Termina amanhã, dia 25 de janeiro
e festa da Conversão de São Paulo, o oitavário, ou melhor, semana de oração
pela unidade dos cristãos na procura do cumprimento do desígnio da oração de
Jesus, na noite de Quinta-feira Santa, cujo desejo fundamental em relação aos
discípulos se exprime naquela expressão joanina: Ut unum sint (Jo 17,21) – que todos sejam um só.
Creio que, demasiado cedo e por
muito tempo, os cristãos (discípulos) se dividiram, por vezes de modo bem
hostil, sobre a forma de entender teórica e praticamente a pessoa de Cristo, a
sua mensagem e os parâmetros de procedimento no caminho da salvação.
Tenho, nestes dias, ocupado algum
tempo na leitura do livro Lutero –
Palavra e Fé, do Padre Carreira das Neves (Editorial
Presença, 2014), que
nos assegura valer a pena regressar a Lutero, porque fazê-lo “é regressar a
Jesus Cristo, a São Paulo, aos Evangelhos, à história dos Padres da Igreja, à
Igreja como tal”. Mas o autor vai mais longe ao colocar a questão de se pode ou
não saber se Paulo, caso tivesse conhecido diretamente a pregação de Cristo ou
lido os quatro evangelhos (que foram escritos após a maior
parte dos escritos paulinos),
teria escrito tudo como escreveu. Questão semelhante coloca frente à feição da escrita
e pregação luteranas, se o monge agostinho efetivamente vivesse nos tempos do
Vaticano II.
Quanto à necessidade do êxito do
movimento ecuménico, o franciscano Carreira das Neves declara categoricamente,
estribado no discurso do Bom Pastor:
“Mas não há
dúvida de que este ‘ministério’ tem que começar pela ‘reconciliação’ entre
católicos, luteranos e evangélicos. Ou será que o ‘verdadeiro’ Jesus Cristo,
pastor de um só rebanho (cf Jo 10, 7-16), aceita, livremente, ser pastor de
muitos rebanhos? (…) Quantos ‘rebanhos’ não apareceram nestes três mil anos
depois de Jesus Cristo?
E, partindo da imagem da família,
una na sua matriz essencial e diversa nas opções e práticas, pergunta-se pela
validade da diversidade religiosa na referência ao único e mesmo Senhor Jesus
Cristo (ecumenismo) e até na referência ao único e
mesmo Deus, ainda que encarado por denominações e expressões conceptuais
diversas ou até disperso pela pluralidade de ícones (postura
dialogal inter-religiosa):
“E não consiste a
‘verdade’ na ‘diversidade’, a ‘família’ no ‘drama’ familiar sem unicidade? O
‘drama’ eclesial das muitas Igrejas cristãs (como judaicas, islâmicas, hindus e
budistas) é uma maior valia ou uma ‘traição’ ao Evangelho?”.
***
Embora
o movimento ecuménico remonte já a 1740, por iniciativa escocesa, tenha sido
estimulado pelo Papa Leão XIII em 1894 e a sua influência tenha marcado o
pontificado de João XXIII e o Vaticano II, é a partir de 1968 que se estabelece
o uso do material da Semana de Oração preparado em conjunto pela Comissão Fé e Ordem,
do Conselho Mundial das Igrejas, e pelo Secretariado para a Promoção da Unidade
dos Cristãos (hoje conhecido como Pontifício Conselho
para a Promoção da Unidade dos Cristãos), da Cúria Romana, com um tema específico para cada ano. Por
outro lado, pretende-se que, embora o Oitavário ou, como se diz agora, a Semana
de Oração pela Unidade dos Cristãos, tenha lugar entre os dias 18 e 25 de
janeiro, nos países do Hemisfério Norte, é desejável que o seu espírito,
meditação e dinamismo se estendam ao ano todo.
Para este ano de
2015, os textos bíblicos e de reflexão, bem como o itinerário celebrativo para
cada um dos dias, subordinam-se ao segmento joanino “Jesus disse-lhe: Dá-me de beber!” (Jo 4,7). É um trabalho preparado e publicado
em conjunto sob a égide do Pontifício Conselho
para a Promoção da Unidade dos Cristãos e pela Comissão Fé e Constituição do
Conselho Mundial de Igrejas, mas com base na reflexão feita pelas estruturas
ecuménicas do Brasil sobre o contexto eclesial e religioso neste país. E o
texto evangélico que ilumina tal reflexão é o que relata o episódio do encontro
de Jesus com a samaritana, em que o Mestre peregrino aproveitou a sua situação
de cansaço humano para solicitar a partilha da água a uma estrangeira, mas que
vivia da mesma tradição patriarcal, religiosa e societária, mas insere no
contexto desta condição humana a revelação se Si mesmo como o Messias para
todos, a apologia do culto em espírito e verdade, prestado em qualquer tempo e
lugar.
A este respeito, o
texto de introdução ao tema geral destas jornadas de celebração ecuménica
esclarece que “o encontro entre Jesus e a mulher samaritana nos convida a experimentar água
de um poço diferente e também a oferecer um pouco da nossa própria água”. Reconhecendo
o valor enriquecedor da diversidade, os promotores elegem “a Semana de Oração
pela Unidade dos Cristãos” como “um momento privilegiado para oração, encontro
e diálogo”, ou “uma oportunidade para reconhecer a riqueza e o valor que estão
presentes no outro, no diferente, e para pedir a Deus o dom da unidade”.
