terça-feira, 2 de setembro de 2014

Anticolonialismo ou anti-história

Tem a Comunicação Social dado algum relevo à atitude do ilustre vereador da Cultura do Município de Lisboa, Dr José Sá Fernandes, de se recusar publicamente a preservar o jardim da Praça do Império situada em frente ao Mosteiro dos Jerónimos, pelo facto de ela asilar os brasões que alegadamente são vestígios, ora envergonhados, do colonialismo português.
A ser verdade e em nome da coerência, o edil teria de promover a demolição (ou, ao menos, permitir a degradação) de outros testemunhos monumentais, como o Mosteiro que emoldura a praça, a Torre de Belém e o monumento aos descobridores – tudo a documentar monumentalmente a gesta expansionista dos portugueses, obviamente extraeuropeia, colonizadora, missionária, antiesmaelita e dominadora. Deveria outrossim, embora no respeito das autonomias dos outros municípios, solicitar aos vereadores de pelouro homólogo, em todo o país, o empenhamento na mesma cruzada, obnubilando também a malfazeja memória dos “heróis do mar”, como Gil Eanes, Diogo Cão, Bartolomeu Dias, Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Fernão Mendes Pinto (herói pícaro), etc., incluindo os recém-reconhecidos como portugueses de origem Fernão de Magalhães e Salvador Fernandes (o Cristóvão Colombo). Deveria até rogar umas veementes pragas a D. Dinis, “o plantador de naus a haver”, o que “ouve um silêncio múrmuro consigo”, o do “rumor dos pinhais que, como um trigo de império, ondulam sem se poder ver” (Fernando Pessoa, Mensagem, Dom Dinis). E porque não anatematizar o Infante D. Henrique, o arquiteto dos Descobrimentos, mas que andou a profanar a cruz de Cristo naquelas velas das caravelas, a esfarraparem-se com os ventos, a encherem-se do sal do imenso monstro marinho e serem salivadas pelo gado de Proteu?
Mais: atrevo-me a sugerir-lhe um périplo por todas a ex-colónias a apagar todos os vestígios monumentais e do património linguístico e étnico que sabem a português; e mesmo por outros lugares, já não ex-colónias, mas sítios por onde os portugueses “ficaram em pedaços repartidos” (China, Japão, Arábia…). Poderia mesmo desembainhar a sua espada autárquica contra a CPLP e talvez obtivesse o afastamento do panorama de interesses portugueses a Guiné-Equatorial e o padrinho de um determinado banco.
Estas, sim, seriam medidas que espelhariam o anticolonialismo, embora se duvide da sua eficácia!
Será que o autarca acha mais plausível terem sido entregues colónias como dote de casamento de princesas portuguesas com monarcas estrangeiros, como aconteceu com o casamento de D. Catarina de Bragança, que arrastou consigo a cidade e a fortaleza de Tânger com tudo quanto lhe pertencesse e a ilha de Bombaim na Índia Oriental, com todas as suas pertenças e senhorios, para ficarem daquele porto mais prontas as armadas inglesas para socorro (?!) das praças de Portugal na Índia? Foi este (além de dois milhões de cruzados) o preço do casamento da filha de D. João IV com Carlos II, de Inglaterra, tornando-se, por essa via, rainha consorte de Inglaterra, que lá introduziu o hábito da toma de chá às cinco da tarde… Uma boa medida anticolonialista ou uma rescisão amigável!
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Não me custa a reconhecer o exorcismo do colonialismo português inerente ao combate ao Estado Novo e a condenar os excessos concomitantes à colonização, bem como entendo e defendo o direito dos povos à autodeterminação e à independência como consequência daquela (era uma questão de maturação), como me ensinava o padre professor de Economia Social e Política no Seminário de Lamego, no ano letivo de 1968-69. Também aceito os exageros da ostracização do período histórico por parte de alguns em determinados momentos pós-revolucionários. Porém, agora que já lá vão quarenta anos sobre a descolonização (inevitável e com todo o direito, embora com erros de abandono e de não assunção de promessas e compromissos), é justo exigir-se o cuidado da memória do nosso país e dos países que resultaram da ocupação portuguesa, ainda que com sombras e luzes, e do seu reconhecimento como Estados independentes a engrossar o concerto das nações, quais filhos das suas tradições e enteados da velha metrópole.
E temos de fomentar o desmame de algumas bandeiras republicanas da ótica do estado Novo, que delas se apropriou ora com alguma razão ora indevidamente. Assim, “A Portuguesa” dos “Heróis do Mar”, que foi obrada por Alfredo Keil e Henrique Lopes de Mendonça em reação ao ultimatum britânico (“contra os bretões, marchar, marchar!”), não foi adotada como hino nacional pelo regime de Carmona e Salazar, mas pela I República (“contra os canhões, marchar, marchar!” – já não contra os bretões). A bandeira das quinas, verde e rubra, é obra da I República, não da Ditadura Militar, da Ditadura Nacional nem do Estado Novo.
