sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

O preparador dos períodos pós-...

Ao ouvir e, depois, ler a mensagem de ano novo do Presidente da República, lembrei-me de aplicar a esta singular figura presidencial a expressão vertida em epígrafe, ainda que doseada e complementada com o incontornável “em devido tempo chamei a tenção”. Efetivamente, este presidente é useiro e vezeiro nos avisos premonitórios de “situação explosiva”, “espiral recessiva” ou da necessidade do “sobressalto democrático”.
Também agora o supremo magistrado da nação nos adverte: “Em devido tempo, chamei a atenção do País para preparamos o período pós-troika”. Sim, ele até convocou para o efeito o Conselho de Estado em momento político em que outra coisa se esperava do seu magistério presidencial, ocasião em que muitos dos conselheiros foram inglória e injustamente vaiados por manifestantes à entrada à saída.
Ora, já estamos literalmente no período pós-troika a partir do dia 17 de maio passado. E quais são os efeitos daquela preparação belemita? Muito gostava de acreditar na verdade, não meramente estatística, das palavras seguintes, que transcrevo da mensagem presidencial:
“Portugal concluiu a execução do programa de ajustamento subscrito em 2011 com as instituições internacionais sem necessidade de solicitar assistência financeira adicional. A economia está a crescer, a competitividade melhorou, o investimento iniciou uma trajetória de recuperação e o desemprego diminuiu.”.
É óbvio por demais conhecido o que estas declarações umbilicalmente coladas ao discurso governamental escondem, nomeadamente na afirmação do crescimento económico face ao PIB e à média do crescimento da economia da zona Euro, na inverdade da dita “saída limpa”, na mascaração das estatísticas do desemprego (desemprego estagiário, emprego substituído por emigração ou por falta de aproximação ao IEFP) e na incompetitividade resultante da penúria do mercado interno e da insustentabilidade do crescimento das exportações.
Demais, é irrisório apontar “uma estratégia acompanhada do controlo das contas públicas e do endividamento externo” face ao descrédito das previsões orçamentais por parte das entidades externas e internas, com responsabilidade no acompanhamento das nossas contas públicas e tendo em conta que o aumento da arrecadação da massa da receita fiscal se deve em muito boa parte à caça à fatura com NIF para o sorteio do automóvel e menos à reforma da mentalidade cidadã e do combate institucional à economia paralela ou à corrupção, que emerge a cada passo.
Mas o Presidente está vivamente empenhado na preparação de outro período pós-…, pois apela ao óbvio: “Agora, interpelo os Portugueses – e, em especial, os agentes políticos – a prepararem o período pós-eleitoral”. Sim, é ano de eleições legislativas cuja virtualidade pôs em dúvida no discurso de 25 de abril de 2013:
Sejam quais forem os resultados das eleições, o futuro de Portugal implica uma estratégia de médio prazo que tenha em atenção os grandes desafios que iremos enfrentar mesmo depois de concluído o Programa de Assistência Financeira em vigor”.
No entanto, em julho seguinte, disponibilizava-se para antecipar as eleições em junho de 2014 se os partidos do arco da governação quisessem e conseguissem gerar um compromisso de “salvação nacional”, o que revelou alguma incoerência e resultou no insucesso.
Agora, a advertência passa por outro tipo de discurso:
“Não é só no dia a seguir às eleições que se constroem soluções governativas estáveis, sólidas e consistentes, capazes de assegurar o crescimento económico e dar esperança aos Portugueses. O período pós-eleições deve corresponder à consolidação de um tempo de confiança no nosso País, quer no plano interno, quer no plano internacional.”.
Porém, essa confiança não se consegue com a mera denúncia que fez em 5 de outubro passado de que “os Portugueses são dos povos da União Europeia que demonstram maiores níveis de insatisfação com o regime em que vivem”, com uma “falta de confiança nas instituições” – “sobretudo nos partidos” – que “tem vindo a crescer e a aprofundar-se”.
E o Presidente discriminava: os níveis preocupantes de abstenção em sucessivos atos eleitorais; a cada vez maior repulsa dos cidadãos mais qualificados pelo exercício de funções públicas (“não apenas no que toca ao desempenho de cargos políticos, mas também ao exercício de funções nas diversas áreas da Administração Pública”); a maior atratividade do setor privado, mais bem remunerado e sem a exposição mediática e o desgaste pessoal e familiar, associados ao desempenho de cargos públicos; a falta de incentivos para o exercício de cargos públicos e a existência de fatores que adensam a repulsa por essa opção; o carreirismo e oportunismo associados ao exercício de cargos na esfera política ou administrativa; as barreiras à entrada de novos protagonistas e as limitações à concorrência na escolha dos dirigentes, aos mais diversos níveis; a tendência para a demagogia e populismo; a profissionalização da atividade política quando traz associada uma marca de desprestígio e de ausência de méritos e qualificações; e a crítica sistemática e inconsequente.
