A Lei n.º 64/2011, de 22 de
dezembro, que dá nova redação à lei n.º 2/2004, de 15 de janeiro, estabelece,
no seu artigo 18.º, que os titulares dos cargos de direção superior são
recrutados, por procedimento concursal efetuado pela Comissão de Recrutamento e
Seleção para a Administração Pública (CRESAP), entidade independente, que
funciona junto do membro do Governo responsável pela área da Administração
Pública. E os artigos 19.º e 19.º-A definem os procedimentos a desenvolver no
âmbito do mesmo concurso.
Entretanto, a lei n.º 68/2013, de
29 de agosto, pelo seu artigo 5.º, dá nova redação ao n.º 6 do artigo 1.º da Lei
n.º 2/2004, de 15 de janeiro, com redação que lhe foi dada pela Lei n.º
64/2011, de 22 de dezembro, já referida, ficando assim a redação do mencionado
número 6:
“6
- Os titulares dos cargos de direção superior dos serviços e organismos do
Ministério da Justiça que devam ser providos por magistrados judiciais ou por
magistrados do Ministério Público são designados por despacho do membro do
Governo responsável pela área da justiça”.
Com base nesta alteração
legislativa, a Ministra da Justiça, por seu despacho, publicado em Diário da
República a 26 de dezembro de 2014, procedeu à nomeação do procurador Carlos
Sousa Mendes para secretário-geral do Ministério da Justiça, cargo deixado vago
por Maria Antónia Anes, em prisão preventiva no âmbito do caso dos vistos Gold.
No despacho, a entidade nomeante
faz referência expressa às alterações legais que, em agosto de 2013, vieram
isentar alguns magistrados de ir a concurso, como acontece com a maioria dos
dirigentes.
Porém, não é este o entendimento
da CRESAP, entidade criada em 2012, na sequência da publicação da Lei n.º
64/2011, de 22 de dezembro (e cujos membros foram designados pela Resolução n.º
18-A/2012, de 30 de abril, do Conselho e Ministros), para gerir os concursos
públicos e dar pareceres ao Governo sobre administradores de entidades do Estado,
como empresas e reguladores. Verifica-se, assim, que a alteração de 2013 ao
Estatuto do Pessoal Dirigente, que já na altura causou divisões no seio do Governo,
continua a ser fonte de dúvidas. Sustenta a CRESAP, contra a interpretação de Paula
Teixeira da Cruz, que para haver exceção era preciso que tal estivesse previsto
na lei orgânica do organismo em causa: a Secretaria-Geral do Ministério da
Justiça.
Será mais uma teimosia da
Ministra da Justiça ou um equívoco do presidente da referida comissão liderada
por João Abreu de Faria Bilhim?
Ora, o organismo em causa vem enquadrado
na lei orgânica do Ministério da Justiça, aprovada pelo Decreto-lei n.º 123/2011,
de 29 de dezembro, cujo artigo 8.º, no seu n.º 4, estabelece: A SG (Secretaria-Geral) é dirigida por um secretário-geral,
coadjuvado por um secretário-geral adjunto, cargos de direção superior de 1.º e
2.º graus, respetivamente. Não impõe, como se vê que o secretário-geral
seja um magistrado.
Sendo assim, observa-se o que
defende a CRESAP.
Não obstante, a Ministra da
Justiça poderia ter razão, se a redação dada ao n.º 6 do artigo alterado pela
lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, fosse similar da que foi dada ao n.º 7 do mesmo artigo. Assim, o teor do n.º 6 é: Os
titulares dos cargos de direção superior dos serviços e organismos do
Ministério da Justiça que devam ser
providos por magistrados judiciais ou por magistrados do Ministério Público
são designados por despacho do membro do Governo responsável pela área da
justiça.
Já o n.º 7 estabelece: O titular do cargo de direção superior de
1.º grau da Autoridade Nacional de Proteção Civil quando provido por oficial das
Forças Armadas ou das forças de segurança, assim como os titulares dos
cargos de direção superior dos serviços e organismos do Ministério da
Administração Interna quando, nos termos dos respetivos diplomas orgânicos ou
estatutários que expressamente o permitam, sejam
efetivamente providos por magistrados judiciais ou por magistrados do
Ministério Público, são designados por despacho do membro do Governo
responsável pela área da administração interna.
