quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Que medidas na sequência do caso Charlie?

Decorridos que são oito dias sobre o atentado islâmico contra as instalações do semanário Charlie Hebdo, com replicação noutros lugares, as reações que afloram revelam uma lucidez crescente e uma avaliação mais racional das medidas a tomar, umas a nível interno de França, outras a nível da cooperação internacional.
O Governo Francês tratou de mobilizar o exército para a segurança de Paris e envolvente e reforçou a proteção de sinagogas e mesquitas, locais de culto relativamente de judeus e de muçulmanos, bem como mais de 700 escolas espalhadas por todo o país (mobilizou dez mil militares para o patrulhamento intensivo nas ruas parisienses e mais cinco mil para o resto do território). No entanto, garante não ter a intenção de tomar medidas de exceção nem de declarar uma guerra global e primária ao terrorismo. Por outro lado, aumentaram os atos hostis contra muçulmanos, que obrigam a mobilizar cada vez mais forças de segurança em prol destes.
Num contexto de alerta para o risco de atentado terrorista no nível máximo, o Governo arregimentou ao todo quinze mil militares para patrulhar as ruas de Paris e outros “pontos sensíveis” do país, continuando a contar com o empenho das forças de segurança. A esse respeito, o ministro da Defesa, Jean-Yves Le Drian, declarou ser a primeira vez que uma mobilização desta amplitude abrange as forças de defesa e segurança em todo o território e que “as ameaças continuam presentes”.
Pode alguém dizer que as medidas acima enunciadas revestem um caráter excecional. Porém, elas não configuram as medidas de exceção usualmente previstas nas constituições democráticas que colocam em primeiro lugar as liberdades, as garantias e os direitos fundamentais em que se inscreve a liberdade de expressão, de reunião e de movimentação. Não obstante, elas podem ser suspensas caso ocorram alterações graves à ordem pública e em conformidade com a avaliação que os poderes instituídos fizerem em articulação uns com os outros, nos termos constitucionais. Tais medidas de exceção (em sentido técnico-político) costumam ser, em todo o território ou em parte, o estado de sítio, o estado de emergência ou a situação de calamidade pública, bem como o encerramento de portos, aeroportos e mesmo fronteiras terrestres.
 No caso em apreço, poderia pensar-se no condicionamento das passagens fronteiriças com os países limítrofes ou, pelo menos, o reforço do controlo das fronteiras atinentes ao espaço Schengen.
***
O Primeiro-Ministro Manuel Vals reuniu-se no Eliseu com o Presidente François Hollande e com todos os dirigentes das forças de defesa e segurança. E dessa reunião resultou a decisão de que, por mais atraente e exequível que pudesse parecer a ideia, não haverá nenhum Patriot Act em França, sendo que as medidas equacionadas pelo executivo incluem o reforço da proteção de locais “sensíveis” e a intervenção em pontos de recrutamento de jihadistas, como escolas e prisões, bem como a possibilidade de criação de um novo decreto para “aprimorar” o funcionamento dos serviços de recolha de informação. Isto resulta do facto de os novos decretos antiterrorismo, lançados em novembro de 2014, apesar de ainda não terem entrado em vigor, já terem sido reputados como insuficientes).
Em conformidade com as palavras do Primeiro-Ministro, o Governo será implacável contra o terrorismo, mas não intentará novas medidas só por causa dos atos em apreciação.
Tal sentido de decisão governamental contraria a proposta de políticos de direita, avançada no fim de semana subsequente aos atentados, no sentido do endurecimento da legislação com um pacote de medidas draconianas para a limitação das liberdades em nome da segurança. Entre elas, tinham sugerido em concreto a proclamação do estado de emergência, o fecho das fronteiras ou outros “procedimentos excecionais” semelhantes aos adotados pelo Presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, no rescaldo dos ataques de 11 de Setembro de 2001 às Torres Gémeas e ao Pentágono.
Esta era também a posição do lobby das polícias, que, segundo o Le Monde, assumiu a aprovação de um Patriot Act à francesa como uma nova causa, “para fazer esquecer as falhas do dispositivo e reclamar mais meios”.
Por seu turno, a comunidade islâmica também apelou ao Governo para que procedesse ao reforço da vigilância e proteção do Estado, dado que, segundo o Observatório contra a islamofobia do Conselho Francês do Culto Muçulmano, depois do atentado terrorista no Charlie Hebdo, já recebeu mais de meia centena de ataques, concretizados em: insultos, ameaças, vandalismo, fogo posto, explosões, tiros e granadas. De acordo com Abdallah Zekri, presidente do observatório, tal número é inédito em termos de atos hostis contra os muçulmanos em menos de uma semana.
Tanto as palavras de Manuel Vals como as ações de patrulhamento em curso junto de escolas muçulmanas e mesquitas revelam que a inusitada operação de segurança militar teve em conta as pretensões muçulmanas, dando sinais à população de que também os atos de islamofobia serão prevenidos e, se ocorrerem, serão reprimidos.
