sábado, 24 de janeiro de 2015

Ut unum sint!

Termina amanhã, dia 25 de janeiro e festa da Conversão de São Paulo, o oitavário, ou melhor, semana de oração pela unidade dos cristãos na procura do cumprimento do desígnio da oração de Jesus, na noite de Quinta-feira Santa, cujo desejo fundamental em relação aos discípulos se exprime naquela expressão joanina: Ut unum sint (Jo 17,21) – que todos sejam um só.
Creio que, demasiado cedo e por muito tempo, os cristãos (discípulos) se dividiram, por vezes de modo bem hostil, sobre a forma de entender teórica e praticamente a pessoa de Cristo, a sua mensagem e os parâmetros de procedimento no caminho da salvação.
Tenho, nestes dias, ocupado algum tempo na leitura do livro Lutero – Palavra e Fé, do Padre Carreira das Neves (Editorial Presença, 2014), que nos assegura valer a pena regressar a Lutero, porque fazê-lo “é regressar a Jesus Cristo, a São Paulo, aos Evangelhos, à história dos Padres da Igreja, à Igreja como tal”. Mas o autor vai mais longe ao colocar a questão de se pode ou não saber se Paulo, caso tivesse conhecido diretamente a pregação de Cristo ou lido os quatro evangelhos (que foram escritos após a maior parte dos escritos paulinos), teria escrito tudo como escreveu. Questão semelhante coloca frente à feição da escrita e pregação luteranas, se o monge agostinho efetivamente vivesse nos tempos do Vaticano II.
Quanto à necessidade do êxito do movimento ecuménico, o franciscano Carreira das Neves declara categoricamente, estribado no discurso do Bom Pastor:
“Mas não há dúvida de que este ‘ministério’ tem que começar pela ‘reconciliação’ entre católicos, luteranos e evangélicos. Ou será que o ‘verdadeiro’ Jesus Cristo, pastor de um só rebanho (cf Jo 10, 7-16), aceita, livremente, ser pastor de muitos rebanhos? (…) Quantos ‘rebanhos’ não apareceram nestes três mil anos depois de Jesus Cristo?

E, partindo da imagem da família, una na sua matriz essencial e diversa nas opções e práticas, pergunta-se pela validade da diversidade religiosa na referência ao único e mesmo Senhor Jesus Cristo (ecumenismo) e até na referência ao único e mesmo Deus, ainda que encarado por denominações e expressões conceptuais diversas ou até disperso pela pluralidade de ícones (postura dialogal inter-religiosa):
“E não consiste a ‘verdade’ na ‘diversidade’, a ‘família’ no ‘drama’ familiar sem unicidade? O ‘drama’ eclesial das muitas Igrejas cristãs (como judaicas, islâmicas, hindus e budistas) é uma maior valia ou uma ‘traição’ ao Evangelho?”.
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Embora o movimento ecuménico remonte já a 1740, por iniciativa escocesa, tenha sido estimulado pelo Papa Leão XIII em 1894 e a sua influência tenha marcado o pontificado de João XXIII e o Vaticano II, é a partir de 1968 que se estabelece o uso do material da Semana de Oração preparado em conjunto pela Comissão Fé e Ordem, do Conselho Mundial das Igrejas, e pelo Secretariado para a Promoção da Unidade dos Cristãos (hoje conhecido como Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos), da Cúria Romana, com um tema específico para cada ano. Por outro lado, pretende-se que, embora o Oitavário ou, como se diz agora, a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, tenha lugar entre os dias 18 e 25 de janeiro, nos países do Hemisfério Norte, é desejável que o seu espírito, meditação e dinamismo se estendam ao ano todo.
Para este ano de 2015, os textos bíblicos e de reflexão, bem como o itinerário celebrativo para cada um dos dias, subordinam-se ao segmento joanino Jesus disse-lhe: Dá-me de beber!” (Jo 4,7). É um trabalho preparado e publicado em conjunto sob a égide do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos e pela Comissão Fé e Constituição do Conselho Mundial de Igrejas, mas com base na reflexão feita pelas estruturas ecuménicas do Brasil sobre o contexto eclesial e religioso neste país. E o texto evangélico que ilumina tal reflexão é o que relata o episódio do encontro de Jesus com a samaritana, em que o Mestre peregrino aproveitou a sua situação de cansaço humano para solicitar a partilha da água a uma estrangeira, mas que vivia da mesma tradição patriarcal, religiosa e societária, mas insere no contexto desta condição humana a revelação se Si mesmo como o Messias para todos, a apologia do culto em espírito e verdade, prestado em qualquer tempo e lugar.
A este respeito, o texto de introdução ao tema geral destas jornadas de celebração ecuménica esclarece que “o encontro entre Jesus e a mulher samaritana nos convida a experimentar água de um poço diferente e também a oferecer um pouco da nossa própria água”. Reconhecendo o valor enriquecedor da diversidade, os promotores elegem “a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos” como “um momento privilegiado para oração, encontro e diálogo”, ou “uma oportunidade para reconhecer a riqueza e o valor que estão presentes no outro, no diferente, e para pedir a Deus o dom da unidade”.
Citando o provérbio brasileiro “quem bebe desta água sempre volta” – utilizado quando uma pessoa que nos visita vai embora e aplicável à fonte pública de determinadas terras de Portugal – os autores do texto asseguram que “um copo refrescante de água, chimarrão, tereré são sinais de acolhimento, diálogo e convivência”. Por isso, entendem que “o gesto bíblico de oferecer água a quem chega (Mt 10,42), como forma de acolhimento e partilha, é algo que se repete em todas as regiões do Brasil”.
Assim, o guião da celebração da Semana da Unidade, o seu estudo e a meditação proposta neste “têm o objetivo de ajudar as pessoas e comunidades a perceber a dimensão dialogal do projeto de Jesus, a que chamamos de Reino de Deus”, na assunção da “importância de uma pessoa conhecer e compreender a sua própria identidade para que a identidade do outro não seja vista como uma ameaça”. E o arrazoado torna-se mais explícito e eloquente quando afiança:
“Se não nos sentimos ameaçados, estaremos capacitados para experimentar o outro como algo complementar: sozinha, uma pessoa ou uma cultura não se basta! Por isso, a  imagem que emerge das palavras “dá-me de beber” é algo que nos fala de complementaridade: beber água do poço de alguém é o primeiro passo para experimentar o modo de ser do outro. Isso leva a uma partilha de dons que nos enriquece. Quando os dons do outro são recusados, há prejuízo para a sociedade e para a Igreja”.

