A França foi sacudida, nestes
dias, pela violência armada mercê do fanatismo religioso sobre alegados excessos
da liberdade de expressão. Com efeito, o semanário humorístico parisiense “Charlie Hebdo” foi assaltado por dois suspeitos
marcados pelo radicalismo islâmico e que, além de vários feridos, alguns dos
quais ficaram em estado grave, fizeram uma dúzia de vítimas mortais. Durante a
intervenção violenta, foi ouvido o brado de vingança do profeta.
Os suspeitos puseram-se em fuga e toda a
região parisiense e a Picardia, no nordeste, viveu horas dramáticas de
insegurança com réplicas, em pelo menos mais dois lugares, da iniciativa destes
suspeitos e de outros mais, não obstante o empenho ativo da imensa força policial.
Tudo parece hoje ter acabado de forma adequada à gravidade do momento.
A França uniu-se na condenação do
epifenómeno, no que foi e é acompanhada pelos responsáveis dos Estados que no mundo
desfrutam de maior visibilidade ou os que se sentem mais próximos daquele grande
país. Vigílias, manifestações, artigos de opinião e mesmo expressões artísticas
ligadas ao humorismo e à sátira se multiplicam um pouco por toda a Europa,
fazendo disto legítimo e plausível alarido as redes sociais.
Por outro lado, enquanto formações
partidárias radicais aproveitaram a oportunidade para incrementarem a auto-organização
e sugerir medidas drásticas, incluindo a restauração da pena de morte, mas
sobretudo pela proibição da imigração e pelo levantamento do acordo de Schengen.
Por seu turno, os principais chefes do muçulmanismo moderado, dito o autêntico,
declaram a sua demarcação dos factos ocorridos, assegurando que estes comportamentos
constituem um grave desvio do verdadeiro islão, fruto do fundamentalismo de
grupos extremistas. No entanto, alguns dos líderes da revolução islâmica vieram
assumir a índole necessária e heroica dos atos perpetrados, garantindo que a
Europa não estará em segurança enquanto persistir a afronta a Alá, ao profeta e
àqueles que o seguem.
Da parte das religiões também não se
fizeram esperar as reações. Assim, o presidente do Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-religioso
(da Santa Sé) e quatro imãs franceses – “chocados” com a violência que provocou
12 mortes, entre jornalistas e políticas, e dezenas de feridos – lançaram uma
declaração conjunta em que condenam a violência fundamentalista, após o
atentado de Paris contra o “Charlie Hebdo”.
“Convidamos
os crentes a manifestar a sua solidariedade humana e espiritual, pela amizade e
a sua oração, a todas as vítimas e às suas famílias”, assinala o texto da
declaração assinado pelo cardeal francês D. Jean Louis-Tauran e a delegação
inter-religiosa gaulesa, com representantes católicos e muçulmanos. “Sem a
liberdade de expressão, o mundo está em perigo”, pelo que os responsáveis de
todas as religiões são chamados a “promover cada vez mais uma cultura de paz e
de esperança, capaz de vencer o medo e de construir pontes entre os homens”.
Apesar de tudo, a declaração conjunta recorda ainda
a responsabilidade dos media e, nesse sentido, desafia os jornalistas a
“oferecerem uma informação que respeite as religiões, os seus crentes e as suas
práticas, favorecendo assim uma cultura do encontro”.
Em França, representantes das várias comunidades
religiosas manifestaram a sua condenação pelo atentado à redação do semanário
‘Charlie Hebdo’, ao serem recebidos no Eliseu pelo presidente gaulês, tendo o pastor
François Clavairoly, presidente da Federação protestante da França, lido um
comunicado em nome de todos, no qual os representantes religiosos se associam
ao sentimento de “revolta” moral diante “deste ato atroz” que “não pode ter
justificação em religião alguma”.
***
Perante os factos, oferecia-se-me a oportunidade de
uma reflexão que se demarcasse de um certo gregarismo, como parece estar a
suceder em grande parte.
Começo por dizer que nada, nem em termos
religiosos nem em termos políticos, justifica, explica ou permite aceitar um
episódio de violência, sobretudo junto de quem trabalha na azáfama normal da atividade
profissional enquanto modo de ganhar a vida. Demais, os Estados dispõem de sistemas
de polícia e de justiça capazes de obviar aos atropelos ao exercício das liberdades.
Por isso e porque a violência nada resolve, antes gera mais violência que pode
tornar-se em espiral interminável, nunca se justifica a ação violenta. Portanto,
os atos praticados merecem a mais viva repulsa e condenação.
