas demonstram é falso. Mas eu não acreditarei que existe uma demonstração
assim até que uma me seja apresentada. E nem é o mesmo demonstrar que ao
assumir que o sol está no centro e a terra no céu que alguém pode, salvando
as aparências, demonstrar que de facto o sol está no centro e a terra, no céu;
pois eu acredito que a primeira demonstração pode estar disponível, mas tenho
grandes dúvidas sobre a segunda e, em caso de dúvida, ninguém deve abandonar as
Escrituras como interpretadas pelos Santos Padres.
— Roberto
Belarmino, Carta a Foscarini
Em 1633,
quase doze anos depois da morte de Belarmino, Galileu foi novamente convocado
perante a Inquisição sobre o mesmo tema.
No
entanto, o físico moderno Pierre Duhem sugere que, pelo menos num aspeto, Belarmino se mostrou um cientista
melhor que Galileu ao desprezar a possibilidade de uma 'prova estrita do
movimento da terra' ao afirmar que uma teria económica apenas 'salva as
aparências' sem necessariamente revelar o que 'de facto acontece'.
*** A
obra escrita
Em
relação à prolífera obra escrita, importa desde já verificar que os seus livros
trazem a marca epocal: os esforços em busca da elegância literária, a “maraviglia”, aliam-se à
ambição de juntar tanto material quanto possível, de abraçar todo o possível
campo do conhecimento humano e de o incorporar na Teologia. Fazem lembrar o “de omni re scibili”, do humanista italiano Pico de Mirândola (1463-1494). As
controversas obras de Belarmino provocaram
muitas respostas e foram estudadas por décadas, após a sua morte. Em Leuven,
estudara profundamente os Padres da Igreja e os teólogos escolásticos, o que lhe
forneceu extenso material para o livro “De scriptoribus ecclesiasticis” (Roma, 1613).
De suas pesquisas nasceu a grande e valiosa obra “Disputationes de controversiis
christianae fidei” (abreviadamente designada por
Disputationes), que foi uma das primeiras tentativas de sistematizar as
várias controvérsias religiosas da época. Belarmino dedicou-lhe onze anos
da sua vida enquanto lecionava no Colégio Romano. O primeiro volume trata
da Palavra de Deus; de Cristo, Cabeça do Corpo da Igreja; e
do Papa, Sumo Pontífice; o segundo, da autoridade dos concílios
ecuménicos e da Igreja, seja militante (a da Terra), seja expectante (a do
Purgatório) ou triunfante (a do Paraíso); o terceiro, dos sacramentos; e o
quarto, da graça divina, do livre arbítrio (a liberdade moral), da
justificação e das boas obras.
Todavia, o insigne professor
e mestre teve de intervir em dois casos muito polémicos e, em relação a eles,
escrever. Um deles foi a “Interdição
de Veneza” de 1606 e 1607 – expressão, em termos do direito canónico e
realizada por interdito papal de Paulo V (pontífice entre os anos 1605 e 1621),
da disputa diplomática e do confronto entre a Cúria Romana e a República
de Veneza, que se deu entre 1605 e 1607 (foi o último exemplo de interdito
papal aplicado a uma região de grande extensão territorial). Enquanto esteve em
vigor, o interdito promoveu a expulsão de ordens religiosas de Veneza, uma
copiosa guerra panfletária e intensos esforços diplomáticos entre a França
e a Espanha para resolver a situação. Durante o conflito, o porta-voz de
Veneza, Paolo Sarpi, protestou contra o interdito e reafirmou os princípios dos concílios
de Constança e de Basileia, negando ao Papa qualquer autoridade nos assuntos
seculares. Belarmino escreveu três réplicas aos teólogos venezianos. O outro caso foi o da controvérsia do
juramento de fidelidade do rei James I, de Inglaterra, e a autoridade papal. Do ponto de
vista dos princípios para os católicos ingleses, este debate atraiu a atenção
de diversas personalidades da Europa do Ocidente e acabou por dar relevo
destaque aos dois protagonistas, o rei James, como campeão do seu próprio
protestantismo calvinista, e Belarmino, pelo seu catolicismo tridentino.
Já
aposentado, Belarmino escreveu diversas obras curtas que tinham por objetivos
ajudar pessoas comuns em sua vida espiritual. São a sobras devocionais “De ascensione mentis in Deum per scalas
rerum creatorum opusculum” (A
Ascensão da Mente a Deus, 1614), traduzida para o inglês como “Jacob's
Ladder” (Escada de Jacob”, 1638) por Henry
Isaacson, que não deu créditos ao autor; “A
Arte de Morrer Bem” (1619); e “As
Sete Palavras na Cruz”.