Fazendo referência clara ao aludido texto bíblico, vêm estabelecidos os parâmetros da sã postura de diálogo.
Desde logo, o reconhecimento da situação pessoal e de necessidade: “Jesus é um estrangeiro que chega cansado e com sede. Ele precisa de ajuda e pede água”. É a expressão da situação de pobreza.
Depois, o reconhecimento da condição e necessidades do interlocutor: “A mulher está na sua própria terra; o poço pertence a seu povo, à sua tradição. Ela é dona do balde e é ela que tem acesso à água. Mas ela também está com sede”. É a expressão da situação de pobreza do outro e da sua capacidade de dar.
Simultaneamente, o reconhecimento da oportunidade e vantagem do encontro, sem que se perca a identidade, apesar da troca de gestos dialogais: “Eles encontram-se e esse encontro oferece uma inesperada oportunidade para ambos. Jesus não deixa de ser judeu porque bebeu água oferecida por uma mulher samaritana. A samaritana permanece sendo ela mesma ao acolher o caminho de Jesus. Quando reconhecemos que temos necessidades recíprocas, a complementaridade acontece em nossas vidas de modo mais enriquecedor”.
Mas não posso deixar de registar as implicações daquele pedido “Dá-me de beber”. Esse pedido tão necessário como natural impele-nos a reconhecer que pessoas, comunidades, culturas, religiões e etnias precisam umas das outras; pressupõe que, tal como “Jesus e a Samaritana se perguntam mutuamente sobre aquilo de que têm necessidade”, também nós hoje temos a necessidade e o dever de proceder de modo similar entre nós; “leva-nos a reconhecer que as pessoas e as populações na sua diversidade, as comunidades, as culturas e as religiões têm necessidade uns dos outros”; “traz consigo uma ação ética que reconhece a necessidade que temos uns dos outros na vivência da missão da Igreja; “impele a mudar nossa atitude, a nos comprometer com a busca da unidade no meio de nossa diversidade, através de nossa abertura para uma variedade de formas de oração e espiritualidade cristã”.
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Estes dias serviram e servem de ocasião de encontro e de oração e talvez configurem mais um passo em prol da união, sem renunciar à diversidade, que, por mais problemática que se apresente, não deixa de ser enriquecedora.
Por seu turno, o Papa, que amanhã vai presidir à oração de Vésperas na Basílica de São Paulo “extra muros”, num ambiente ecuménico, recebeu hoje, 24 de janeiro no Vaticano os 250 participantes no encontro do Pontifício Instituto de Estudos Árabes e de Islamítica, na perspetiva do diálogo inter-religioso. Referiu que nos últimos anos, apesar de mal-entendidos e dificuldades, foram dados passos no diálogo inter-religioso, também com os fiéis do Islão. Segundo as suas palavras, “é essencial o exercício da escuta” e não é apenas uma condição necessária num processo de recíproca compreensão e de coexistência pacífica, mas um dever pedagógico, a fim de sermos “capazes de reconhecer os valores dos outros, de compreender as preocupações subjacentes aos seus pedidos e de fazer emergir as convicções comuns”.
Também neste mesmo dia recebeu os participantes do colóquio ecuménico de religiosos e religiosas e salientou ou a importância das comunidades ecuménicas. Além disso, afirmou que era particularmente significativo que o encontro tenha ocorrido durante a Semana de Oração para a unidade dos cristãos e destacou a ação das comunidades ecuménicas de Taizé e de Bose, presentes no colóquio.
Respigando segmentos textuais do n.º 5 do Decreto conciliar “Unitatis redintegratio”, sobre o ecumenismo,  sublinhou que “a vontade de reestabelecer a unidade de todos os cristãos está presente, naturalmente, em todas as Igrejas  e diz respeito ao clero e aos leigos”.
No fim do seu discurso, encareceu a importância e os frutos ou benefícios da unidade dos cristãos e mais uma vez evocou a ação do Espírito Santo nesse processo. E formulou um voto:
“Que se recordem todos os fiéis de que, quanto melhor promoverem ou ainda quanto melhor viverem a prática da unidade dos cristãos, tanto mais procurarão conduzir uma vida conforme ao Evangelho.”
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Oxalá se aplanem cada vez mais os caminhos rumo à concretização da unidade em torno do único Senhor.

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