terça-feira, 9 de setembro de 2014

Uma edificante singularidade

Como vem sendo hábito no primeiro sábado de setembro, também este ano participei no encontro dos antigos alunos do colégio de Castro Daire, não porque o haja frequentado, mas por razões de afinidade, pois, minha esposa o frequentou. É a hora do reviver de velhas amizades, o momento de pôr as conversas em dia e a oportunidade de verificar que as pessoas não mudam no essencial com a erosão do tempo, por mais agruras que a vida ofereça. É a resiliência humana.
Quando o Padre Duarte vinha a estes encontros, a celebração da Eucaristia mudava de sítio consoante a agenda do encontro: a igreja matriz, a capela de Nossa Senhora da Soledade no Calvário da vila e a capela da cerca ou das carrancas. Porém, há uns anos a esta parte, é o pároco da freguesia, aliás da paróquia, que, no meio dos seus muitos afazeres, lá encontra um lapso de tempo para celebrar a Eucaristia para o grupo, o qual disponibiliza pessoas que fazem as leituras e dirigem os cânticos. E faz a homilia num muito bom ponto de embraiagem entre as leituras bíblicas e as caraterísticas deste pequeno grupo (que não exíguo), que celebra a vida, a memória e a amizade.
Depois da missa, o grupo faz a romagem ao cemitério para o sufrágio pelas almas de todos os alunos, professores e colaboradores do colégio. Simbolicamente, o túmulo de referência e de congregação do grupo (para as orações e para a entrega do ramo de flores) é o do Padre António Ribeiro, que foi o Diretor do Colégio e em torno de quem se concitavam as melhores simpatias e que faleceu no ano letivo de 1974/75. Depois, segue-se o almoço e a tarde de convívio num dos restaurantes da vila ou dos arredores.
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Nem sempre o sentido de observação me leva a fixar os mesmos lugares. Desta vez, a minha atenção, ao nível do exterior, deu para admirar a situação da vila à maneira de altaneira varanda socalcada sobre o Paiva, à frente da qual pontifica a sobranceira Igreja matriz e a cujos pés se encontra o campo santo onde se evidenciam os monumentos (mais artísticos ou mais simples) em memória daqueles que, tendo ombreado com o templo e no templo, partiram rumo à pátria definitiva para serem intercessores daqueles que persistem em honrar a sua memória, pelas lágrimas, pela oração e pelo trabalho.
Mas o que me aguçou a curiosidade foram, durante a celebração eucarística, uns retangulozinhos brancos discretamente emoldurados em pano de fundo liso vertical sobre meia mesa de altar em que se transformou a porta lateral a sul, já há muitos anos sem a serventia de porta. Sob os preditos retangulozinhos, estava um sóbrio arranjo floral. Não perguntei a ninguém o que seria aquilo, mas não desisti de, no fim da liturgia, ir ver o que era. Edificante: cada retangulozinho tinha o nome, a data de nascimento e a de falecimento do homem ou mulher em referência. Verifiquei que as datas de falecimento se reportavam ao ano corrente, 2014. E pensei: uma boa marca de solidariedade da comunidade paroquial para com os seus defuntos e seus familiares e amigos. Em tempo do discurso da solidariedade e da diminuta prática desta virtude social, mostra-se como um pequeno gesto se reveste de profundo significado humano e cristão. Também por aqui passa a atitude pastoral, se não aparatosa, bem edificante e indicadora de perenidade.
O facto fez-me lembrar aquele outro do sacerdote que na noite de um de novembro promoveu a procissão ao cemitério da paróquia e, junto à simbólica pedra tumular comum, em torno da qual se faziam as habituais orações fúnebres, mandara armar um altar provisório. Assim, com o seu povo, cantou a hora de vésperas do ofício de defuntos e celebrou a Eucaristia. No momento anterior ao da apresentação das oferendas, solicitou – para rematar a oração universal e simbolizar a oferta em comunhão de todos – que todos os presentes tirassem das campas de seus familiares e/amigos uma flor e a depositassem na referida pedra tumular comum. Pese embora alguma resistência das populações a qualquer inovação, ninguém deixou de alinhar naquele gesto de comunhão solidária e espiritual.
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E, por falarmos na Igreja de Castro Daire, um dos maiores e melhores pontos de referência do património edificado, aqui fica para os curiosos – que não tanto os castrenses, para quem isto é mais que sabido – uma nota histórico-artística sobre a Igreja de Castro Daire, com base num trabalho de Rosário Carvalho, com adaptações e informações adicionais já incorporadas, colhida no site da Direção-Geral do Património Cultural, da Secretaria de Estado da Cultura.
A primitiva e medieva igreja matriz de Castro Daire, dedicada a São Pedro, é uma fundação de origem muito remota, que teria sido reedificada no reinado de D. Dinis, pois, segundo a tradição, terá sido o próprio monarca a autorizar a utilização da pedra do antigo castelo para a obra do templo1. O castelo referido já não era então mais do que a antiga muralha do povoado castrejo da Idade do Ferro, que deu origem à Vila de Castro Daire.
