quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

PACC: um ministerialíssimo tiro no pé

Perante o mesmo facto são legítimas várias leituras. No entanto, quem tem responsabilidades numa determinada matéria não pode avaliar um facto afirmando uma coisa e o seu contrário. Por outro lado, quem tem responsabilidades públicas perante uma situação complexa, deve tirar as conclusões mais adequadas à solução da complexidade.
Vem isto a propósito da PACC (prova de avaliação de conhecimentos e capacidades) a que o MEC (Ministério da Educação e Ciência) sujeita os candidatos à docência que tenham uma habilitação superior conducente à carreira de professor (a) e que não tenham uma experiência docente de pelo menos 5 anos de serviço. A predita prova consta de duas partes: uma igual para todos (eliminatória), aplicada a 2490 candidatos (não professores integrados na carreira), em 19 de dezembro passado; e outra (ou outras) específica consoante o grupo ou grupos de recrutamento a que pertence o candidato, a aplicar a partir de 1 de fevereiro próximo.
O número acima referido já é deduzido do número de 2811 candidatos validamente inscritos, mas que faltaram à PACC. E este número já fora deduzido da totalidade dos que tentaram a inscrição, mas que não foi validada por erros cometidos aquando da utilização da aplicação informática, submissão fora de prazo ou não apresentação atempada dos comprovativos indicados.
Não me pronunciando sobre os motivos que levaram um considerável número de candidatos a não comparecer à prova, por desconhecidos, mas que podem prender-se com situações imprevistas ou desleixo, acuso o toque da irresponsabilidade da indicação de documentos cujo comprovativo se não apresenta e a arrogância que alguns manifestam em relação aos mais velhos por via da sua alegada infoiliteracia, que os inibe de se manterem competentes para lá dos 50 anos de idade. É caso para dizer em latim: “euge, euge!”. Tanta prosápia para falharem no mais óbvio…
Mas o MEC não pode alegar que os resultados da PACC, que excluíram já 34,3% dos candidatos (o MEC diz abusivamente “professores”) que a ela se sujeitaram, mostram que ela era necessária como instrumento de seleção.
Mais: o Ministro, perante os deputados que se faziam eco da não validade da prova defendida pelo conselho científico do IAVE-IP, afiançava a PACC como um “instrumento importante para escolher os melhores professores para as escolas públicas”. Porém, ao ser confrontado com o facto de a prova não avaliar o essencial para a função docente, Crato assentiu argumentando com os exames de condução, que não avaliam tudo, mas avaliam o conhecimento de umas regras e de uns sinais e não escolhem os melhores condutores. Universidade = escola de condução e MEC = centro de inspeção de condução? Boa!
É o que eu chamo a afirmação de algo e do seu contrário. Por outro lado, eu argumento com o que se passa em geral com as escolas de condução, cujo escopo não é propriamente preparar condutores, mas preparar pessoas para o exame. Por isso, os cidadãos, seus clientes, são adestrados através de testes de resposta de escolha múltipla e do exercício de umas tantas manobras de condução para “tirarem a carta”. Depois, na prática aprendem a ser condutores. E eu não queria que a escola pública se limitasse a preparar os alunos exclusivamente para exame final, através de uma assídua bateria de testes, descurando o essencial das aprendizagens. Analogamente, penso ser indesejável que a formação inicial de professores desembocasse numa prova, que a coberto da necessidade de compreensão de enunciados e de resolução de problemas ou do desenvolvimento da capacidade de raciocínio, obrigasse os candidatos a resolver uns crucigramas, uns sudokus, números cruzados, anagramas, caça-palavras ou sopas de letras.
Aliás, as palavras do MEC, às vezes, revelam a verdadeira e única intenção, recentemente pela boca do responsável pela pasta: “Temos um número de candidatos muito superior ao número de lugares”. Para quê mais palavras?
Na última audição perante a Comissão de Educação, Ciência e Cultura, Sua Excelência deu um ministerialíssimo tiro no pé. Bem sei que os meus colegas atreitos acriticamente ao novo dicionário terminológico me virão dizer que um adjetivo relacional como “ministerial” não se coloca à esquerda do nome nem admite graus. A isso posso responder que a Igreja Católica, “perita em humanidade”, como dizia Paulo VI e repetia à saciedade João Paulo II, consagrou a expressão “Romano Pontífice”. “Romano” é um adjetivo relacional e vem à esquerda do nome “pontífice”! Também os poetas se dirigiam ao príncipe como “sereníssimo senhor”. Não creio que este “sereníssimo” fosse um adjetivo qualificativo stricto sensu. Vá lá, abram exceções, caso contrário ainda me reprovam na PACC.
A serem verdadeiros os resultados percentuais publicitados pelo IAVE-IP, que suponho não estar ali para enganar, a solução não passa principalmente pela prova. Se não, vejamos:
Segundo o IAVE-IP, 40,4% dos candidatos tiveram uma classificação entre 10 e 14,9 pontos (em 20) e 24,8% uma classificação igual ou superior a 15. A nível da pontuação, 16% dos candidatos deram respostas com cinco ou mais erros e 28,7% cometeram um ou dois erros; e, ao nível da acentuação, foram 28,7% os que responderam com um ou dois erros. No que se refere à ortografia, em 29,1% dos casos registam-se um ou dois erros e em 19,9% cinco erros ou mais. Já no atinente à sintaxe, 16% apresentaram respostas com três ou mais erros destes.
