Decorridos que são oito dias sobre
o atentado islâmico contra as instalações do semanário Charlie Hebdo, com
replicação noutros lugares, as reações que afloram revelam uma lucidez
crescente e uma avaliação mais racional das medidas a tomar, umas a nível
interno de França, outras a nível da cooperação internacional.
O
Governo Francês tratou de mobilizar o exército para a segurança de Paris e
envolvente e reforçou a proteção de sinagogas e mesquitas, locais de culto
relativamente de judeus e de muçulmanos, bem como mais de 700 escolas espalhadas
por todo o país (mobilizou dez mil militares para o patrulhamento intensivo nas
ruas parisienses e mais cinco mil para o resto do território). No entanto,
garante não ter a intenção de tomar medidas de exceção nem de declarar uma
guerra global e primária ao terrorismo. Por outro lado, aumentaram os atos hostis contra muçulmanos, que
obrigam a mobilizar cada vez mais forças de segurança em prol destes.
Num contexto de alerta para o risco
de atentado terrorista no nível máximo, o Governo arregimentou ao todo quinze
mil militares para patrulhar as ruas de Paris e outros “pontos sensíveis” do país,
continuando a contar com o empenho das forças de segurança. A esse respeito, o
ministro da Defesa, Jean-Yves Le Drian, declarou ser a primeira vez que uma
mobilização desta amplitude abrange as forças de defesa e segurança em todo o
território e que “as ameaças continuam presentes”.
Pode alguém dizer que as medidas
acima enunciadas revestem um caráter excecional. Porém, elas não configuram as
medidas de exceção usualmente previstas nas constituições democráticas que
colocam em primeiro lugar as liberdades, as garantias e os direitos fundamentais
em que se inscreve a liberdade de expressão, de reunião e de movimentação. Não
obstante, elas podem ser suspensas caso ocorram alterações graves à ordem
pública e em conformidade com a avaliação que os poderes instituídos fizerem em
articulação uns com os outros, nos termos constitucionais. Tais medidas de
exceção (em sentido técnico-político) costumam ser, em todo o território ou em
parte, o estado de sítio, o estado de emergência ou a situação de calamidade
pública, bem como o encerramento de portos, aeroportos e mesmo fronteiras
terrestres.
No caso em apreço, poderia pensar-se no
condicionamento das passagens fronteiriças com os países limítrofes ou, pelo
menos, o reforço do controlo das fronteiras atinentes ao espaço Schengen.
***
O Primeiro-Ministro Manuel Vals reuniu-se no Eliseu com o
Presidente François Hollande e com todos os dirigentes das forças de defesa e segurança.
E dessa reunião resultou a decisão de que, por mais atraente e exequível que
pudesse parecer a ideia, não haverá nenhum Patriot Act em França,
sendo que as medidas equacionadas pelo executivo incluem o reforço da proteção
de locais “sensíveis” e a intervenção em pontos de recrutamento de jihadistas,
como escolas e prisões, bem como a possibilidade de criação de um novo decreto
para “aprimorar” o funcionamento dos serviços de recolha de informação. Isto
resulta do facto de os novos decretos antiterrorismo, lançados em novembro de
2014, apesar de ainda não terem entrado em vigor, já terem sido reputados como
insuficientes).
Em conformidade com as palavras do Primeiro-Ministro, o Governo
será implacável contra o terrorismo, mas não intentará novas medidas só por
causa dos atos em apreciação.
Tal sentido de decisão governamental contraria a proposta de
políticos de direita, avançada no fim de semana subsequente aos atentados, no
sentido do endurecimento da legislação com um pacote de medidas draconianas
para a limitação das liberdades em nome da segurança. Entre elas, tinham
sugerido em concreto a proclamação do estado de emergência, o fecho das
fronteiras ou outros “procedimentos excecionais” semelhantes aos adotados pelo
Presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, no rescaldo dos ataques de 11 de
Setembro de 2001 às Torres Gémeas e ao Pentágono.
Esta era também a posição do lobby
das polícias, que, segundo o Le Monde, assumiu a aprovação de um Patriot Act à francesa como
uma nova causa, “para fazer esquecer as falhas do dispositivo e reclamar mais meios”.
Por seu turno, a comunidade
islâmica também apelou ao Governo para que procedesse ao reforço da vigilância
e proteção do Estado, dado que, segundo o Observatório contra a islamofobia do Conselho Francês do Culto Muçulmano, depois do atentado terrorista no Charlie Hebdo, já recebeu mais de meia centena de ataques, concretizados em:
insultos, ameaças, vandalismo, fogo posto,
explosões, tiros e granadas. De acordo com Abdallah
Zekri, presidente do observatório, tal número é inédito em termos de atos
hostis contra os muçulmanos em menos de uma semana.
Tanto
as palavras de Manuel Vals como as ações de patrulhamento em curso junto de
escolas muçulmanas e mesquitas revelam que a inusitada operação de segurança
militar teve em conta as pretensões muçulmanas, dando sinais à população de que
também os atos de islamofobia serão prevenidos e, se ocorrerem, serão
reprimidos.
