Passa hoje, dia 1.º de janeiro de 2015, a celebração do XLVIII Dia
Mundial da Paz sob o tema “Já não escravos, mas irmãos”, na sequência do anterior (2014) cujo
ponto de reflexão era “Fraternidade,
fundamento e caminho para a paz”. Com a celebração da efeméride, o Papa
Francisco honra a memória e iniciativa exemplar dos antecessores, mormente Paulo
VI, que a instituiu a 8 de dezembro de 1967, para ser celebrada, pela primeira
vez, a 1 de janeiro de 1968.
Na sua
primeira mensagem para o I Dia Mundial
da Paz, o Papa Montini declarava: “A Paz
funda-se subjetivamente num espírito novo que há de animar a convivência dos
povos, num novo modo de pensar o homem, os seus deveres e o seu destino”.
Por
seu turno, o Papa Bergoglio inscreve nesse “espírito novo” a noção da
fraternidade, da fraternidade universal, que uma sociedade laica quis arrebatar
para tornar sua e instituir o dia 1.º de janeiro justamente como o “dia da
fraternidade universal”, quando os cristãos já se tinham habituado, embora com
grave eclipsamento, a designar Francisco de Assis como “o irmão universal” no
seguimento de Cristo pobre, obediente e casto, que a todos tornou irmãos e com
quem tem sentido a filiação universal do Pai comum, o Deus de toda a
consolação, de quem deriva toda a paternidade e cujo Espírito nos faz clamar “Pai
Nosso que estais nos Céus”.
Ora,
o Papa argentino não pretende desalojar das rotas da fraternidade os seus
arautos do iluminismo e movimentos culturais subsequentes, mas reafirmar a sua
dimensão cristã e aprimorar o sentido da fraternidade e suas exigências, pois,
se os homens são efetivamente irmãos, outras práticas têm de resultar na
convivência humana.
***
Assim,
Francisco começa, na sua mensagem, por exprimir os votos de “que cessem as guerras,
os conflitos e os inúmeros sofrimentos provocados quer pela mão do homem quer
por velhas e novas epidemias e pelos efeitos devastadores das calamidades
naturais”, bem como deseja que, “respondendo à nossa vocação comum de colaborar
com Deus e com todas as pessoas de boa vontade para a promoção da concórdia e
da paz no mundo, saibamos resistir à tentação de nos comportarmos de forma não
digna da nossa humanidade”.
Aqui
fica uma leitura sintética na ótica deste esquisito escrevente, abaixo
assinado.
À
primeira vista, parece que o tema deste ano é excrescente porquanto a
escravatura já terá sido banida dos documentos que regulam as relações
interpessoais e entre grupos e entre povos. No entanto, novas formas de
escravidão (embora não institucionalizadas nem reconhecidas) se estabeleceram e
alastram pelo mundo a tolher a fraternidade e a transformar os irmãos em rivais
e inimigos. Infelizmente, o flagelo generalizado da exploração do homem pelo
homem – lamenta o Papa – fere gravemente a vida de comunhão e a vocação a tecer
as relações interpessoais no respeito, justiça e caridade. Tal fenómeno
abominável, que leva a espezinhar os direitos fundamentais do outro e a
aniquilar a sua liberdade e dignidade, assume múltiplas formas, que é preciso meditar
para que, à luz da Palavra de Deus, possamos considerar todos os homens, “já
não escravos, mas irmãos”.
A doutrina
Citando
o caso de Paulo, que fez do escravo Onésimo um irmão por força do discipulado
de Cristo e sua inserção no devir cristão, conclui que o cristianismo gera
profunda fraternidade que se torna “vínculo fundante da vida familiar e
alicerce da vida social”. Por outro lado, de acordo com o projeto de Deus sobre
o homem, menciona o facto de Caim e Abel, filhos de Adão e Eva, serem frutos do
mesmo ventre e, por consequência, irmãos. Têm assim “a mesma origem, natureza e
dignidade de seus pais, criados à imagem e semelhança de Deus”. Porém, “apesar
de os irmãos estarem ligados por nascimento e possuírem a mesma natureza e a
mesma dignidade, a fraternidade
exprime também a multiplicidade e a diferença” que existem entre si. Nestes
termos, “todas as pessoas estão, por natureza, relacionadas umas com as outras,
cada qual com a própria especificidade e todas partilhando a mesma origem,
natureza e dignidade”. Por isso, “a fraternidade constitui a rede de relações
fundamentais para a construção da família humana”.
