Ao ler a homilia do senhor Bispo do Porto na celebração eucarística do
1.º de janeiro, solenidade de Santa Maria Mãe de Deus, XLVIII Dia Mundial da
Paz e inauguração do ano de 2015, hesitei se devia selecionar para título de reflexão
o referenciado em epígrafe ou uma expressão utilizada pelo prelado diocesano e
aparentemente mais eclesial, “bênção de
Deus para a Humanidade”.
Depois,
pensei que efetivamente o Papa Francisco, na sua mensagem para a reflexão na celebração
da efeméride, faz um excursus
histórico e doutrinal sobre a escravatura e denuncia as atuais formas de
escravatura, tantas vezes iludidas pelas legislações nacionais e respetivas
fiscalizações e pelos documentos de interesse mundial, apresentando mesmo um
conjunto de medidas para o combate a toda a modalidade de escravização,
apelando à mobilização de todos.
Acho,
assim, que o bispo portuense fez muito bem em dizer – aos seus destinatários da
Sé Catedral do Porto, da Rádio Renascença e a quem o ouviu de outra forma ou o vier
a ler – que a escravatura “não é uma fatalidade histórica nem um desígnio
corrosivo a que a Humanidade não saiba dar resposta”. O próprio Papa o deu a
entender, ao afirmar que a escravatura, como os outros fenómenos que minam as
relações interpessoais e entre povos, resulta da noção que se faça do homem (noção
coisificadora), do pecado do homem e da corrupção dos corações. Nenhuma destas
causas resulta de um qualquer fatalismo cego, mas das construções que a
inteligência humana congemina, levada pela prerrogativa da liberdade, embora mal
utilizada neste enquadramento. Porém, o homem, ao longo da História, consegue
dispor de elementos que lhe permitam aprimorar as conceções sobre o próprio homem,
ganhar força suficiente para renunciar ao pecado e para travar e anular as
tentações de corrupção, escravização e espezinhamento das liberdades.
Por
outro lado, Dom António Francisco (o segundo nome de Francisco coincide como
adotado pelo Papa) alinha com o Papa Francisco na denúncia das novas formas e
nomes de escravatura, mas fixa-se sobretudo nos aspetos positivos e
esperançosos da mensagem papal – a exortação à aspiração à fraternidade e a
estratégia de combate a qualquer uma das formas de escravidão ou servidão
irracional movida por interesses mesquinhos de pessoas, grupos e povos.
Quanto
à aspiração à fraternidade, decorrente da liberdade e comunhão evangélicas a
que os homens são chamados, Dom António declara:
“O Papa Francisco
incentiva-nos a assumir esta “aspiração irreprimível da fraternidade,
impelindo todos os cristãos e pessoas de boa vontade à comunhão com os outros,
em quem não encontramos inimigos ou concorrentes, mas irmãos que devemos
acolher e abraçar…porque já não somos escravos mas irmãos … reunidos na
comunidade cristã que deve ser necessariamente o lugar da comunhão vivida entre
os irmãos” (cf. Mensagem para o dia mundial da Paz, 2015).
É um excerto que vem na continuidade da mensagem pontifícia para o Dia Mundial da Paz de 2014, mas a que acrescenta o
significativo segmento “porque já não somos
escravos mas irmãos”.
Quanto à estratégia concertada
de combate, o bispo salienta:
Francisco convoca a
Igreja, os Estados, as organizações internacionais, as empresas e as famílias
para um compromisso comum em ordem a vencer a escravatura, unindo-se “ao enorme trabalho de coragem,
paciência e perseverança que muitas congregações religiosas realizam
silenciosamente há tantos anos, a favor das vítimas da escravidão ... juntando
a este trabalho o esforço no campo da prevenção, da proteção das vítimas e da
ação judicial contra os responsáveis” (idem).
E conclui que “só se consegue
transformar o mundo a partir da conversão do coração de cada pessoa”.
Ora,
é ao serviço da fraternidade e da paz que ela postula (e que passa pelo apuramento
da noção do homem como ser livre e digno, como filho de Deus) que se implora e
distribui a bênção de Deus e se merece o dom da Paz. Não haverá paz, nem a
bênção de Deus faz luz em contexto de escravidão ou, como dizem alguns, de exploração
do homem pelo homem. O homem livre não pode fazer do seu semelhante nem objeto
de estimação nem animal de carga.
Também
contra o mundo tenebroso da escravatura, da violação dos direitos do homem e do
estrangulamento da dignidade da pessoa humana, “a missão da Igreja é esta: ser
bênção de Deus para a Humanidade e sacramento de salvação para o Mundo” –
proclama o bispo. E a bênção é para libertar as pessoas da mundanidade e da sua
escravidão; e a salvação não se pode adiar para o futuro ou para o Além, tendo
mesmo de começar já e aqui.
Junto
das pessoas livres, no meio do povo de libertos, fazem sentido e caem como
luvas ajustadas às mãos as palavras veterotestamentárias: “Que o Senhor te
abençoe e te proteja…que o Senhor dirija para ti o Seu olhar e te conceda a paz” (Nm 6,24-26).