Quanto às colónias, é verdade que, na reta final da monarquia constitucional, se pôs a hipótese da venda de algumas das colónias para pagamento da dívida externa e impulso ao desenvolvimento do país. Nestes termos, José Bento Ferreira de Almeida, antigo ministro da Marinha e Ultramar, defendeu na Câmara dos Deputados, em 12 de fevereiro de 1900, a venda das colónias (à exceção de Angola e de S. Tomé e Príncipe), como forma de pagar a dívida externa e fomentar o desenvolvimento do país. Aliás, a questão dos sempre crescentes défices financeiros da monarquia constitucional estivera na origem do acordo celebrado, em 1898, entre a Inglaterra e a Alemanha que previa a partilha de Angola, Moçambique e Timor, em caso de dificuldades que obrigassem a avultados empréstimos externos contraídos por Portugal. No ano seguinte, em função dos acontecimentos relacionados com a Guerra dos Boéres, a Inglaterra e Portugal renovaram os tratados de Windsor, mantendo o status quo. Nesse ano, Ferreira de Almeida foi nomeado Par do Reino por D. Carlos, enquanto António Enes, o vencedor das campanhas em Moçambique, ficou de fora.
(cf Cronologia [em linha] http://www.fmsoares.pt/aeb/crono/id?id=00008, ac setembro de 20014).
Foram os governos da I República – com erros, é certo – que acalentaram a mística da defesa e desenvolvimento das colónias. E Renato Epifânio, colunista do semanário O Diabo, na pg 23 do número de 2 de setembro, fustiga os que identificam simplisticamente a defesa das colónias com o Estado Novo, lembrando que “a defesa das ditas ‘colónias’ foi o móbil maior da nossa participação nessa Guerra” (a I Grande Guerra). E classifica mesmo essa defesa como “algo que, na altura, sem que haja qualquer exemplo comparável, não apenas fez (quase) o pleno entre republicanos, como ainda entre republicanos e monárquicos”, afora – digo eu – aquela tentativa, sem êxito, de venda das colónias em 1900 ou a partilha das mesmas entre as poderosas Inglaterra e Alemanha.
De facto, não é legítimo olvidar o esforço, embora insuficiente, da I República (como aliás o da Monarquia Constitucional) no desenvolvimento dos territórios africanos. Quem esquece a ação de Mouzinho de Albuquerque, em 1895, ou as medidas preconizadas por Norton de Matos (Angola) e por Álvaro de Castro (Moçambique), bem como as ações militares de Alves Roçadas e Pereira de Eça, em Angola, e as de Massano de Amorim, Moura Mendes, Ferreira Gil e do próprio Álvaro de Castro em Moçambique? Tanto quanto sei, Salazar dificultou ao máximo, até determinado momento, a migração de cidadãos do continente para as colónias, chegando a exigir-se o sistema de carta de chamada de quem já lá estivesse, tal como para a emigração para o Brasil. Somente a quando da eclosão a luta armada pelos movimentos de libertação é que veio a palavra de ordem oportuna e inoportuna Para Angola, rapidamente e em força!”. (cf [em linha] http://cc3413.wordpress.com/2011/10/16/para-angola-rapidamente-e-em-forca/, ac setembro de 20014).
Também será de considerar que, se Portugal mandou o Corpo Expedicionário Português para a Flandres, para a Guerra de 1914-1918 – a coberto da aliança com a Inglaterra, em torno do que fez um enorme esforço humano, financeiro e económico e onde perdeu milhares de militares e teve de amparar outros milhares de estropeados e esgazeados – fez esforço maior para as colónias e com resultados similares.

Por isso, a Sá Fernandes e a outros que encostam inevitável e exclusivamente ao Estado Novo as bandeiras da República, se recomenda a leitura, por exemplo, dos insuspeitos livros: História de Portugal, de Jean-François Labourdette (Edições Dom Quixote: 2003); História da I República (1.ª e 2.ª parte), vol. XI e XII de História de Portugal, de Joaquim Veríssimo Serrão (Editorial Verbo: 1989 e 1990, respetivamente); e História da Primeira República Portuguesa, coordenada pelos também insuspeitos historiadores Fernando Rosas e Maria Fernanda Rollo e com a colaboração de mais de uma dezena de renomados ensaístas (Edições Tinta da China: 2010). Não sigo, pois, o exemplo do mencionado Renato Epifânio no seu Manifesto Antizé (Fernandes) nem contra ninguém. Todavia, não quereria que qualquer atitude política redundasse em apagamento da História, o qual poderia dar azo ao descarrilamento do futuro, por denegação identitária e auto-obstrução da consciência coletiva. 

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