quinta-feira, 4 de setembro de 2014

O Estado e eu somos amigos…?

O Estado, para se ver livre dos seus “amigos”, ou seja, dos trabalhadores da administração pública, inventou o instituto despedimental da rescisão amigável. Parece que foi a troika que o impôs, segundo a narrativa vigente, como terá imposto tantas outras coisas, quando quem nos governa deveria estar consciente de que uma administração pública forte, prestigiada, coesa e confiante é que é o suporte da sobrevivência do Estado.
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Mas, antes de prosseguir este arrazoado reflexivo, gostaria de perder algum tempo nalgumas considerações prévias.
Em primeiro lugar, vem o conceito de rescisão. Ora, se rescisão é a forma de pôr fim a um contrato em razão de lesão contratual, ela não tem, à partida, nada de amigável, já que se trata de um rompimento relacional originado pelo descumprimento, pelo menos de uma das partes. Só por ironia o corte intempestivo de uma relação pode ser classificado como amigável. Nem o divórcio, que pressupõe uma relação contratual especial, se classifica de amigável, mas por mútuo acordo (o que é diferente de amizade), quando não é litigioso.
Se o Estado quer fazer a analogia com a perda da relação contratual entre o trabalhador por conta de outrem e o responsável pela administração da empresa ou outra entidade patronal sob cuja égide trabalha, também não dá certo. A relação laboral do trabalhador sob contrato acontece por cessação de contrato que não se renova. E, se o trabalhador foi absorvido nos quadros da empresa, por já não se tornar possível a renovação de contrato face à lei do trabalho, temos a figura do despedimento por justa causa, decorrente do comportamento inadequado do trabalhador (apurado em processo disciplinar), extinção do posto de trabalho ou insolvência da empresa, ou ainda por iniciativa e interesse do trabalhador. Em qualquer dos casos, a lei define as consequências, que os tribunais de trabalho costumam dirimir em caso de litígio. Mas nunca se fala de rutura amigável.
Ademais, os funcionários do Estado, que antigamente eram designados por agentes enquanto não integravam os quadros, eram providos por nomeação. Só bastante tarde é que, antes de entrarem para quadros, é que serviam o Estado na forma de contrato. Porém, muito recentemente é que passaram a usufruir de determinadas regalias que estavam ao dispor dos trabalhadores por conta de entidades privadas, como, por exemplo, o subsídio de desemprego, não estando, por outro lado, abrangidos pela obrigatoriedade de passarem aos quadros logo que já não fosse possível a renovação de contrato. Tanto assim é que ainda há professores na situação de contratados há mais de quinze anos.
Nos últimos anos, artificiosamente a lei passou a maior parte os funcionários do Estado, que tinham sido providos por nomeação, ao regime de contrato por tempo indeterminado. Ficaram de fora desta imaginosa operação legal os que desempenham cargos em estruturas que representam a soberania do Estado, como por exemplo, magistrados, militares, polícias e diplomatas. Pensava eu que todas as funções do Estado, pelo menos ao nível da regulação e supervisão, eram conexas com a soberania. Pelo que lamento que finanças públicas, estruturas públicas de coordenação da economia, saúde pública, serviço público de educação, estruturas públicas de ensino e investigação, ecologia e ambiente escapem ao âmbito da soberania. Mas, se eles lá o leem, lá o entendem… o país pode descambar, que ninguém dá conta.
Por outro lado, o contrato configura o acordo entre partes, em que se estabelecem as condições de desenvolvimento da atividade de forma bilateral, ao passo que a relação de cooperação (e o seu conteúdo) entre o Estado e o funcionário não é, nem a maior parte dos casos pode ser, definida bilateralmente. Se é certo que o trabalhador pode, através das estruturas que o representam, participar na definição de políticas para o setor da sua atividade e até participar, de algum modo, na gestão do serviço, não lhe cabe a ele definir a parametragem de objetivos, estratégias, disponibilização da maior parte dos recursos, calendarização e figurino avaliativo. Cabe-lhe, em nome da autonomia profissional e gestionária, a seleção de algumas táticas e formas de aplicação. Isto porque está em causa não um desígnio empresarial, mas o interesse público, cuja leitura é feita, mal ou bem, por quem tem o ónus da governação (entendida esta lato sensu).