É claro que, embora
os cristãos sejam herdeiros da bênção e da paz veterotestamentárias, essas já
não lhes são bastantes. É no presépio e no altar que “encontramos Jesus,
Príncipe da paz” – o que acontece “pela mediação de Santa Maria, Mãe de Deus e
nossa Mãe”, com quem se aprende a humildade da vida e o sentido de servir com
alegria e liberdade. E Dom António Francisco cita o texto da plenitude do tempo
e da condição divina e humana de Cristo, o fator da filiação divina adotiva dos
homens e da fraternidade universal: “Quando chegou a plenitude dos tempos,
Deus enviou o seu Filho, nascido de uma Mulher, para…nos tornar seus filhos
adotivos e irmãos uns dos outros” (Gl
4,4-5).
***
Glosando
o início deste novo ciclo anual, o bispo da diocese portuense anota que o novo
ano se inicia, “para os cristãos, com a bênção e sob o sinal da Mãe de Deus,
que nos abre as portas do tempo novo como só as mães sabem fazer, ao abrirem as
portas da casa e do coração para os seus filhos”. Para tanto, impõe-se assumir
a simplicidade e a alegria de viver, a espontaneidade de ser livre ou, segundo
o prelado, que cita Miguel Torga, “iniciar um novo ano é não desistir de ser criança,
porque é isso que nos vale”.
Como
é habitual, nas homilias episcopais do antístite do Porto, ressalta a devoção à
Mãe de Deus, que na Sé Catedral se invoca como Senhora de Vandoma e Senhora
da Assunção. Nesta, ele confia-Lhe o “desejo profundo, nascido do coração
de todos nós, de sermos abençoados e felizes e de vivermos em paz todo o ano”;
e confia-Lhe “as mães e as famílias, com todos os seus projetos, esperanças,
alegrias e dores”.
Depois,
veja-se a personificação que Dom António faz da cidade e diocese do Porto, ao considerá-las
“mães” do “nosso viver solidário, da nossa comunhão fraterna e do nosso crescer
na fé”. É a fé de que Deus vive do meio do povo, mora na cidade. É o jeito do
bispo que em seminarista aprendeu e ensinou a incensar o povo reunido nas
liturgias solenes!
Mais:
aponta a maternidade da Igreja como dimensão existencial da sua essência e missão:
“A Igreja deseja ser para cada um de nós, ao longo do ano que agora começa,
esta Mãe onde se espelhe a ternura do rosto materno de Maria, Mãe de Deus”.
Por
isso, se queremos a paz, a liberdade e fraternidade, temos de aprender “a
ultrapassar os conflitos”, temos de saber resistir à tentação do ódio, que
nasce no íntimo do coração humano, e da violência da guerra, presente em tantos
países do mundo”.
E
define “a opção pela paz” como “o caminho obrigatório da Igreja e o seu
imprescindível serviço ao bem comum da Humanidade”. E assegura, com toda a
clareza, que “a paz que desejamos para a Humanidade não se pode nem se deve
separar da paz que construirmos entre nós com a ajuda de Deus”.
Por
fim, o Bispo do Porto fala da esperança dos crentes (e das suas razões) em quem
mora a alegria do evangelho, “presente
e atuante em tantas famílias e comunidades”. E insiste no seu ideário
recorrente de querer que a Igreja do Porto assuma, “inspirada na Exortação Apostólica
do Papa Francisco, a alegria do
evangelho como sua missão”, para o se
impõe “construir em cada família, comunidade e instituição uma casa para a alegria do evangelho, para que aí habite a fé,
a esperança, a caridade e a paz, como valores evangélicos indispensáveis e
insubstituíveis”. A via para tal objetivo é a do Evangelho, que encoraja “a
caminhar e a ir em frente, dando maior atenção às pessoas, sobretudo às mais
pobres, e oferecendo respostas solidárias às famílias, empresas e instituições
em dificuldade”; e a mobilizar a “vontade, generosidade, coragem e espírito
criativo para fazermos do nosso tempo uma oportunidade para acolhermos a
alegria do evangelho, que o encontro com Cristo e com a Igreja nos oferece, e
para fazermos da nossa terra uma escola onde se eduque para a fraternidade
humana”.
Também
a esperança se estriba no reconhecimento da “capacidade empreendedora” e do “espírito
solidário” que fazem do Porto e da sua alma “uma terra solidária e dinâmica e
uma Igreja viva e missionária”. Depois, o penhor humano de que “a construção da
justiça, da misericórdia, da fraternidade e da paz é um belo compromisso de
todos e um imperativo cristão assumido por cada um de nós” reside na “terra
fértil e acolhedora que habitamos”; na “lucidez diligente dos que servem a
causa pública”; no “espírito construtivo de empresários e trabalhadores”; na “clarividente
sabedoria dos que ouvem os pobres”; na “missão evangelizadora”; na “atenção
solícita da Igreja”; e no “serviço voluntário de muitas pessoas e instituições
junto dos que mais sofrem”.
Por
isso, a exemplo de S. Francisco de Assis, “o incansável profeta e construtor da
paz”, e do Papa Francisco, que não esquece os pobres e a imagem da Igreja em
saída, o prelado diocesano reza em nome de cada um dos diocesanos da Igreja do
Porto: “Faz-me, Senhor,
instrumento da paz, da Tua paz.”.
E, sim, espero não
deslustrar com este arrazoado a profundidade e a beleza desta homilia do Bispo
do Porto, a primeira que profere no Porto no dia primeiro de janeiro – pela Paz
e pela Bênção, pela Igreja e por Maria, pela Liberdade e pela Alegria, pela Herança
religiosa e pelo Compromisso com o Futuro.
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