A 22 de dezembro passado, Sua
Santidade o Papa Francisco arrasou a Cúria Romana (cardeais, monsenhores e
outros servidores) com um discurso assaz duro, a que já fiz referência e que
muitos comentam como sendo inusitado e até virulento e que pretendem aplicar às
cúrias diocesanas e mesmo a todos os membros da Igreja Católica.
Ora, este tipo de discurso em
Francisco era espectável, pois já no ano anterior ele chamava à razão a Cúria
Romana e, em especial, a Congregação para os Bispos. Se alguns dos membros daquela
Cúria (Secretaria de Estado, Congregações, Tribunais, Conselhos Pontifícios,
Secretaria do Sínodo dos Bispos, Departamentos, Ofícios, Comissões e os Representantes Pontifícios espalhados pelo mundo)
não estavam à espera de discurso semelhante, é porque ainda não quiseram
conhecer o perfil deste pontífice. Que é diplomático – ele agradece o trabalho
de todos e inclui nos votos de Natal todos os entes próximos e queridos dos
destinatários diretos do seu discurso – mas não deixa de assumir o tom
profético da denúncia das más situações e do apelo ao núcleo essencial da fé,
que implica a transformação do homem e da sociedade.
Por outro lado, o Papa, quando
usa da palavra, pretende atingir, não só os destinatários diretos, mas também todos
aqueles que possam encaixar-se nas situações denunciadas e escalpelizadas.
É por isso que, sem retirar um
ápice às aplicações que o Papa faz ao governo central da Igreja Católica e à
sua administração (e ele é o efetivo responsável máximo pela sua governança,
mais do que Obama nos EUA), bem como às cúrias diocesanas, quero fazer, tanto
quanto possível, a aplicação a todos os escalões do poder (político, económico,
militar…). Não esqueço que o poder nos escalões mais baixos não deixa de ser,
por vezes, tão tirano e burocrático (ou até mais do que) como nos escalões
superiores.
***
Francisco começou por imaginar a Cúria Romana como “um
pequeno modelo da Igreja”. E poderia imaginá-la como “um modelo de Governo de
Estado”, já que a Santa Sé também é um Estado e tem desenvolvido grande (e, por
vezes, eficaz) labor diplomático. Ora, como diz o Papa, “como todo o corpo
humano, [a Cúria] está exposta à doença, ao mau funcionamento”, à tentação, à
disfunção. E enumerou 15 destas doenças da Cúria, que mutatis mutandis se aplicam a todo o poder, uma vez que a análise
de cada uma leva a concluir que tudo gira à volta da distónica “patologia do
poder”.
Eis o seu elenco, com pequenos comentários, seguindo
de perto o texto do grande Anselmo Borges (cf Diário de Notícias, de 27 de dezembro), embora com as adaptações
que a aplicação postula.
1. A tentação em que se cai inúmeras vezes, a ponto de
chegar a doença crónica, é a de “sentir-se
imortal, indispensável ou imprescindível”, que leva ao narcisismo e a
considerar-se superior a todos e não ao serviço de todos, podendo originar a
perpetuação no poder. Como antídoto, temos a limitação dos poderes no objeto,
nos agentes e no tempo e, sobretudo, a autocrítica humilde e realista. Em
Portugal, fala-se da humildade democrática – tão propalada e tão pouco
praticada. E o Papa lembra como os cemitérios estão repletos de nomes de tantos
que também pensaram que eram imortais e indispensáveis.
2. A seguir,
vem o “martismo”, que vai entroncar no
Evangelho de Lucas (cf Lc 10,30-42). No Evangelho, há duas irmãs, Marta
e Maria. E, enquanto esta, aninhada aos pés de Jesus, O contempla e escuta,
Marta corre e atarefa-se sem descanso. O “martismo” é, pois, a confiança
absoluta no trabalho excessivo, sem parar para pensar, refletir e avaliar, ou
simplesmente para repouso, meditação e interiorização. Quantos dos políticos e
gestores se esfalfam exclusiva e excessivamente na ação, arrastando consigo os
colaboradores e sem sucesso e préstimo!
3. Há também
a “petrificação ou fossilização mental e espiritual”, que
leva à perda da sensibilidade para avaliar as necessidades da comunidade, o
abandono das terras e família de origem, passando a trabalhar para as
estatísticas, considerando as pessoas mais um número contabilístico e
abandonando a atitude empática de “chorar com os que choram e alegrar-se com os
que se alegram”. Quantos não saem de suas terras cheios de ideias de
solidariedade e rapidamente se veem a pensar segundo os critérios da capital e
do capital (Não há dinheiro, não se pode fazer tudo de um dia para o outro, há
que avaliar os projetos, ter o sentido do todo…)!
4. Lá vem,
por seu turno, a doença do “excesso de
planificação e do funcionalismo”, que conduz a posicionamentos estáticos e
imutáveis, com a pretensão de domesticar, na Igreja, o Espírito Santo, e, na
sociedade, o povo ou a identidade nacional. Perde-se a noção da iniciativa, da
espontaneidade e da autonomia científica, profissional e política – fica-se
agarrado à folha de excel ou fazem-se divisões a régua e esquadro.