Também os conceitos de “amizade”, “amigável” e similares não se aplicam ao regime de rescisão. São termos e conceitos demasiado antológicos para se utilizarem na relação com a empresa ou com o Estado, sobretudo quando os titulares dos mais altos cargos públicos lançaram o anátema sobre os trabalhadores da administração pública. Fica no imaginário popular a ideia de que estes são os responsáveis pela absorção dos dinheiros públicos em salários, mordomias e pensões. Esquecem-se os últimos governos de que outrem, pela via da estatização de serviços e pela interpretação restritiva da Constituição (que leva quase à consideração de que serviço público coincide necessariamente com o prestado exclusivamente por entidades e funcionários públicos), induziu a que o corpo de funcionários públicos abranja um grande número de cidadãos, o que, pelos vistos, comparativamente com outros países não é tão volumoso como apregoam. Além disso, convém referir que foi o Estado que assumiu voluntariamente a gestão dos fundos de pensões dos trabalhadores do regime privado, CTT, CGD, PT, bancos… Não são os funcionários públicos os responsáveis pelo desvio (direto ou indireto) de avultadas verbas do erário público para BPN, BPP, BCP, BANIF, BES, NOVO BANCO, até CGD, submarinos, mordomias de altos dirigentes e privatizações ao desbarato. 
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Atentando na implantação do regime das eufemísticas rescisões amigáveis, importa referir que o Governo não desarma em tentar desfazer-se dos funcionários que, no seu entender estão a mais. Bem sabe que não é isso. Já aconteceu na década de oitenta com a lei dos coronéis. Induziu a passagem de militares à reserva e à reforma e, a seguir, foi recontratar alguns dos que tinham passado à inatividade. Recentemente aconteceu algo semelhante com médicos. Neste setor até paga mais a médicos que importa de Cuba.
O que move o Governo é o esvaziamento das carreiras. Como as aposentações antecipadas se tornam cada vez mais gravosas e os funcionários mais antigos já são em número bastante reduzido, inventou um recurso: acena com a desvinculação voluntária da parte do funcionário em troco de uma compensação que vai de 1,25 do salário de um mês por cada ano de trabalho ou, a partir de uma determinada idade, do salário simples de um mês por cada ano de trabalho. E há um limite de idade, os 60 anos; e umas condições: a não solicitação da antecipação da aposentação; e a inibição de prestação de qualquer serviço em instituições públicas, mesmo a título gracioso. Parece que, depois de alguma hesitação, se lhes permite a manutenção na ADSE. Mas com desconto de 3,5% sobre que ordenado?
O programa, depois de ter esvaziado ao máximo as condições de indemnização por despedimento na relação de trabalho do regime privado, começou por incidir sobre assistentes técnicos e assistentes operacionais (ou categorias a estas equivalentes), passou a abranger técnicos superiores, veio a incidir sobre professores (estes, se pertencessem a determinados grupos de recrutamento, teriam a compensação por 1,25 do salário mensal por cada não de trabalho independentemente do escalão etário).
Para tanto, o Governo publicou para cada programa a respetiva portaria. Cá está mais uma prova de que o rompimento não pode ser amigável: não se estriba num instrumento de mútuo acordo (acertado localmente entre o funcionário e o representante do Estado, como acontece nos contratos), mas num instrumento jurídico-administrativo, uma portaria, de cuja aplicação caso a caso resulta um ato administrativo praticado nos termos do CPA. Para tanto, o candidato ao desemprego simula a situação, requer a concordância do competente membro do Governo ou de quem fizer as suas vezes, que pode reformular (aferir o cálculo) as condições. A referida entidade profere despacho e manda notificar o candidato em regime de audição para que o ato administrativo possa tornar-se definitivo. Cabe ao funcionário aceitar ou não o despacho. Se aceitar, tudo bem; caso contrário, não conheço nenhuma situação de que tenham resultado consequências.
As informações passadas à Comunicação Social soam a contradição: ora parecem corresponder às expectativas governamentais e até ultrapassá-las; ora parecem ficar aquém.