Não
obstante, por força do pecado, a multiplicidade das relações decorrente da
fraternidade sentiu-se minada pela inveja, patente em Caim que matou o irmão
Abel (cf Gn
4,1-16), pela
falta de respeito, presente na atitude de Cam para com o pai Noé (cf Gn 9,18-27) e pela cultura da
servidão (cf Gn 9,25-27), com as consequências daí resultantes – “rejeição
do outro, maus-tratos às pessoas, violação da dignidade e dos direitos
fundamentais, institucionalização de desigualdades – que galgaram pelos séculos
dos séculos.
Impunha-se,
por isso, a conversão contínua à Aliança levada à perfeição pela oblação de
Cristo na cruz, com a confiança de que, “onde abundou o pecado, superabundou a
graça (…) por Jesus Cristo” (Rm 5,20.21). No entanto, os homens não são obrigados à conversão em filhos explícitos
do Pai e irmãos em Cristo. Ser filho de Deus – ensina o Bispo de Roma – requer que
primeiro se abrace o imperativo da conversão: “Convertei-vos, dizia Pedro no
dia de Pentecostes, e peça cada um o batismo em nome de Jesus Cristo, para a
remissão dos seus pecados; recebereis, então, o dom do Espírito Santo” (At 2,38). E todos aqueles que responderam à pregação petrina, pela fé e
pela vida, ingressaram na fraternidade da primeva comunidade cristã (cf 1Pe 2,17; At 1,13.16;
6,3;15,23), em
que a “diversidade de origem e estado social não diminui a dignidade de cada um
nem exclui ninguém do povo de Deus”.
Os factos
alarmantes
Em contraste com esta
doutrina, “desde
tempos imemoriais, as diferentes sociedades humanas conhecem o fenómeno da
sujeição do homem pelo homem”, concretizada, institucionalmente e por muitos
séculos, na escravatura histórica. Porém, “na sequência duma evolução positiva
da consciência da humanidade”, a escravatura foi formalmente abolida no mundo
“de modo inderrogável”. Todavia, “ainda hoje milhões de pessoas – crianças,
homens e mulheres de todas as idades – são privadas da liberdade e
constrangidas a viver em condições semelhantes às da escravatura”: “tantos trabalhadores e trabalhadoras,
mesmo menores, escravizados nos mais diversos setores” (…), desde o
trabalho doméstico à agricultura, da indústria manufatureira à mineração, tanto
em países onde a legislação laboral “não está conforme às normas e padrões
mínimos internacionais”, como “naqueles cuja legislação protege o trabalhador”;
muitos migrantes “que
padecem a fome, a privação da liberdade, são despojados dos seus bens ou
abusados física e sexualmente”; os que, “chegados ao destino depois de viagem
duríssima e dominada pelo medo e insegurança, ficam detidos em condições
desumanas”; os que “diversas circunstâncias sociais, políticas e económicas
impelem a passar à clandestinidade”; e os que aceitam viver e trabalhar em condições
indignas, sobretudo quando “as legislações nacionais criam ou permitem uma
dependência estrutural do trabalhador migrante em relação ao dador de trabalho”.
Este é o “trabalho escravo” disfarçado pela hipocrisia social e política.
Mais:
há pessoas obrigadas a
prostituírem-se, entre as quais se contam muitos menores, e escravas e
escravos sexuais; mulheres forçadas a casar-se, quer por venda para
casamento quer por serem deixadas em sucessão a um familiar por morte do marido;
menores e adultos, que são objeto de miserável
tráfico e comercialização para remoção de órgãos, para serem recrutados como soldados, para servirem de pedintes, para atividades
ilegais como a produção ou
venda de drogas, ou para formas disfarçadas de adoção internacional;
e os que raptados e mantidos em cativeiro por grupos
terroristas, servindo-lhes os objetivos como combatentes ou, em especial, no
atinente às meninas e mulheres, feitas escravas sexuais. “Muitos deles
desaparecem, alguns são vendidos várias vezes, torturados, mutilados ou mortos”
– verifica amargamente o Pontífice.
Algumas causas da escravatura hodierna
Está,
como causa ontológica, na raiz da escravatura a conceção coisificadora do homem.
A corrupção do coração humano afasta-o do Criador e dos seus semelhantes,
deixando estes de ser sentidos como seres de igual dignidade, como irmãos, passando
a ser vistos como objetos. À força, engano, coação física e psicológica, “a
pessoa humana – criada à imagem e semelhança de Deus – é privada da liberdade,
mercantilizada, reduzida a propriedade e tratada como meio, e não como fim.