Citando o provérbio brasileiro “quem bebe desta água sempre volta” – utilizado
quando uma pessoa que nos visita vai embora e aplicável à fonte pública de
determinadas terras de Portugal – os autores do texto asseguram que “um copo
refrescante de água, chimarrão, tereré são sinais de acolhimento, diálogo
e convivência”. Por isso, entendem que “o gesto bíblico de oferecer água a quem
chega (Mt 10,42), como forma de acolhimento e partilha, é algo que se repete em todas as
regiões do Brasil”.
Assim, o guião da celebração da Semana da
Unidade, o seu estudo e a meditação proposta neste “têm o objetivo de ajudar as
pessoas e comunidades a perceber a dimensão dialogal do projeto de Jesus, a que
chamamos de Reino de Deus”, na assunção da “importância de uma pessoa conhecer
e compreender a sua própria identidade para que a identidade do outro não seja
vista como uma ameaça”. E o arrazoado torna-se mais explícito e eloquente
quando afiança:
“Se não nos sentimos
ameaçados, estaremos capacitados para experimentar o outro como algo
complementar: sozinha, uma pessoa ou uma cultura não se basta! Por isso,
a imagem que emerge das palavras “dá-me de beber” é algo que nos fala de
complementaridade: beber água do poço de alguém é o primeiro passo para
experimentar o modo de ser do outro. Isso leva a uma partilha de dons que nos
enriquece. Quando os dons do outro são recusados, há prejuízo para a sociedade
e para a Igreja”.
Fazendo referência clara ao aludido texto
bíblico, vêm estabelecidos os parâmetros da sã postura de diálogo.
Desde logo, o reconhecimento da situação pessoal e de necessidade: “Jesus é um
estrangeiro que chega cansado e com sede. Ele precisa de ajuda e pede água”. É a
expressão da situação de pobreza.
Depois, o reconhecimento da condição e necessidades do interlocutor: “A
mulher está na sua própria terra; o poço pertence a seu povo, à sua tradição.
Ela é dona do balde e é ela que tem acesso à água. Mas ela também está com sede”.
É a expressão da situação de pobreza do outro e da sua capacidade de dar.
Simultaneamente, o reconhecimento da oportunidade e vantagem do encontro, sem que se
perca a identidade, apesar da troca de gestos dialogais: “Eles encontram-se e
esse encontro oferece uma inesperada oportunidade para ambos. Jesus não deixa
de ser judeu porque bebeu água oferecida por uma mulher samaritana. A
samaritana permanece sendo ela mesma ao acolher o caminho de Jesus. Quando
reconhecemos que temos necessidades recíprocas, a complementaridade acontece em
nossas vidas de modo mais enriquecedor”.
Mas não posso deixar de registar as
implicações daquele pedido “Dá-me de beber”. Esse pedido tão necessário como
natural impele-nos a reconhecer que pessoas, comunidades, culturas, religiões e
etnias precisam umas das outras; pressupõe que, tal como “Jesus e a Samaritana
se perguntam mutuamente sobre aquilo de que têm necessidade”, também nós hoje
temos a necessidade e o dever de proceder de modo similar entre nós; “leva-nos
a reconhecer que as pessoas e as populações na sua diversidade, as comunidades,
as culturas e as religiões têm necessidade uns dos outros”; “traz consigo uma
ação ética que reconhece a necessidade que temos uns dos outros na vivência da
missão da Igreja; “impele a mudar nossa atitude, a nos comprometer com a busca
da unidade no meio de nossa diversidade, através de nossa abertura para uma
variedade de formas de oração e espiritualidade cristã”.
***
Estes dias serviram e servem de ocasião de
encontro e de oração e talvez configurem mais um passo em prol da união, sem
renunciar à diversidade, que, por mais problemática que se apresente, não deixa
de ser enriquecedora.
Por seu turno, o Papa, que amanhã vai
presidir à oração de Vésperas na Basílica de São Paulo “extra muros”, num ambiente
ecuménico, recebeu hoje, 24 de janeiro no
Vaticano os 250 participantes no encontro do Pontifício Instituto de Estudos
Árabes e de Islamítica, na perspetiva do diálogo inter-religioso. Referiu
que nos últimos anos, apesar de mal-entendidos e dificuldades, foram dados
passos no diálogo inter-religioso, também com os fiéis do Islão. Segundo as
suas palavras, “é essencial o exercício da escuta” e não é apenas uma condição
necessária num processo de recíproca compreensão e de coexistência pacífica,
mas um dever pedagógico, a fim de sermos “capazes de reconhecer os valores dos
outros, de compreender as preocupações subjacentes aos seus pedidos e de fazer
emergir as convicções comuns”.
Também neste mesmo
dia recebeu os participantes do colóquio ecuménico de religiosos e religiosas e
salientou ou a importância das comunidades ecuménicas. Além disso, afirmou que
era particularmente significativo que o encontro tenha ocorrido durante a
Semana de Oração para a unidade dos cristãos e destacou a ação das comunidades
ecuménicas de Taizé e de Bose, presentes no colóquio.
Respigando segmentos textuais do n.º 5 do Decreto
conciliar “Unitatis redintegratio”,
sobre o ecumenismo, sublinhou que “a vontade de reestabelecer a unidade
de todos os cristãos está presente, naturalmente, em todas as Igrejas e
diz respeito ao clero e aos leigos”.
No fim do seu discurso, encareceu a importância e
os frutos ou benefícios da unidade dos cristãos e mais uma vez evocou a ação do
Espírito Santo nesse processo. E formulou um voto:
“Que se recordem todos os fiéis de que,
quanto melhor promoverem ou ainda quanto melhor viverem a prática da unidade
dos cristãos, tanto mais procurarão conduzir uma vida conforme ao Evangelho.”
***
Oxalá se aplanem cada vez mais os caminhos
rumo à concretização da unidade em torno do único Senhor.
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