Também Bernard Cazeneuve, o Ministro do Interior, no seguimento de entrevistas de Vals à rádio RCM e à BFMTV a mostrar a intenção de melhorar o sistema de escutas administrativas e judiciárias, explicou que o Governo quer propor a aprovação de legislação que outorgue mais competências às autoridades para a monitorização da Internet na pesquisa de atividades subversivas ou de comunicações entre células terroristas. Nestes termos, a Assembleia Nacional conhecerá todas as medidas que o Governo pretende implementar e que lhe proporá para apreciação e aprovação. Entre elas, inclui-se uma “generalização do regime de isolamento para os islamitas radicais sob detenção” e ações educativas nas escolas” como formas de luta preventiva contra o racismo e o antissemitismo.
Do seu lado, as autoridades prosseguem as investigações aos crimes ocorridos em Paris e as buscas pelos alegados cúmplices dos terroristas.
***
Demais, enquanto milhões de franceses saíam à rua e meia centena de chefes de Estado e de Governo desfilavam em Paris, o ministro do Interior reuniu alguns dos homólogos europeus e norte-americanos para encetar o debate sobre o nodo de enfrentar esta nova estirpe do terrorismo. Embora, como era de esperar, nada tivesse ficado decidido, foi enunciada uma lista de medidas que devem entrar na agenda de discussão europeia para as próximas semanas.
A primeira das medidas visa o reforço das fronteiras externas de Schengen, com a melhoria do sistema comum de informações. Outras referem-se à “partilha de informações” entre os serviços secretos europeus e os dos Estados Unidos. Trata-se de instrumentos já existentes mas que precisam de ser ampliados e melhorados. Por exemplo, o Registo dos Nomes dos Passageiros (PNR na sigla inglesa) nos voos entre a Europa e os Estados Unidos (e também austrália e Canadá), que já funciona há alguns anos, ainda não se aplica aos voos na Europa.
A questão mais delicada – a da possibilidade de repor as fronteiras internas dos países do Espaço Schengen – não consta das prioridades de Cazeneuve e seus pares. Entretanto, o ministro do Interior espanhol, em declarações ao El País, defende-a como necessária, embora sem uma justificação cabal, tal como o anterior presidente francês, Nicolas Sarkozy. Todavia, apesar de prevista no tratado, só pode funcionar com autorização de Bruxelas e por um período máximo de 15 dias.
***
Todo este cenário de perturbação e intenção de tomada de medidas retoma o debate sobre o equilíbrio entre as liberdades cívicas e a segurança nas democracias. Depois dos acontecimentos de 11 de setembro de 2001, a grande questão que se colocou foi saber até que ponto era necessário estabelecer o cerceamento de algumas das liberdades cívicas para garantir a segurança, preservando ao máximo a prerrogativa da liberdade. Também agora o impacto inicial de choque induz a valorização da segurança em consonância com o que esperam as opiniões públicas ocidentais. Foi o que aconteceu na Europa na sequência do sucedido em Nova Iorque, Madrid e Londres, com o reforço das leis antiterroristas, o aumento da segurança nos aeroportos, as câmaras de vídeo no Metro. A habituação normal a viver com estes incómodos não prejudicou, no essencial, as liberdades, que subsistiram razoavelmente.
Contudo, este equilíbrio entre liberdade e segurança (valores fundamentais em sintonia, já que não há liberdade sem segurança e segurança sem liberdade não compagina vida em dignidade: a vida precisa de respirar) pressupõe um outro debate sobre os preconceitos que muitas vezes estão subjacentes na sociedade. Um especialista francês em islamismo revelou que “há mais muçulmanos franceses a trabalhar nos serviços de segurança do que para a Al-Qaeda”. Assim, o estudioso insurge-se contra o facto de “todos” serem integrados na mesma suposta comunidade muçulmana, que afinal não existe. “Na França, não há uma comunidade muçulmana, há, sim, uma população muçulmana” – explica.
De igual modo, António Vitorino, que foi comissário europeu para os Assuntos Internos, lembra que há mais de cinco milhões de franceses de origem muçulmana em França que fazem a sua vidas normalmente, e um pouco mais de mil que se deixam seduzir pela jihad. Mesmo condenando as generalizações, que não são boas conselheiras, chama a atenção para este fenómeno novo (que já se tinha verificado nos atentados de Londres) que são os terroristas “homegrown” e que, por isso, levantam novas questões, novos problemas. Os terroristas de Paris nasceram na França, são franceses e utilizam as liberdades que essa situação lhes confere. Todavia, este desafio não exige mudanças no Tratado de Schengen. Bastará que o sistema que prevê a troca de informações de modo a vedar a entrada de suspeitos de atividade criminosa ou de terroristas funcione devidamente.

Enfim, a democracia, enquanto regime aberto e tolerante, implica riscos, que se podem minimizar, mas que não se podem eliminar sob pena de se anular a democracia.

Sem comentários:

Enviar um comentário