5. Depois,
grassa por esse mundo fora a doença da “má
coordenação” e mesmo da “descoordenação”,
perdendo-se o espírito de colaboração e o sentido de equipa e caindo-se no
individualismo crasso, incompatível com o trabalho colaborativo.
6. Com a
doença do “Alzheimer espiritual”,
perde-se, na Igreja, a memória do encontro com Jesus e com Deus e, na
sociedade, o sentido da lei, do dever e da estabilidade. Passa então a viver-se
e agir na dependência de conceções imaginárias, das próprias paixões, caprichos,
manias e expedientes. É o reino do “salve-se quem puder” e da heterofagia
económica, social e política.
7. Cultiva-se
também em alto grau o signo da “rivalidade
e da vanglória”, transformando-se o título académico (real ou fictício), a
patente militar, o lugar no Governo, “a aparência, as honras e as medalhas
honoríficas no primeiro objetivo da vida”. É a doença do prestígio e da
ascensão na vida do género da exclamação: “Pai, já sou ministro”!
8. A doença
da “esquizofrenia existencial” é a de
“quem vive uma vida dupla, fruto da hipocrisia típica do medíocre e do vazio
espiritual que títulos académicos e outras honrarias não podem preencher”. É a
doença que “afeta sobretudo quem se limita às coisas burocráticas e perde o
contacto pastoral”. Na política e na economia, sob a capa do interesse
comunitário, nacional ou do Estado, são fracos com os fortes e déspotas com os
fracos; têm um desempenho insuficiente e exigem o desempenho de excelência aos
outros, dispostos a penalizar e arredar os não amigos e a valorizar e promover
os amigos, os familiares e correligionários.
9. A doença
dos “rumores, mexericos, murmurações,
má-língua” parece inócua, mas é tão demolidora que pode levar ao “homicídio
a sangue frio”. Cuidado com “o terrorismo dos rumores, do diz-se!” – adverte o
Papa. A perda do bom nome, a perda da carreira profissional e política resultam
tantas vezes da intriga dos émulos e rivais, a qual leva inclusivamente à
quebra das relações familiares, mesmo a do casamento.
10. A doença
da “divinização dos chefes” é própria
de quem idolatra os superiores: “são vítimas do carreirismo e do oportunismo”.
Adulam os Superiores para
obterem a benevolência deles, honrando as pessoas e não a Deus e os valores
axiológicos (cf Mt 23,8-12). Mas esta doença pode atingir também os
Superiores, quando cortejam alguns dos seus colaboradores, a quem prometem
favores, para lograrem a cúmplice submissão, lealdade e dependência psicológica,
profissional e social.
11. A doença
da “indiferença para com os outros” é típica de quem já cumpre todos os deveres,
deu para todos os peditórios. Sofra quem e como sofrer, o coração fica
empedernido. Cumpre-se a lei, dura, mas igual para todos. Ninguém está acima da
lei.
12. A doença da “cara
de funeral”: são pessoas” bruscas e grosseiras”, sem alegria nem delicadeza.
São as caras de poucos amigos, que entendem que o ar severo é sinal de
prestígio e imparcialidade, induz ao respeito dos outros e impõe a ordem.
13. A doença da “acumulação
de bens materiais”, querendo assim preencher “um vazio existencial no
coração”. Leva à exploração do homem pelo homem e ao espezinhamento do fraco. É
um passo para a corrupção ativa e passiva, tráfico de influências,
favorecimento em negócios, branqueamento de capitais, evasão fiscal e compra de
lugares públicos, políticos e empresariais.
14. A doença dos “círculos
fechados” ou “espírito de capelinha”
acarreta o perigo de cortar, na Igreja, a relação de cada um ou de cada grupo com
o Corpo da Igreja e até com o próprio Cristo e, na sociedade, o corporativismo
e o cartelismo. Sobrepõem-se os interesses de grupo, da corporação, da
associação/sociedade ou do lóbi ao interesse do todo nacional. E também
falseiam as leis da concorrência combinando preços para manter em alta o respetivo
setor de atividade.
15. A última das doenças elencadas pelo Papa é a
doença do “mundanismo e do exibicionismo”,
transformando o serviço em poder. E este conquista-se a todo o custo e por
todos os meios, incluindo a promessa do que se pode e do que não se pode fazer
e mantém-se contra tudo e contra todos. Quando se perde o poder, hipocritamente
confessa-se o respeito pela vontade do povo, o soberano. Há outrossim quem, como
alternativa ao poder, aposte na voz e tudo critique e se refugie nas propostas
que faz com real à vontade quem nunca pensa ocupar o poder executivo.
***
O próprio Papa conclui que “estas doenças e tentações
são naturalmente um perigo para cada cristão e para cada cúria (diocesana),
comunidade, paróquia, movimento eclesial, e podem ferir tanto a nível individual
como comunitário”. E são comuns a todos os setores em que se manifeste a ambição
do homem e do seu grupo ou se exerça o poder, mesmo o dito democrático, para já
não falar no ditatorial.
Por isso, se pede a autocrítica, a reflexão pessoal, a
ajuda e correção mútuas e, na sociedade estruturada, se exige o recurso a todos
os meios de controlo dos poderes, sem cada um descurar o dever e direito de intervenção
cívica. Tudo isto, se queremos um mundo mais fraterno, mais justo e humano e
cada ano novo melhor que o antecedente.
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