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Com base na experiência colhida, o Estado quer recrutar mais “amigos”, agora nas autarquias, a começar em outubro e por um ano completo.
Segundo o que transpirou para os órgãos de Comunicação Social, o programa de rescisões de funcionários das autarquias, que se segue aos que já aconteceram para os da administração central, incluindo professores, arrancará a 1 de outubro e vai prolongar-se por um ano. A mesma informação dá conta de que este conteúdo consta de projeto de portaria chegado há pouco tempo à mesa dos sindicatos do setor.
Esta intenção fora já anunciada em julho pelo executivo, estando então previsto que o programa durasse apenas até ao final de 2014, ficando a possibilidade de prolongar o processo até ao final de 2015 somente disponível para os municípios em situação de recuperação financeira.
Mantêm-se inalteradas as restantes condições que foram definidas para os assistentes técnicos administrativos e operacionais, para os técnicos superiores e para os docentes.
Por outro lado, determina-se que sejam as entidades empregadoras a suportar o custo das rescisões, ou seja, as próprias autarquias e não, em caso algum, o Fundo de Apoio Municipal, que se criou recentemente para acorrer às situações de municípios que vivem em situação de asfixia financeira.
À semelhança do que aconteceu com os anteriores programas, podem candidatar-se a um acordo para desemprego, denominado rescisão amigável, os trabalhadores até aos 60 anos, que ocupem cargos em câmaras, juntas de freguesia, serviços municipalizados e outros órgãos autárquicos e tenham contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado.
A indemnização a pagar a cada trabalhador será calculada a partir do ordenado base e dos suplementos permanentes que recebe. No caso de trabalhador com menos de 50 anos, perceberá 1,25 de vencimento mensal de remuneração por cada ano de trabalho. Tal valor é reduzido para um salário mensal por cada ano de contrato para quem tiver entre os 50 e os 60 anos de idade.
Contra o que sucedeu nalguns dos casos de funcionários da administração central, este programa não limita as rescisões a determinadas categorias profissionais nem faz distinções no cálculo das indemnizações segundo o cargo de cada um.
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A situação específica dos municípios proporciona-me o levantamento de algumas questões. Se os assistentes operacionais em serviços dos municípios são extremamente necessários, porque é que percebem um salário tão parco e se aguentam anos e anos em situação precária?
Será mesmo necessário reduzir pessoal da área administrativa e de técnicos intermédios, quando, a meu ver indevidamente, muitas das tarefas técnico-administrativas são entregues a pessoal dos gabinetes de apoio (chefes, adjuntos e secretários), de confiança pessoal e/ou política?
Quanto a técnicos superiores, fizeram os municípios um esforço por os fixar nas áreas do país profundo e a maior parte dos serviços de projeto e consultoria passaram a ser entregues a entidades externas, por serem mais baratas ou por corresponderem a interesses particulares?
Será que as rescisões programadas vão acabar com situações de compadrio – a saber: a plêiade de técnicos superiores requisitados para não irem para longe de casa, com pouco conteúdo funcional desenvolver; os concursos abertos para integrar em definitivo os já praticantes, em que o número de concorrentes é de um, dois, três; e a satisfação, por trabalhadores menos bem pagos, da transferência de competências do Estado para os municípios, com vista à desresponsabilização do Estado, mas em nome da racionalização de meios?
Não se deram ainda conta os governos de que os municípios, sobretudo os mais pequenos, têm competências a mais e dinheiro a menos? Não se deram ainda conta de que uns não têm demonstrado capacidade de execução física e financeira para os projetos que esboçam e que assumem e outros disparam no endividamento excessivo? Até quando estamos dispostos a suportar programas especiais de recuperação financeira de municípios, sempre com sobrecarga para os munícipes (pois arcam sempre, nestes casos, com os preços máximos em taxas e tarifas)?
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Digam-me como é que eu – funcionário de autarquia, trabalhador da administração central ou regional, aposentado ou reformado – posso ser amigo do Estado, mas não me questionem a veneração pelo torrão natal ou o amor pela comunidade pátria e pela madre Língua, realidades bem diferentes, que eu queria que o Estado e as autarquias assumissem para bem de todos!

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