A lista
completa dos escritos de Belarmino pode ser encontrada na biblioteca da
Companhia de Jesus de Sommervogel. São as seguintes as mais importantes:
Escritos polémicos: Disputationes de controversiis christianae fidei
adversus hujus temporis hereticos; De exemptione clericorum, e De
indulgentiis et jubilaeo, publicada como monografia em 1599, mas
sucessivamente incorporada no De controversiis;
De transitu Romani Imperii a graecis ad
francos (1584); Judicium de libro
quem lutherani vocant concordiae (1585); Responsio ad praecipua capita apologiae [...] pro successione
Henrici Navarreni (1586); Responsio
Matthaei Torti ad librum inscriptum triplici nodo triplex cuneus (1608); Apologia Bellarmini pro responsione sub ad
librum Jacobi Magnae Britanniae Regis (1609); Tractatus de potestate Summi Pontificis in rebus temporalibus, adversus
Gulielmum Barclay (1610).
Obras de catequese e de espiritualidade: Dottrina
cristiana breve e Dichiarazione più copiosa della dottrina Cristiana (1598); Dichiarazione
del símbolo (1604), para uso dos sacerdotes; Admonitio ad Episcopum Theanensem nepotem suum quae sint necessaria episcopo
(1612); Exhortationes domesticae; Conciones habitae Lovanii; De ascensione mentis in Deum (1615); De aeterna felicitate sanctorum (1616); De gemitu columbae (1617); De septem verbis Christi (1618); De arte bene moriendi (1620); De scriptoribus ecclesiasticis (1615).
De exegese e outros: De editione
latinae Vulgatae, quo sensu a Concilio Tridentino definitum sit ut ea pro
authenticae habeatur; In omnes Psalmos dilucida expositio (1611).
A edição
completa da obra de Belarmino foi publicada em Colónia (1617),Veneza (1721), Nápoles
(1856) e Paris (1870).
*** Uma apreciação
Para lá
do que já foi dito sobre a sua personalidade e obra, convém referir que Belarmino
se deixou absorver pelo amor a Deus e ao próximo. No entanto, isso não o
impediu de encarar com realismo os perigos que o momento trazia à Igreja e ao
mundo. E a obra escrita responde um pouco a tudo.
Vemo-lo
envolvido nas questões hoje mais censuradas, como as referentes ao
heliocentrismo e ao movimento de translação da Terra em relação ao Sol. Só que
nos esquecemos de que o espírito científico renascentista, tal como o
positivismo científico do século XIX, se sentia como a última palavra e afrontava
o enunciado bíblico. Ninguém teve a lucidez de declarar que a linguagem bíblica,
de escopo religioso, se apoiava na mentalidade popular vigente ao tempo das grandes
escritas hagiográficas (ainda não se tinha experimentado o movimento aparente das
árvores, casas, postes e muros, contrário ao da marcha veloz do comboio ou do
automóvel). Todavia, Belarmino solicitava que não ensinassem as novas teorias
por ainda não estarem demonstradas e por contrariarem a interpretação bíblica
dos Santos Padres e do concílio tridentino. Mas Belarmino admitia estarmos a
interpretar mal a Bíblia e não exigia a demonstração escrita das novas teorias.
Por outro lado, a sua dedicação ao Papa e a sua defesa até às últimas
consequências não o levou ao servilismo nem à adulação, e colocou a verdade, ao
menos como a conhecia em virtude da investigação a que procedia, acima de tudo.
Assim, esclarecia que o Papa não era Senhor da Igreja, mas seu Administrador e
que o seu poder sobre os Estados não era um poder direto, como defendiam alguns,
mas um poder indireto, bem como denunciava a índole abusiva de algumas práticas
pontifícias. E corrigiu com elegância a 1.ª edição da Bíblia Vulgata latina,
feita por ordem de Sisto V, na sequência da opção tridentina, a que tinham sido
introduzidas alterações desnecessárias.
Encarnou os
problemas da Igreja, mitigou as canseiras do Pontificado, esteve próximo de todos.
Pelo seu espírito lutador e presente em tudo, bem pode se o arcanjo S. Miguel
de carne e osso.
Referências: http://www.arautos.org/especial/19686/Sao-Roberto-Belarmino--Um-jesuita-vestido-de-purpura.html,
ac setembro de 2014; http://pt.wikipedia.org/wiki/Roberto_Belarmino,
ac setembro de 2014; Leite, J.; Coelho, A. (2005).
Santos de Todos os Dias. Vol. de setembro. Matosinhos: Quid novi; Sacra
Congregatio pro Cultu Divino (1989). Liturgia das Horas, IV. Coimbra: Gráfica
de Coimbra.
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