Foi o que aconteceu: a Ministra,
ou quem a suas vezes faz, leu somente o n.º 8 e não reparou (por distração, que
não má fé, birra ou espírito de contradição). Reza assim o n.º 8:
As
designações realizadas nos termos do n.º 6 e do número anterior (n.º 7) operam sem necessidade de recurso a procedimento concursal, em regime
de comissão de serviço, por um período de três anos, renovável por igual
período, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos
18.º e 19.º da presente lei.
Do meu ponto de vista, a imposição
de aplicar os artigos 18.º e 19.º da lei n.º 2/2004, de 15 de janeiro, com a redação
que lhe foi dada pela Lei n.º 64/2011, de 22 de dezembro, implica que o Governo
defina “o perfil, experiência profissional e competências de gestão exigíveis”
aos titulares (art.º 18.º/2) e que a CRESAP se pronuncie sobre o perfil deles,
designadamente quanto às “competências de liderança, colaboração, motivação,
orientação estratégica, orientação para resultados, orientação para o cidadão e
serviço público, gestão da mudança e inovação, sensibilidade social,
experiência profissional, formação académica e formação profissional” (art.º
18.º/4).
Implica, ainda, que seja observado
o estabelecido nos n.os 10 a 12 do art.º 19.º, a saber:
– O provimento nos cargos de direção superior produz efeitos à data do
despacho de designação, salvo se outra data for expressamente fixada (n.º
10).
– O despacho de designação, devidamente fundamentado, é publicado no Diário
da República, juntamente com uma nota relativa ao currículo académico e
profissional do designado (n.º 11).
– A designação dispensa a autorização do serviço ou órgão de origem do
designado (n.º 12).
Também não é crível que a
Ministra quisesse nomear o procurador em regime de substituição nos termos e
com as limitações do artigo 27.º, ou seja, como quem espera pela anterior titular
Maria Antónia Anes, que não é magistrada. Se assim fosse, o despacho teria que
o referir expressamente. Depois, ao que sabemos, a titular em causa apresentou
o seu pedido de demissão, que foi aceite pela Ministra.
***
Mas, se a senhora Ministra não tem
razão, também a CRESAP e o seu presidente a perdem, uma vez que, ao ser
questionada sobre o caso, se escudou na declaração de que “não tem poderes de
fiscalização das ações do Governo”. E fugiu à questão acrescentando o que todos
sabemos, que “compete a quem se julgar prejudicado reclamar junto do provedor de
Justiça ou colocar a questão no Tribunal Administrativo com fundamento em
nulidade”, chegando mesmo a adiantar que é à Inspeção-Geral de Finanças, herdeira
das competências de fiscalização da antiga inspeção da administração pública, que
compete proceder a um ato inspetivo quando tal situação seja de seu
conhecimento”.
Efetivamente, os atos do Governo e
da Administração são apreciados pela Assembleia da República no âmbito das
competências de fiscalização da mesma – alínea a) do art.º 162.º da CRP. Não creio
que uma inspeção-geral ouse meter-se nisso.
Por outro lado, o acesso à Justiça
é uma prerrogativa indiscutível do cidadão (art.º 20.º da CRP).
No entanto, embora o artigo 11.º
dos estatutos da CRESAP, que define as suas competências, nada refira expressamente
que induza a indisposição formal contra qualquer ato governamental, convém
referir que um ato governamental que, sem claro suporte legal, contrarie as
obrigações de investigação, isenção, ética e promoção das boas práticas de
política global e de gestão pública, merece posição pública e todo o repúdio da
tal comissão independente.
Se é para o Governo continuar a
ter mãos livres para nomeação de pessoal de confiança para cargos nevrálgicos das
Administração, não vale a pena criar mais comissões independentes e entidades
externas.
Demais, o presidente da CRESAP
garantiu publicamente, no início de mandato que, com ele não haveria outros critérios
que não os do profissionalismo e da competência.
Mas nós já sabemos o significado
de vocábulos como competência, independência e profissionalismo.
Todavia, poderemos aprender com o
exemplo do presidente demissionário do conselho científico do IAVE-IP.
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