Também
Bernard Cazeneuve, o Ministro do Interior, no seguimento de entrevistas de Vals
à rádio RCM e à BFMTV a mostrar a intenção de melhorar o sistema de escutas administrativas
e judiciárias, explicou que o Governo quer propor a aprovação de legislação que
outorgue mais competências às autoridades para a monitorização da Internet na
pesquisa de atividades subversivas ou de comunicações entre células
terroristas. Nestes termos, a Assembleia Nacional conhecerá todas as medidas
que o Governo pretende implementar e que lhe proporá para apreciação e
aprovação. Entre elas, inclui-se uma “generalização do regime de isolamento
para os islamitas radicais sob detenção” e ações educativas nas escolas” como
formas de luta preventiva contra o racismo e o antissemitismo.
Do
seu lado, as autoridades prosseguem as investigações aos crimes ocorridos em Paris
e as buscas pelos alegados cúmplices dos terroristas.
***
Demais, enquanto milhões de franceses saíam à rua e meia centena de
chefes de Estado e de Governo desfilavam em Paris, o ministro do Interior
reuniu alguns dos homólogos europeus e norte-americanos para encetar o debate
sobre o nodo de enfrentar esta nova estirpe do terrorismo. Embora, como era de
esperar, nada tivesse ficado decidido, foi enunciada uma lista de medidas que
devem entrar na agenda de discussão europeia para as próximas semanas.
A
primeira das medidas visa o reforço das fronteiras externas de Schengen, com a
melhoria do sistema comum de informações. Outras referem-se à “partilha de
informações” entre os serviços secretos europeus e os dos Estados Unidos.
Trata-se de instrumentos já existentes mas que precisam de ser ampliados e
melhorados. Por exemplo, o Registo dos Nomes dos Passageiros (PNR na sigla
inglesa) nos voos entre a Europa e os Estados Unidos (e também austrália e
Canadá), que já funciona há alguns anos, ainda não se aplica aos voos na
Europa.
A
questão mais delicada – a da possibilidade de repor as fronteiras internas dos
países do Espaço Schengen – não consta das prioridades de Cazeneuve e seus
pares. Entretanto, o ministro do Interior espanhol, em declarações ao El
País, defende-a como necessária, embora sem uma justificação cabal, tal
como o anterior presidente francês, Nicolas Sarkozy. Todavia, apesar de prevista
no tratado, só pode funcionar com autorização de Bruxelas e por um período
máximo de 15 dias.
***
Todo
este cenário de perturbação e intenção de tomada de medidas retoma o debate
sobre o equilíbrio entre as liberdades cívicas e a segurança nas democracias.
Depois dos acontecimentos de 11 de setembro de 2001, a grande questão que se
colocou foi saber até que ponto era necessário estabelecer o cerceamento de algumas
das liberdades cívicas para garantir a segurança, preservando ao máximo a
prerrogativa da liberdade. Também agora o impacto inicial de choque induz a
valorização da segurança em consonância com o que esperam as opiniões públicas
ocidentais. Foi o que aconteceu na Europa na sequência do sucedido em Nova
Iorque, Madrid e Londres, com o reforço das leis antiterroristas, o aumento da
segurança nos aeroportos, as câmaras de vídeo no Metro. A habituação normal a
viver com estes incómodos não prejudicou, no essencial, as liberdades, que subsistiram
razoavelmente.
Contudo,
este equilíbrio entre liberdade e segurança (valores fundamentais em sintonia,
já que não há liberdade sem segurança e segurança sem liberdade não compagina
vida em dignidade: a vida precisa de respirar) pressupõe um outro debate sobre
os preconceitos que muitas vezes estão subjacentes na sociedade. Um especialista
francês em islamismo revelou que “há mais muçulmanos franceses a trabalhar nos
serviços de segurança do que para a Al-Qaeda”. Assim, o estudioso insurge-se
contra o facto de “todos” serem integrados na mesma suposta comunidade
muçulmana, que afinal não existe. “Na França, não há uma comunidade muçulmana,
há, sim, uma população muçulmana” – explica.
De
igual modo, António Vitorino, que foi comissário europeu para os Assuntos
Internos, lembra que há mais de cinco milhões de franceses de origem muçulmana
em França que fazem a sua vidas normalmente, e um pouco mais de mil que se
deixam seduzir pela jihad. Mesmo condenando
as generalizações, que não são boas conselheiras, chama a atenção para este
fenómeno novo (que já se tinha verificado nos atentados de Londres) que são os
terroristas “homegrown” e que, por isso, levantam novas questões, novos
problemas. Os terroristas de Paris nasceram na França, são franceses e utilizam
as liberdades que essa situação lhes confere. Todavia, este desafio não exige
mudanças no Tratado de Schengen. Bastará que o sistema que prevê a troca de
informações de modo a vedar a entrada de suspeitos de atividade criminosa ou de
terroristas funcione devidamente.
Enfim,
a democracia, enquanto regime aberto e tolerante, implica riscos, que se podem
minimizar, mas que não se podem eliminar sob pena de se anular a democracia.
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