Todavia, nada resta do medievo templo, pois toda a igreja foi objeto de uma reestruturação setecentista, iniciada ainda nos finais de seiscentos, que incidiu não só na estrutura arquitetónica, que foi largamente ampliada e que lhe empresta enorme imponência, mas também na estrutura decorativa, onde se contam variados retábulos de talha de estilo nacional, o barroco oitocentista. De acordo com a inscrição patente na sacristia (em que se destacam o retábulo rococó e o teto pintado em perspetiva, com a representação das chaves de São Pedro), a obra foi patrocinada pelo abade de então, João de Moura de Andrade, e ficou terminada em 1735. Todavia, este último dado parece contrariar a realidade, pois a conclusão do templo ocorreu apenas no século XIX, como atesta a fachada, de gosto neoclássico. Em todo o caso, tratou-se de uma conclusão divergente do projetado, já que o plano arquitetónico, que ainda hoje se conserva, assinado por Calhs. F. (que significará: Calheiros fez ou fecit), prevê que a fachada viesse a ser encimada por duas torres, uma das quais nunca chegou a ser construída. Nesta medida, a fachada apresenta a torre sineira do lado do Evangelho (o lado direito do templo), com quatro ventanas, e a estrutura de uma outra, erguida apenas até ao nível do entablamento. A composição remata em frontão triangular, muito caraterístico de um gosto neoclássico oitocentista (neste caso, tardio), com portal central em ressalto, ladeado por janelas de verga semicircular. As obras da fachada foram muito lentas, e ainda decorriam em 1864, o que originou uma subscrição pública com o objetivo de terminar as obras da igreja. Os trabalhos recomeçaram no ano seguinte, mas foram rapidamente interrompidos, por manifesta falta de recursos2.
O interior revela, justamente, o longo processo de edificação do templo. De nave única, com cinco tramos e corredor paralelo à nave, a igreja exibe oito altares, resultando um deles de alterações feitas no século XIX. Salienta-se o arco-cruzeiro de triunfo policromado, de arco a pleno centro. Os altares laterais, de talha dourada, inserem-se no denominado barroco pleno, ou estilo nacional, e foram executados, muito possivelmente, por João Correia Monteiro, artífice natural de Ferreirim, de Lamego, que trabalhou neste templo entre 1759-17603. A imaginária destes retábulos é da mesma época, e a imagem de Nossa Senhora do Rosário deve corresponder à que fora adquirida já em 1705. 
O mesmo entalhador deverá ter realizado os retábulos da nave, entre os quais se destaca o das Almas, de grande porte, com uma iconografia relacionada com a morte (de caraterísticas arrepiantes), e a representação, ao centro, do Arcanjo São Miguel. No intercolúnio, destacam-se várias imagens de santos a assistir as Almas – de que destaca o tetrágio São Nicolau de Tolentino, São Francisco de Assis, São Bento e São Bernardo –, numa iconografia muito semelhante à da bandeira desta Irmandade, conservada na sacristia. 
A importância deste retábulo é tal, que alguns autores aludem, mesmo, à possibilidade de ter sido Nicolau Nasoni a desenhar o risco desta estrutura, uma vez que o arquiteto-pintor esteve em Lamego, onde trabalhou nas pinturas das abóbadas da Sé4.
Por sua vez, a capela-mor destaca-se pelo teto, em caixotões, com painéis dourados. O retábulo, de estilo nacional, exibe imagens de São Pedro e São Paulo, que complementam a iconografia pedrina, patente nas telas sobre o cadeiral, e que representam cenas alusivas à vida do primeiro Papa, a quem a igreja era dedicada. Já o cadeiral que percorre as paredes laterais da capela-mor, que delimitam o espaço do coro baixo, é uma obra rococó, em talha, com pintura a óleo, executado pelo entalhador Timóteo Correia Monteiro (filho do autor dos retábulos da nave), em 17765. 
No coro alto, ao fundo do templo, destaca-se o órgão de tubos, fabrico do ano 1857 e cujo último restauro foi operado em 1995 por António Simões.
Trata-se de um templo que vale a pena visitar e que teve o último arranjo decorativo no último quartel do século XX, numa vila de cantos e recantos que apresenta motivos surpreendentes ao visitante de fino espírito de observação.
1 cf CORREIA; ALVES; VAZ; 1995: 235, apud Carvalho, Rosário. 
2 cf CORREIA; ALVES; VAZ; 1995: 237, id et ib.
3 CORREIA; ALVES; VAZ; 1995: 239, id et ib.
4 CORREIA; ALVES; VAZ; 1995: 239, id et ib.
5 CORREIA; ALVES; VAZ; 1995: 238, id et ib.
Cf Correia, Alberto; Alves, Alexandre; Vaz, João (1995). Castro Daire. 2.ª ed. Castro Daire: Câmara Municipal de Castro Daire.
Cf http://www.cm-castrodaire.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=131, ac setembro de 2014.
Cf http://orgaos-portugal.net/Orgaos_Historicos/Viseu/matriz_castro_daire.htm, ac setembro de 2014.

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