E o Presidente perguntava no mesmo dia de outubro com  loquaz pertinência: “Já se pensou nos prejuízos para o país se não tivermos as pessoas com as competências certas em determinados altos cargos da Administração Pública”? Parece que, apesar de se ter gorado o mecanismo governativo de salvação nacional, o país passou a ter as pessoas certas no lugar certo. E terá sido por isso que Passos Coelho não aceita que outros venham estragar tudo “o que fizemos”.
Mas, desta vez, o Presidente mostra-se confiante no sistema (Que remédio!). Vem rejeitar a “ideia demagógica e populista”, que alguns pretendem incutir na opinião pública, de que “os partidos e os seus dirigentes se alheiam dos interesses do país e das aspirações dos cidadãos”. Recusa explicitamente o populismo e apela “ao esforço de pedagogia democrática” que defenda a essencialidade dos partidos políticos “para a qualidade da democracia e para a expressão do pluralismo de opiniões”. Por isso, exige que “os partidos e os agentes políticos” demonstrem, “pela sua conduta, que são um exemplo de transparência, de responsabilidade e de civismo para os Portugueses”. E pede cuidado “nas promessas eleitorais que se fazem e que, não podendo depois ser cumpridas, acentuam perigosamente a desconfiança dos cidadãos em relação à classe política e às instituições”.
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Ora, Cavaco Silva também preparara com mão de mestre o período pós-socrático. Assim, em 2009 e 2010, conseguiu arregimentar o partido de Passos Coelho para não inviabilizar os orçamentos para 2011 e 2012, respetivamente, bem como o PEC quando o Papa estava em Portugal, a ponto de o então Primeiro-Ministro se regozijar por ter um parceiro para dançar o tango. Porém, em 2011, no discurso de posse como presidente reeleito, omitiu a componente internacional da crise e apelou ao sobressalto democrático geral e incitou os jovens a fazerem ouvir a sua voz. E seguiu-se a queda de Sócrates e a urgência do pedido de intervenção externa.
Por isso, sabe a contradição irónica a sua saudação “a todos os Portugueses, quer aos que residem no nosso País, quer aos que se fixaram no estrangeiro” e aos “cidadãos de outros países que escolheram Portugal como lugar de residência ou de trabalho” (Estará a pensar também nos vistos Gold?), bem como o orgulho de que “tenham decidido viver em Portugal, uma terra aberta e plural, onde todos são recebidos com hospitalidade e sem quaisquer discriminações” (Pudera, com incentivos fiscais!). Mas, que é dos emigrados por falta de condições internas?
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Porém, o divórcio entre os cidadãos e os políticos não se anula ou minora com os bons discursos – quer os atinentes à natureza da democracia que “exige o pluralismo e a diversidade de opiniões” e que pressupõe a “capacidade de as diversas forças políticas encontrarem as soluções que melhor sirvam o interesse nacional”, quer os respeitantes ao percurso a fazer “em conjunto, com abertura e diálogo entre as diversas forças partidárias, contando com o contributo dos agentes económicos e dos parceiros sociais e unindo os Portugueses”.
Não obstante, há que ter em conta as recomendações do Presidente cuja palavra é eficaz quando ele a usa de forma contida e clarividente e age com denodo e discrição respeitosa sobre os destinatários, como vimos acima. Efetivamente, “os Portugueses irão ser chamados a pronunciar-se através do exercício do direito de voto”, em 2015. Obviamente, que só o cumprimento do dever essencial de participar ativamente nas eleições permite “esperar – e até exigir – que os agentes políticos atuem com responsabilidade, elevação e sentido cívico, colocando o interesse nacional acima dos interesses partidários”.
Por outro lado, “é fundamental evitar crispações e conflitos artificiais que têm afetado a confiança dos cidadãos nas nossas instituições e, em particular, na classe política”. E assegura que o espírito de abertura política “não poderá ser prejudicado por excessos cometidos na luta política que antecede o sufrágio”. Será mesmo a contenção, que não impeça o debate, que abrirá as hipóteses de, nos dias a seguir às eleições, se construírem “soluções governativas estáveis, sólidas e consistentes, capazes de assegurar o crescimento económico e dar esperança aos Portugueses”.

A mensagem do Chefe do Estado merece acessoriamente dois reparos: o “combate à corrupção” como “uma obrigação de todos” sabe a pouco, parecendo figurar na mensagem como Pôncio Pilatos no Credo; e a declaração de que “a situação das famílias atingidas pelo desemprego e pela pobreza e a correção das desigualdades sociais devem merecer particular atenção da parte de todos os agentes políticos” sabe a imperativo político sem consequências. Esta declaração é tão protocolar como a mensagem e a mensagem é tão inovadora como o orçamento: mais do mesmo.

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