Ao
ouvir e, depois, ler a mensagem de ano novo do Presidente da República, lembrei-me
de aplicar a esta singular figura presidencial a expressão vertida em epígrafe,
ainda que doseada e complementada com o incontornável “em devido tempo chamei a
tenção”. Efetivamente, este presidente é useiro e vezeiro nos avisos
premonitórios de “situação explosiva”, “espiral recessiva” ou da necessidade do
“sobressalto democrático”.
Também
agora o supremo magistrado da nação nos adverte: “Em devido tempo, chamei a
atenção do País para preparamos o período pós-troika”.
Sim, ele até convocou para o efeito o Conselho de Estado em momento político em
que outra coisa se esperava do seu magistério presidencial, ocasião em que muitos
dos conselheiros foram inglória e injustamente vaiados por manifestantes à
entrada à saída.
Ora,
já estamos literalmente no período pós-troika
a partir do dia 17 de maio passado. E quais são os efeitos daquela preparação
belemita? Muito gostava de acreditar na verdade, não meramente estatística, das
palavras seguintes, que transcrevo da mensagem presidencial:
“Portugal concluiu a
execução do programa de ajustamento subscrito em 2011 com as instituições
internacionais sem necessidade de solicitar assistência financeira adicional. A
economia está a crescer, a competitividade melhorou, o investimento iniciou uma
trajetória de recuperação e o desemprego diminuiu.”.
É
óbvio por demais conhecido o que estas declarações umbilicalmente coladas ao
discurso governamental escondem, nomeadamente na afirmação do crescimento económico
face ao PIB e à média do crescimento da economia da zona Euro, na inverdade da
dita “saída limpa”, na mascaração das estatísticas do desemprego (desemprego
estagiário, emprego substituído por emigração ou por falta de aproximação ao
IEFP) e na incompetitividade resultante da penúria do mercado interno e da
insustentabilidade do crescimento das exportações.
Demais,
é irrisório apontar “uma estratégia acompanhada do controlo das contas públicas
e do endividamento externo” face ao descrédito das previsões orçamentais por
parte das entidades externas e internas, com responsabilidade no acompanhamento
das nossas contas públicas e tendo em conta que o aumento da arrecadação da
massa da receita fiscal se deve em muito boa parte à caça à fatura com NIF para
o sorteio do automóvel e menos à reforma da mentalidade cidadã e do combate
institucional à economia paralela ou à corrupção, que emerge a cada passo.
Mas
o Presidente está vivamente empenhado na preparação de outro período pós-…, pois
apela ao óbvio: “Agora, interpelo os Portugueses – e, em especial, os agentes
políticos – a prepararem o período pós-eleitoral”. Sim, é ano de eleições
legislativas cuja virtualidade pôs em dúvida no discurso de 25 de abril de
2013:
“Sejam quais forem os resultados das eleições, o futuro de Portugal
implica uma estratégia de médio prazo que tenha em atenção os grandes desafios
que iremos enfrentar mesmo depois de concluído o Programa de Assistência
Financeira em vigor”.
No entanto, em julho seguinte, disponibilizava-se para
antecipar as eleições em junho de 2014 se os partidos do arco da governação quisessem
e conseguissem gerar um compromisso de “salvação nacional”, o que revelou alguma
incoerência e resultou no insucesso.
Agora,
a advertência passa por outro tipo de discurso:
“Não é só no dia a
seguir às eleições que se constroem soluções governativas estáveis, sólidas e
consistentes, capazes de assegurar o crescimento económico e dar esperança aos
Portugueses. O período pós-eleições deve corresponder à consolidação de um
tempo de confiança no nosso País, quer no plano interno, quer no plano
internacional.”.
Porém,
essa confiança não se consegue com a mera denúncia que fez em 5 de outubro
passado de que “os Portugueses são dos povos da
União Europeia que demonstram maiores níveis de insatisfação com o regime em
que vivem”, com uma “falta de confiança nas instituições” – “sobretudo
nos partidos” – que “tem vindo a crescer
e a aprofundar-se”.
E
o Presidente discriminava: os níveis preocupantes de abstenção em sucessivos
atos eleitorais; a cada vez maior repulsa dos cidadãos mais qualificados pelo exercício
de funções públicas (“não apenas no que toca ao desempenho de cargos políticos, mas
também ao exercício de funções nas diversas áreas da Administração Pública”); a maior atratividade
do setor privado, mais bem remunerado e sem a exposição mediática e o desgaste
pessoal e familiar, associados ao desempenho de cargos públicos; a falta de
incentivos para o exercício de cargos públicos e a existência de fatores que
adensam a repulsa por essa opção; o carreirismo e oportunismo associados ao exercício
de cargos na esfera política ou administrativa; as barreiras à entrada de novos
protagonistas e as limitações à concorrência na escolha dos dirigentes, aos
mais diversos níveis; a tendência para a demagogia e populismo; a
profissionalização da atividade política quando traz associada uma marca de
desprestígio e de ausência de méritos e qualificações; e a crítica sistemática e
inconsequente.