Entretanto, é de salientar que 34,7% dos candidatos não apresentaram quaisquer erros nas respostas. Porém, o Ministro parece saborear a declaração: “não faz sentido nenhum que um professor dê 20 erros de ortografia numa frase”. Diga-se que estes não são os mais graves.
Ora sendo assim, algo está mal, mas a PACC não traz qualquer solução sustentável e credível. Há que intervir na formação inicial, a cargo de instituições do ensino superior. É necessário arredar dos candidatos ao ensino superior que quem não sabe ou não quer fazer mais nada vai para o ensino e ter a ousadia de criar exigências ao nível da abertura de cursos, do acesso aos mesmos e da sua ministração e da avaliação das aprendizagens. Depois, é necessário exigir capacidade de compreensão, raciocínio e expressão, bem como de relações interpessoais e perfil ético em todos os cursos superiores e não só nos destinados à docência. Neste sentido, seria útil desfazer a ideia “universitária” de que não importa tanto o escrever bem (corretamente), mas escrever com rigor. E é preciso pôr os estudantes a escrever em português e bem (sem tolher a escrita em línguas estrangeiras, mas não descurando o português que também é língua de ciência) e a comunicar em bom português.
Não pode, apesar de tudo, o MEC descurar a formação inicial de professores, mas ao mesmo tempo dotar estes diplomados de outras ferramentas que os qualifiquem para o exercício de outra atividade. Não vá acontecer que se generalize a onda de desmotivação e as escolas fiquem desertas de quadros ou de pessoas qualificadas para colmatar as necessidades eventuais do sistema educativo ou que as instituições do ensino superior estejam a formar pessoas exclusivamente para “o mercado do desemprego”.
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Relativamente a esta matéria, as duas federações sindicais de professores e a Associação Nacional dos Professores Contratados, mantêm que a prova visa apenas a exclusão de docentes da profissão. Mário Nogueira, secretário-geral da Fenprof (Federação Nacional de Professores), lançou o seguinte desafio aos pais: “Gostava que os pais se dessem ao trabalho de ir à página do Instituto de Avaliação Educacional [IAVE] na Internet e lessem a prova. Será que ficam mais descansados por entregar os filhos a um professor que tivesse passado naquela coisa?”. É óbvio que ele próprio assegura que “não”. E adiantou que “a PACC é de uma inutilidade completa, a não ser para afastar professores que, em setembro, muito convenientemente para o Governo, já não aparecerão como não colocados”.
Por seu turno, João Dias da Silva, secretário-geral da FNE (Federação Nacional de Educação), concorda com Nogueira e cita o conselho científico do IAVE-IP que, num parecer de novembro passado, considerou que a PACC não é “válida” nem “fiável”, tendo como “propósito mais evidente” impedir o acesso à carreira docente (aqueles que “chumbam” não poderão dar aulas).
No mesmo rumo, César Israel Paulo, da ANPC (Associação Nacional dos Professores Contratados), destacou “os efeitos perversos” de um sistema que impede os professores que chumbaram na componente comum de fazerem a 2.ª parte e que “supostamente vai avaliar as competências científicas e pedagógicas”. E lamentou o que vem sucedendo: “O MEC afastou pessoas que poderiam ter resultados excelentes nessas áreas, que são as que interessam – é inadmissível”.
No entanto, os candidatos à PACC não deram sempre mostras de aprumo e correção quer nas imediações das escolas onde decorreram as provas quer dentro dos próprios lugares da prova. Pode dizer-se que os casos foram pouco numerosos, mas em todo o caso é conveniente evitar passar à opinião pública imagem distorcida do perfil dos candidatos. Por sua vez, os sindicatos não ganham eficácia com reivindicação desvirtuada, pouco expressiva e não massiva, bem como com a declaração de greve para o exíguo setor dos vigilantes.
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Finalmente, não deixo de registar a posição de duas especialistas em educação, as pedagogas Leonor Santos e Maria Emília Brederode dos Santos, que apontam fragilidades aos testes escritos e defendem que a qualidade dos professores se obtém com acompanhamento. Assim, segundo asseguraram ao DN, se o país quer garantir a qualidade do ensino, deve reforçar a formação profissional dos licenciados (agora os mestres), nomeadamente no primeiro ano de trabalho, em vez de apostar em provas que são limitadas na identificação de aptidões – ou na falta delas – para dar aulas. Leonor Santos garante que não será através da PACC – que registou mais de um terço de chumbos – que o Ministro alcançará o objetivo de “escolher os melhores professores”. Sendo em contexto de trabalho que estas competências são identificadas e desenvolvidas, “isso consegue-se através do ano de indução na carreira, no início da sua atividade [o período probatório], em que o professor trabalha com o acompanhamento próximo de profissionais competentes e experientes”, o que, tendo chegado a ser legislado [nos anos 1980], não chegou a concretizar-se de forma generalizada.

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