Outras
razões para as formas atuais de escravatura são: a pobreza, o subdesenvolvimento e
a exclusão, especialmente quando estes se aliam à falta de acesso à educação ou à realidade das escassas, se não mesmo
inexistentes, oportunidades de emprego. Não raro, é vítima de tráfico e
servidão quem procurava uma forma de sair da pobreza extrema e, acreditando em falsas
promessas de trabalho, cai nas mãos das redes criminosas que gerem o tráfico de
seres humanos, redes que utilizam habilmente as tecnologias de informação para
atrair jovens e adolescentes de toda a parte.
É
também causa da nova escravatura a corrupção dos que, para enriquecerem, estão
dispostos a tudo. Com efeito, a servidão e o tráfico das pessoas humanas
requerem uma cumplicidade, por vezes, múltipla que implica a corrupção dos
intermediários, de membros das forças policiais, de outros atores do Estado ou
de variadas instituições, civis e militares. Isto acontece – diz o Papa – quando
no centro dum sistema económico está o deus dinheiro em vez do homem – o que
origina a inversão de valores.
Causas
especiais da escravidão são os conflitos
armados, as violências,
a criminalidade e o terrorismo.
Há inúmeras pessoas – constata o Pontífice – que são raptadas para ser
vendidas, recrutadas como combatentes ou exploradas sexualmente, enquanto
outras se veem obrigadas a emigrar, deixando tudo o que possuem.
Compromisso comum contra a escravatura
Perante
a indiferença geral, o Papa reconhece o enorme trabalho que muitas congregações
religiosas, especialmente femininas, realizam silenciosamente em prol das
vítimas, articulado a “três níveis principais: o socorro às vítimas, a sua
reabilitação sob o perfil psicológico e formativo e a sua reintegração na
sociedade de destino ou de origem”.
Porém,
para se pôr termo ao atual flagelo da exploração da pessoa humana, Francisco
aponta a falta de um “tríplice empenho a
nível institucional: prevenção, proteção das vítimas e ação judicial contra
os responsáveis”. Ademais, já que “as organizações criminosas usam redes
globais” para os seus objetivos, assim também a ação para vencer o flagelo se requer
um esforço comum e global dos diferentes atores que compõem a sociedade”: os Estados devem vigiar por que a respetiva
legislação nacional e côngrua fiscalização atinentes à matéria sejam mesmo respeitadoras
da dignidade da pessoa; as organizações
intergovernamentais devem, no
respeito pelo princípio da subsidiariedade, implementar iniciativas coordenadas
para combater as redes transnacionais de todo o crime organizado; as empresas têm de garantir aos
seus empregados condições de trabalho dignas e salários adequados, bem como
lhes cabe vigiar por que não tenham lugar, nas cadeias de distribuição, formas
de servidão ou tráfico de pessoas; e também o consumidor deve ter a “consciência de que comprar é sempre um ato
moral, para além de económico”, pelo que tem reagir contra a imoralidade das
situações denunciadas.
Compete
às organizações da sociedade
civil “sensibilizar e estimular as consciências sobre os passos necessários
para combater e erradicar a cultura da servidão”.
Finalmente o Papa
Francisco propõe a globalização da fraternidade, não a da escravidão nem a da indiferença,
já que
estamos perante um fenómeno mundial alastrante, que excede as competências de
uma única comunidade ou nação. E inscreve esta obrigação no dever bíblico de
guardar os irmãos: “Deus perguntará a cada um de nós: Que fizeste do teu irmão? (cf Gn 4,9-10).
***
Hoje, na homilia da solenidade de Santa Maria Mãe de Deus, Francisco
impetrou da doce e carinhosa Mãe a obtenção da “bênção do Senhor para a família
humana inteira” e a sua intercessão “para que o Senhor dê paz a estes nossos dias: paz
nos corações, paz nas famílias, paz entre as nações”. E garantiu que “todos somos
chamados a ser livres, todos chamados a ser filhos; e cada um chamado, segundo
as próprias responsabilidades, a lutar contra as formas modernas de escravidão.
Nós todos, de cada nação, cultura e religião, unamos as nossas forças”. E sua prece desembocou n o apelo a Cristo: “Que
nos guie e sustente Aquele que, para nos tornar irmãos a todos, Se fez nosso
servo”.
Grande desejo para o ano que ora se inicia.
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