No atinente às liberdades, não parece sensato (embora
a oportunidade o pareça sugerir e recomendar) sobrepor a liberdade de expressão
por qualquer meio às outras liberdades. Neste aspeto, as tomadas de posição e
as declarações públicas, em geral, induzem à sacralização da liberdade de criação
e de expressão, mesmo com a obnubilação de outras liberdades, no caso, a
liberdade religiosa. Tanto o artigo 19.º da declaração universal dos direitos
do homem como o artigo 37.º da nossa Constituição consagram a liberdade de opinião
e de expressão. Porém, também tanto o artigo 18.º da referida declaração
universal como o artigo 41.º da nossa Constituição consagram a liberdade religiosa.
Há que esclarecer que nenhuma delas é definida
como direito absoluto – contra tudo e contra todos. Por isso, em caso de conflito
de direitos fundamentais, se a lei não for suficiente para o dirimir, o único meio
disponível é o diálogo conducente ao bom senso, às plataformas de entendimento.
E, se tal não der resultado, os Estados dispõem da mediação judiciária.
Nem vale dizer que aqueles documentos consignam, com
a liberdade de expressão, a possibilidade da difusão de pensamento por quaisquer
meios. É certo, mas não o legitimam se for por qualquer modo.
Demais, a liberdade religiosa também conhece constitucionalmente
vários e inestimáveis aspetos, a que nem sempre se dá a devida atenção.
Depois, se não é lícito a ninguém impor a uma
comunidade uma religião, uma religiofilia, também não é legítimo que alguém,
sabendo que ofende, pratique atos de blasfémia, insulto ou ultraje contra móbeis
de índole religiosa, sentindo-se imune e impune. A postura intercultural e o
diálogo intercivilizacional postulam a tolerância e constituem o espaço que
gera a fraternidade.
E as religiões prestam um relevante contributo.
Tauran e os quatro imãs franceses, mencionados supra, referem que “o diálogo inter-religioso continua a ser o
único caminho a percorrer em conjunto para dissipar os preconceitos”. E o cardeal
Pirolin, Secretário de Estado da Santa Sé, falando da preparação da viagem do
papa Francisco ao Sri Lanka e Filipinas, entre os dias 13 e 19 deste mês, diz que
ela visa a promoção do diálogo entre as religiões, fundamental para a paz no
mundo”. Porém, advertiu que “infelizmente, ultimamente, surgiram grupos
extremistas que em certa medida manipulam a opinião pública e criam tensão
utilizando a religião para fins que não são claros”. Por isso, faz votos para
que “a tradição que existe de diálogo inter-religioso e de colaboração possa
prevalecer”.
***
Não quero terminar este arrazoado sem me questionar
porque é que as comunidades muçulmanas têm dado azo à islamofobia que se
desenha cada vez mais no seio dos países ocidentais. Será mesmo verdade que os
atos que vimos lamentando são meramente epidérmicos ou isolados e constituem desvio
grosseiro do verdadeiro islão? Não se terão os Estados muçulmanos afirmado
demasiado na porfia teocêntrica e teocrática, ao arrepio do laicismo que a pós-modernidade
quase impõe?
Por seu turno, a Europa terá cuidado sempre da
correta integração das comunidades que aceita viverem dentro das suas
fronteiras. Não terá caminhado no sentido de uma excessiva laicização (já não
digo dos Estados) das sociedades, impondo os seus modelos culturais e não
tolerando determinadas práticas próprias das comunidades que, apesar de tudo, se
sentem “estrangeiras” dentro da Europa e cada vez mais atraídas para a idiossincrasia
originária?
Mais: Não será a incapacidade da Europa (que
teima em impor esquemas rígido de política e economia ao sabor dos interesses
poderosos) de resolver os problemas sociais e económicos de uma grande fatia da população
ativa a causa de uma inexplicável atração dos jovens pela aventura da
radicalidade islâmica?
Duas atitudes são condenáveis e ineficazes: a
inevitabilidade de passarmos a uma situação de permanente insegurança; e a
postura de quem se autoilude na convicção de que os nossos sistemas de
segurança são eficazes, remetendo para a prateleira dos casos isolados ou para
o fundamentalismo dos outros o que vem sendo sentido um pouco por toda a parte.
Agora dói mais porque é aqui ao lado, não?!
A liberdade é a melhor e mais aprazível
prerrogativa do homem … quando é respeitada e respeitadora!
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