E o Presidente perguntava no mesmo dia
de outubro com loquaz pertinência: “Já
se pensou nos prejuízos para o país se não tivermos as pessoas com as
competências certas em determinados altos cargos da Administração Pública”? Parece
que, apesar de se ter gorado o mecanismo governativo de salvação nacional, o
país passou a ter as pessoas certas no lugar certo. E terá sido por isso que
Passos Coelho não aceita que outros venham estragar tudo “o que fizemos”.
Mas, desta vez, o Presidente mostra-se confiante
no sistema (Que remédio!). Vem rejeitar a “ideia demagógica e populista”, que alguns pretendem incutir
na opinião pública, de que “os partidos e os seus dirigentes se alheiam dos
interesses do país e das aspirações dos cidadãos”. Recusa explicitamente o
populismo e apela “ao esforço de pedagogia democrática” que defenda a
essencialidade dos partidos políticos “para a qualidade da democracia e para a
expressão do pluralismo de opiniões”. Por isso, exige que “os partidos e os
agentes políticos” demonstrem, “pela sua conduta, que são um exemplo de
transparência, de responsabilidade e de civismo para os Portugueses”. E pede
cuidado “nas promessas eleitorais que se fazem e que, não podendo depois ser
cumpridas, acentuam perigosamente a desconfiança dos cidadãos em relação à
classe política e às instituições”.
***
Ora, Cavaco Silva também preparara com mão
de mestre o período pós-socrático. Assim, em 2009 e 2010, conseguiu arregimentar
o partido de Passos Coelho para não inviabilizar os orçamentos para 2011 e 2012,
respetivamente, bem como o PEC quando o Papa estava em Portugal, a ponto de o
então Primeiro-Ministro se regozijar por ter um parceiro para dançar o tango. Porém,
em 2011, no discurso de posse como presidente reeleito, omitiu a componente
internacional da crise e apelou ao sobressalto democrático geral e incitou os jovens
a fazerem ouvir a sua voz. E seguiu-se a queda de Sócrates e a urgência do
pedido de intervenção externa.
Por
isso, sabe a contradição irónica a sua saudação “a todos os Portugueses, quer
aos que residem no nosso País, quer aos que se fixaram no estrangeiro” e aos “cidadãos
de outros países que escolheram
Portugal como lugar de residência ou de trabalho” (Estará a pensar também nos
vistos Gold?), bem como o orgulho de
que “tenham decidido viver em Portugal, uma terra aberta e plural, onde todos
são recebidos com hospitalidade e sem quaisquer discriminações” (Pudera, com
incentivos fiscais!). Mas, que é dos emigrados por falta de condições internas?
***
Porém,
o divórcio entre os cidadãos e os políticos não se anula ou minora com os bons
discursos – quer os atinentes à natureza da democracia que “exige o pluralismo
e a diversidade de opiniões” e que pressupõe a “capacidade de as diversas
forças políticas encontrarem as soluções que melhor sirvam o interesse nacional”,
quer os respeitantes ao percurso a fazer “em conjunto, com abertura e diálogo
entre as diversas forças partidárias, contando com o contributo dos agentes
económicos e dos parceiros sociais e unindo os Portugueses”.
Não
obstante, há que ter em conta as recomendações do Presidente cuja palavra é
eficaz quando ele a usa de forma contida e clarividente e age com denodo e
discrição respeitosa sobre os destinatários, como vimos acima. Efetivamente, “os
Portugueses irão ser chamados a pronunciar-se através do exercício do direito de
voto”, em 2015. Obviamente, que só o cumprimento do dever essencial de participar
ativamente nas eleições permite “esperar – e até exigir – que os agentes
políticos atuem com responsabilidade, elevação e sentido cívico, colocando o
interesse nacional acima dos interesses partidários”.
Por
outro lado, “é fundamental evitar crispações e conflitos artificiais que têm
afetado a confiança dos cidadãos nas nossas instituições e, em particular, na
classe política”. E assegura que o espírito de abertura política “não poderá
ser prejudicado por excessos cometidos na luta política que antecede o sufrágio”.
Será mesmo a contenção, que não impeça o debate, que abrirá as hipóteses de,
nos dias a seguir às eleições, se construírem “soluções governativas estáveis,
sólidas e consistentes, capazes de assegurar o crescimento económico e dar
esperança aos Portugueses”.
A
mensagem do Chefe do Estado merece acessoriamente dois reparos: o “combate à corrupção”
como “uma obrigação de todos” sabe a pouco, parecendo figurar na mensagem como Pôncio
Pilatos no Credo; e a declaração de
que “a situação das famílias atingidas pelo desemprego e pela pobreza e a
correção das desigualdades sociais devem merecer particular atenção da parte de
todos os agentes políticos” sabe a imperativo político sem consequências. Esta declaração
é tão protocolar como a mensagem e a mensagem é tão inovadora como o orçamento:
mais do mesmo.
Sem comentários:
Enviar um comentário